21.
Das imagens do tempo, e das miragens
Como em quase todas as boas histórias de amor, o tempo é um vilão oculto, mas muito presente; terrivelmente presente. Parecia não passar entre a despedida do último encontro e a perspectiva do próximo . Sem Olímpia, nada tinha graça , nada tinha leveza, tudo era uma tristeza triste que ia apagando aos poucos as cores do Mundo. Mas acontece que sempre há uma contraparte natural, em que a história – como no ensinamento do Evangelho, onde é dito que, depois da bonança, vem a tempestade – dá uma guinada, para o bem ou para o mal. E geralmente é para o mal. É quando se desfaz a ilusão que alimenta o sonho de um “amor ideal”, de uma felicidade feliz, encontrada e fácil de ser mantida. Ah!, a felicidade!
Viriato Vieira, amigo de Cláudio, aconselha-o que vá às mulheres fáceis, aos cabarés - lugares em que ele pode iludir os sentidos , adormecer a memória, “entorpecer a imensa dor” de amar assim. Remédios que Cláudio julga inúteis. Não vai. A imagem de Olímpia, amada e dolorosa, é uma tortura em sua memória sentimental.
Ah! Você não sabe? O amor vive da memória do objeto amado . Ama-se a imagem do outro que mora em nós, em nossa fantasia. Ela aparece em tudo o que vemos, e ouvimos, e pensamos... Uma loucura! E unimo-nos a tal objeto por meio da imagem, da lembrança da imagem que flutua em nosso delírio fantasioso, nosso desejo do real – que é quando a imagem confunde-se (funde-se com...) a um corpo , metamorfoseando-se no real, no físico. Não por acaso Tomás de Aquino, definindo o real, ou a verdade lógico-conceitual, diz que ele/ela não está nem nas coisas e nem no intelecto, mas na adequação entre uma e outra: “veritas est adaequatio speculativa mentis et rei”. Modernizada a questão, Heidegger nega que tal verdade seja primariamente a adequação do intelecto com a coisa. Faz isso ao sustentar que, de acordo com o primeiro significado grego, a verdade é a des-coberta, ou des-velamento – que é como ele traduz o substantivo grego alétheia. O tema, complexo, exige mais que um interregno na leitura psicológico-sentimental de um conto antigo. Seja como for, e para o nosso fim, consintamos que, mais que o físico , ama-se a imagem. Assim, quando esta imagem erótica (motivadora do desejo) se vai, a sua representação física – que seria a sua realização metamórfica – não resiste. É relação sem desejo, sem paixão. Pois foi justamente isso o que aconteceu com o amor “ideal” que Cláudio dizia ter por Olímpia. Mormente , e a bem da verdade , ajudado por dona Albina, a “enorme senhora gorda”, mãe da moça.
Ribeiro Couto alimenta o ideário coletivo da sogra maldita. Cláudio, conhecendo a megera e mantendo viva a imagem dolorida de, quem sabe, uma traição de Olímpia – ela usava um colar e uma pulseira que não foram dados por ele e, pobre que era, não poderia tê-los comprado –, somente pensava em fugir, sozinho, para Minas, para Goiás. Ah!, como as imagens se impõem sobre a nossa fé!, sobre a nossa razão! “Uma imagem vale mais que mil palavras.” E isso vale principalmente em relação aos outros , sobre quem pouco podemos intervir na ação. Afinal, a imagem não é uma coisa, mas um ato da consciência. As pessoas são o que fazem, e não o que pensam que fazem. Mas o juízo é sempre nosso, enquanto ação responsável-individual; o Outro, nosso objeto: de amor, de ódio, de indiferença.
Cláudio, de Minas, quer ir para mais longe, para Goiás. “Como será que se vai para Goiás?” Não adiantam as distâncias. Distanciamo-nos do objeto, mas a sua imagem estará sempre conosco, emparedada em nossa memória. Mais cedo ou mais tarde, como em um flashback de um passado de muito ácido, ela retorna.
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Moral da história: tenha cuidado, muito cuidado com quem você permite que entre em sua vida, em sua memória sentimental; querendo ou não, e para sempre, isso estará com você, mesmo que não esteja.