quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

21.



Das imagens do tempo, e das miragens


Ribeiro Couto é autor de Diário de amor de um moço delicado, conto ambientado no subúrbio carioca dos anos 50. No referido, Cláudio Pereira apaixona-se por Olímpia, filha de dona Albina, que é uma megera, uma víbora peçonhenta. Cego de amor, Cláudio é capaz de rasgar a cidade inteira para ter com a moça, que é pobre e mora longe. Tudo gira em torno de Olímpia, a mulher ideal que ele tanto procurava e de quem, um dia, doente de amor, pode, enfim, dizer: “Encontrei a felicidade”. Ah!, a felicidade!
Como em quase todas as boas histórias de amor, o tempo é um vilão oculto, mas muito presente; terrivelmente presente. Parecia não passar entre a despedida do último encontro e a perspectiva do próximo. Sem Olímpia, nada tinha graça, nada tinha leveza, tudo era uma tristeza triste que ia apagando aos poucos as cores do Mundo. Mas acontece que sempre há uma contraparte natural, em que a história – como no ensinamento do Evangelho, onde é dito que, depois da bonança, vem a tempestade – dá uma guinada, para o bem ou para o mal. E geralmente é para o mal. É quando se desfaz a ilusão que alimenta o sonho de um “amor ideal”, de uma felicidade feliz, encontrada e fácil de ser mantida. Ah!, a felicidade!  
Viriato Vieira, amigo de Cláudio, aconselha-o que vá às mulheres fáceis, aos cabarés - lugares em que ele pode iludir os sentidos, adormecer a memória, “entorpecer a imensa dor” de amar assim. Remédios que Cláudio julga inúteis. Não vai. A imagem de Olímpia, amada e dolorosa, é uma tortura em sua memória sentimental.
Ah! Você não sabe? O amor vive da memória do objeto amado. Ama-se a imagem do outro que mora em nós, em nossa fantasia. Ela aparece em tudo o que vemos, e ouvimos, e pensamos... Uma loucura! E unimo-nos a tal objeto por meio da imagem, da lembrança da imagem que flutua em nosso delírio fantasioso, nosso desejo do real – que é quando a imagem confunde-se (funde-se com...) a um corpo, metamorfoseando-se no real, no físico. Não por acaso Tomás de Aquino, definindo o real, ou a verdade lógico-conceitual, diz que ele/ela não está nem nas coisas e nem no intelecto, mas na adequação entre uma e outra: “veritas est adaequatio speculativa mentis et rei”. Modernizada a questão, Heidegger nega que tal verdade seja primariamente a adequação do intelecto com a coisa. Faz isso ao sustentar que, de acordo com o primeiro significado grego, a verdade é a des-coberta, ou des-velamento – que é como ele traduz o substantivo grego alétheia. O tema, complexo, exige mais que um interregno na leitura psicológico-sentimental de um conto antigo. Seja como for, e para o nosso fim, consintamos que, mais que o físico, ama-se a imagem. Assim, quando esta imagem erótica (motivadora do desejo) se vai, a sua representação físicaque seria a sua realização metamórfica – não resiste. É relação sem desejo, sem paixão. Pois foi justamente isso o que aconteceu com o amor “ideal” que Cláudio dizia ter por Olímpia. Mormente, e a bem da verdade, ajudado por dona Albina, a “enorme senhora gorda”, mãe da moça.
Ribeiro Couto alimenta o ideário coletivo da sogra maldita. Cláudio, conhecendo a megera e mantendo viva a imagem dolorida de, quem sabe, uma traição de Olímpia – ela usava um colar e uma pulseira que não foram dados por ele e, pobre que era, não poderia tê-los comprado –, somente pensava em fugir, sozinho, para Minas, para Goiás. Ah!, como as imagens se impõem sobre a nossa fé!, sobre a nossa razão! “Uma imagem vale mais que mil palavras.” E isso vale principalmente em relação aos outros, sobre quem pouco podemos intervir na ação. Afinal, a imagem não é uma coisa, mas um ato da consciência. As pessoas são o que fazem, e não o que pensam que fazem. Mas o juízo é sempre nosso, enquanto ação responsável-individual; o Outro, nosso objeto: de amor, de ódio, de indiferença. 
Cláudio, de Minas, quer ir para mais longe, para Goiás. “Como será que se vai para Goiás?” Não adiantam as distâncias. Distanciamo-nos do objeto, mas a sua imagem estará sempre conosco, emparedada em nossa memória. Mais cedo ou mais tarde, como em um flashback de um passado de muito ácido, ela retorna.

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Moral da história: tenha cuidado, muito cuidado com quem você permite que entre em sua vida, em sua memória sentimental; querendo ou não, e para sempre, isso estará com você, mesmo que não esteja.


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