domingo, 27 de novembro de 2011

9.



Da perfeição 



Tito conheceu Eleonora durante o show de lançamento do primeiro EP da Star 61, banda de um amigo seu, no Parahíba Café. Era uma moça linda, professora de inglês na Wizard da Epitácio. Conversa vai, conversa vem, trocaram telefones para novo encontro. Uma semana depois, dividiam uma cerveja, na panorâmica do Mag Shopping.
– Então, Helê... Posso te chamar assim, né?
– Sim!, sim! Claro!
– Você vai sempre ao Parahíba Café?
– Olhe!, muito raramente, viu? Somente quando amigas vão e me convidam. E tu?
– Até que tenho ido bastante nesses últimos dias. Mas também não sou tão frequente. Vou mais quando há alguma atração à qual eu esteja, de certo modo, ligado; por amizade ou ofício.
Tito trabalhava na loja de fotografias do seu pai. Fotógrafo amador e músico, também produzia pequeninos shows, e sonhava em ser desenhista de história em quadrinhos.
– Na verdade – continuou ele –, quem faz os lugares são as pessoas; não é? Às vezes os lugares são bem legaiszinhos, mas se sua companhia não for, o ambiente acaba ficando chato. E, às vezes, o lugar é chaaato; mas, se você estiver bem acompanhado, as coisas se resolvem numa boa; não é?
Ela riu com o seu ar professoral, seguro, e assentiu com a cabeça.
– Concordo plenamente – disse.
Ele, procurando o que conversar, porque ainda não a conhecia bem e, naturalmente, não tinha tanto o que dizer, ou perguntar – e, sabia, disso dependeria o sucesso do encontro, e a possibilidade de mais outro, se fosse o caso –, arriscou:
– Mas, então, Helê: que bandas você tem ouvido?
– Ah!, eu gosto de Zezé Di Camargo & Luciano, Aviões do Forró, Exaltasamba, Bruno & Marrone, Victor & Leo... “Percebo que o tempo já não passa, você diz que não tem graça amar assim...” – cantarolou o trechinho, bem desafinada –, essas coisas...
E riu, encabulada. Ele também, observando se mais alguém não tinha notado o número espontâneo da moça.  
– É mesmo?! Que interessante! – estava visivelmente decepcionado com os gostos musicais da moça.
De fato, ele andava por outro mundo, in the wave of alternative bands, such as Sonyc Youth, Yo la Tengo, Galaxie 500, The Velvet Underground, Stereolab, Belle & Sebastian, et cetera. Parecia-lhe impossível acreditar que alguém que gostasse de tais... “artistas”, pudesse ser, realmente, uma companhia agradável para algo mais sério, tipo um segundo encontro.
– Bom – ele disse, bebendo o último gole –, melhor a gente ir andando, né?
– Mas, já?! Aqui está tão legal; você não acha?
– Olhe, se João Pessoa fosse um cachorro, isso aqui seria a bunda do bicho.

* * * * *


Moral da história: não há encanto que resista por muito tempo aos detalhes individuais das nossas tolas fantasias de perfeição. Uma simples palavra, às vezes, tem a fúria dos furacões, a potência da Bomba H. No mais, é como diz o filósofo João Estevam: “Cada qual, é cada qual”.



sexta-feira, 25 de novembro de 2011

8.



Das juras de amor eterno, ou: Das palavras mais etéreas 



Na novela, à mexicana, Cláudio Fernando beija Serena Alice e diz, com olhar de peixe morto:
Oh, Serena!, como te amo! Você nem faz ideia de como te desejo! Se eu pudesse, nunca me afastaria de você; ficava para sempre colado ao seu corpo... assim...”
E agora, numa tomada mais aberta, Cláudio Fernando beija Serena Alice novamente, apertando-a contra si, em ardente fúria, fogo e sofreguidão. Serena Alice, todavia, depois do beijo, ganha um ar de severidade, de desconforto, e se livra o mais depressa que pode dos braços fortes e peludíssimos de Cláudio Fernando.
“O que você tem, meu amor? O que há de errado?” Cláudio Fernando pergunta, visivelmente confuso.
Serena Alice, pegando o vaso que repousa sobre o móvel, arremessa-o contra Cláudio Fernando, gritando, furiosa, com os olhos rasos d’água:
Você diz isso a todas, seu infeliz mentiroso! Seu monstro! Monnnstrooo! Como você pode, Cláudio Fernando?, como você pode ser assim tão... tão imprestável?! Oh, Deus! Como você pode ser assim tão, tão... oh?!...”
E, de supetão, sai da sala aos prantos, batendo a porta atrás de si.
Cláudio Fernando, num flashback em branco e preto, lembra-se da cena anterior, quando do seu encontro com Clarissa Maria... Ele havia repetido as mesmas palavras, como que decoradas frase à frase, letra à letra... palavra por palavra. Serena Alice, certamente, estaria por detrás de uma daquelas portas, de alguma daquelas cortinas.
“Ah!, porca miséria! Mas que droga, Cláudio Fernando!”, recrimina-se, vencido, caindo na poltrona, com a cabeça entre as mãos: “Por que você não teve mais cuidado?”, pergunta-se.
A câmara se afasta e, sobre o cenário, a luz vai sumindo lentamente. Agora, sozinho, na penumbra, Cláudio Fernando está sozinho e, parece, muito decepcionado consigo mesmo. Escuridão.
O amor, meus caros, é uma novela mexicana.


terça-feira, 22 de novembro de 2011

7.


Da tranquilidade que antecede o estouro



O amor de Pedro por Matilda tinha a tranquilidade de quem caminha sobre uma planície eterna, sem acidentes, sem aclives, declives, sem novidades. E, talvez por isso, ele estava cansado. Pois vocês não sabem? A tranquilidade cansa, fomenta o tédio.
E foi num dia desses, de absoluta tranquilidade, que ele conheceu Milena.
A belíssima Milena, à semelhança do seu antigo e cansado amor, tinha somente a repetição de algumas letras no nome; tudo o mais era a novidade e expectativa de dias alegres, vibrantes, doces e quentes. As imagens do seu tranquilo amor, de repente, davam-se embaralhadas pelo tufão que foi a nova paixão. Afloraram, mais que nunca, os defeitos de Matilda em oposição às afrodisíacas imagens de Milena. Estava vencido. Apaixonara-se por Milena. E assim, apaixonara-se por sua própria imagem refletida no olhar magnético da moça, cheio de promessas de viço eterno. Teria de tê-la para poder ter-se a si mesmo, de um modo intenso e voluptuoso, tal qual nunca antes experimentara.
A ideia de fazer Matilda infeliz, porém, fazia-o infeliz. Como chegar para ela e dizer: “O meu amor por você acabou. Eu amo outra pessoa”? Como? Como acabar assim uma relação de tantos bons e maus momentos? Como botar um fim naquilo que um dia pensou-se eterno?
Numa noite de outubro, depois do sexo desapaixonado e metódico ao qual se habituara, Pedro respirou fundo, tomou coragem e disse, quase sussurrando:
– Ah!, Matilda, precisamos conversar sobre...
Por favor, Pedro!, tenho que lhe dizer uma coisa – ela interrompeu, assentando-se na lateral da cama.
– É sobre o nosso casamento... Olha, eu amo outra pessoa!, e acho que não posso mais viver junto de você assim, mentindo, escondendo isso. Me sinto tão suja, como agora, depois do, de... você sabe. Me perdoe por isso: pela covardia e pela franqueza da covardia. Me perdoe por eu não saber dizer isso de uma maneira mais delicada, talvez. Isso me dá nojo às vezes, sabe? Nojo de você; nojo de mim. Me perdoe, Pedro! Não me tenha mal; eu lhe peço, por favor...
Naquele instante o chão, sob os pés de Pedro, desapareceu. Como ela poderia estar fazendo isso com ele? Como poderia estar dizendo isso tudo? E ele olhou para ela como nunca antes havia olhado. Estava linda. Incrivelmente linda! Seu corpo, nu, de costas, ali em sua cama, tinha uma brancura inebriante, irresistivelmente erótica, incontrolavelmente provocante. Ele tentou tocá-la mais uma vez; uma, talvez, quem sabe, última vez. Mas ela recusou o toque, estendendo a mão para que ele não fizesse aquilo. Levantou-se depressa, vestiu a camisola preta que adorava e saiu do quarto. Pedro não acreditava que aquilo estivesse acontecendo. A sensação que percorria seu corpo era de leveza, de liberdade e de, estranhamente, tristeza. Pouco depois ela voltaria, com os cabelos molhados de um banho demorado. E já estava vestida, pronta para sair.
– Vou levar uma muda de roupa para uns dias, depois mando alguém apanhar o resto – disse, mexendo nas coisas sobre a cômoda.
.......Em seguida, segurando uma pequenina mala, sumiu do quarto e vida de Pedro, para sempre. Desde então, ele sequer suporta ouvir a voz de Milena ao telefone, seja convidando-o para o cinema ou para outro programa em que os dois tenham de estar sozinhos. Na memória de Pedro, como em um retrato colorido, há lugar apenas para as costas nuas de Matilda, e sua voz dizendo “adeus!, vê se se cuida”. E em seu coração, como num filme de Leni Riefenstahl, tudo é branco e preto; tudo é deserto e desolação. 




  

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

6.



Da união conjugal, ou: Do casulo e da borboleta



Um dia, quando o Sol estava a pino, Zaratustra viu um homem que conduzia um asno carregado com dois pesados fardos de feno. Os homens que o escutavam viram quando seus olhos ficaram enternecidos de compaixão, ante a servidão passiva da criatura.
“Que vedes aqui, senhores?”, ele perguntou, com um gesto solene, como somente ele sabia e ousava fazer. “Que vedes?”
E como os homens nada dissessem, pois que ele realmente não esperava que dissessem nada mesmo, continuou:
“Eu vos digo a que se afigura a cena: a união entre um homem e uma mulher; a isto que todos dão o nome de união matrimonial, realizada mediante contrato, e troca de alianças, e em presença de testemunhas. Mas, e por tantas precauções, eu vos pergunto: por quê? Porque um se faz para o outro, naturalmente, cônjuge. Sim, ‘fardo’, ‘fardo em comum’, ‘jugo com jugo’. No casamento, um e outro, mutuamente, comprometem-se em carregar o mesmo fardo, multiplicado por mais um, na alegria e na tristeza, no sorriso e no choro. Os que fazem o contrato e que, inocentemente, acreditam em um laço romântico-amoroso sublimado ao máximo, por este ou aquele querer, nem sempre lembram que, a não menos de dois séculos, inexistia o tal ‘laço romântico-amoroso sublimado ao máximo’... mas apenas o contrato mesmo, e os fardos. O amor venceu, afinal. Outros pensam. Pois, e se não é assim, que outro motivo seria tão grande e tão sublime ao ponto de fazer com que alguém, além do seu próprio fardo, quisesse carregar ainda o de outro? Ah!, que grande é a tentação do Idealismo! Por isso, ainda vos pergunto: quem impediu o florescimento de tantos vales? E quem negou o casulo à borboleta mais colorida? Compreendeis? Não!, vós não podeis! A minha doutrina é a doutrina do novo homem: o homem-pássaro.”
Mas o que as pessoas não entendiam mesmo era o porquê de Zaratustra usar tantas parábolas, tantas alegorias, tantas metáforas e tantas figuras de linguagem. 


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

5.


Da fortuna


Quando meu avô virou adubo, foi uma festa. Casa cheia, gente na sala, na cozinha, gente por todos os cantos. Os meninos brincando no quintal, e eu entre eles. É que as crianças não entendem o mistério da Morte, e nem o sofrimento que traz uma desencarnação aos encarnados. Mas entendem o espetáculo: o mundo é bom ou mau, sem quaisquer divagações contemplativas sobre a magnum mysterium. A apreciação estética, financiada pelo sensualismo, é a nossa primeira e mais verdadeira experiência com o Mundo, no Mundo. Sem a ratio, conhecemos – sem saber que conhecemos – a experientia pura, ou a experientia docet, como Levinas diria.
“Parem já com isso!” Dizia um.
“Vão brincar mais longe!” Dizia outro.
O mundo das crianças não é o mundo dos adultos. Definitivamente. E Dasdores, que Deus a tenha em bom e espaçoso lugar, que o diga. Nunca aprendeu a “ser adulta”, sempre criança. As pessoas diziam que ela era retardada em oito anos. Aos dezoito, tinha uma mente de dez. E o retardo, depois daí, parecia só aumentar. Nisso, aos trinta, parecia ter somente oito ou nove, ou menos.
“A bichinha!” Todos se apiedavam da mulher-criança. “Veio a este mundo somente para sofrer!”
Diziam as más línguas – ou não tão más assim – que o pai, aproveitando-se da ingenuidade da criança e do corpo da mulher, servia-se dos dotes sexuais de Dasdores. Mas isso ninguém nunca pôde provar.
“O povo fala demais, e de tudo”, ele dizia. “Tem gente que, quando morre, precisa de dois esquifes: um p'ro corpo e outro p'ra língua”.
O certo é que Dasdores, que não conhecia homem nenhum, pelo menos era o que todo mundo pensava, apareceu, assim, do nada, grávida. Aquilo, com certeza, não era obra ou graça do Espírito Santo. Que fosse uma obra não havia quem o negasse, mas não tinha graça nenhuma.
“Meu Deus! Que escândalo!” A família em pânico. Quem teria embuchado a retardada; pobrezinha...
E ela não dizia nada, nem mesmo sob as ameaças da mãe doente e da irmã mais nova que, com o tempo, assumira uma postura vigilante-ditatorial em benefício da segurança da irmã doida, e da honra familiar. Tempos depois, quando não era mais possível esconder a barriga da infeliz, ela foi enviada à casa de umas tias velhas que moravam no fim do mundo.
“Assim ela pode dar à luz ao vivente em paz e escapar do falatório desse povo maldito. Tem gente que tem prazer na desgraça dos outros.” Foi o que os pais disseram às tias, procurando convencê-las a cuidarem da retardada.
Meses depois a notícia: o menino nascera morto. Nem chegara a ver a luz deste mundo desgraçado de luz nenhuma. Dasdores, após o período de descanso, foi enviada a um convento para ser guardada pelo Senhor e pelos muros enormes que protegiam o santo lugar.
“Aqui ela ficará bem”, a Madre superiora, despedindo-se da família.
“Eu sei, Madre, por isso que a trouxemos para cá”. Respondeu o pai, numa tristeza que não disfarçava sua alegre alegria.
“Nos dias determinados, os senhores poderão visitá-la, conforme o tratado”.
E assim foi.
E assim passaram-se os dias que viraram meses, e os meses que viraram anos. Estranho foi quando, infortúnio!, Dasdores apareceu grávida novamente. Outro escândalo; desta vez não somente para a família, mas também para o convento.
“Deus, amado!” Diziam as irmãzinhas em polvorosa, “quem teria engravidado a irmã Dasdores?”
Cogitou-se a possibilidade de ter sido o padre Zé Vicente que, meses atrás, havia sido enviado a pastorear uma pequenina paróquia em Pinheiros, para escapar aos comentários de pedofilia que estavam sendo ventilados pela cidade. Pensou-se também se, numa infelicidade extrema, num descuido fatal, Dasdores não estaria grávida do jardineiro. Este, como ela, miserável, tinha uma mente de criança. Crianças que podiam gerar crianças. Mundo cão! Mas o infeliz, mudo qual uma porta, não fazia a menor ideia do que lhe diziam, ao fato relacionado. Logo foi descartada a possibilidade. Mas, infeliz realidade, quem teria sido o seu artífice? E agora? Fazer o quê? Entreolhavam-se os familiares de Dasdores e as irmãzinhas, coradas de vergonha. A solução que pareceu mais viável a todos e todas foi enviar Dasdores, novamente, à casa das tias distantes. Elas, tementes que eram, a Deus e à Igreja, não rejeitariam um pedido assinado pela santa Madre. Quisera Deus que, como da última vez, tudo se arranjasse, sem maiores complicações. E assim foi.
E assim passaram-se os dias que viraram semanas, e as semanas que viraram meses. Ninguém pareceu se importar muito quando a notícia chegou: Dasdores, dadas as complicações de um parto agonizante, não resistiu, morreu ao dar à luz a uma meninazinha miúda, esquálida, pálida... viva, porém. A meninazinha, tempos depois, na Paróquia de Santa Helena, seria batizada com o nome de Maria Dasdores, em homenagem à mãe e à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de quem a mãe era devota, mesmo que não soubesse o que fosse isso.
Dizem as más línguas que a menina, por esta data, decorrido apenas dois anos do seu nascimento, já demonstra claros sinais de retardo mental. Mas o povo fala demais, e de tudo. E tem gente que, quando morre, precisa de dois esquifes: um p’ro corpo e outro p’ra língua.


terça-feira, 15 de novembro de 2011

4.


Dos infortúnios 



“[...] a história não é o lugar da felicidade. Seus períodos de felicidade são suas páginas brancas”; são palavras de G. W. F. Hegel.
A Sra. Maia casou contra a vontade, para satisfazer os desejos dos pais, aos quais obedecia cegamente. Viveu com o Sr. Alfredo Maia longos e infelizes vinte e oito anos. Longos porque, nesse tempo todo, ainda morava em seu peito a imagem de Leonardo Gilthyer, a quem amava desde a mais tenra idade; tristes porque, de algum modo, sabia que não podia tê-lo, a não ser por meios ilícitos – contra a moral e tudo o que ia contra sua natureza e os votos feitos no altar, perante o Senhor e todas aquelas testemunhas. Mas, quem jamais compreenderia os desígnios de Deus?
Numa bela tarde, em pleno vigor de sua saúde, o Sr. Maia faleceu, abruptamente. A causa misteriosa, misteriosíssima, nunca seria descoberta. A Sra. Maia, não acreditando nos pensamentos que lhe vinham à mente, chegou a pensar se o Senhor, nos altos céus, em sua infinita misericórdia, não estaria lhe dando uma nova chance de ser feliz na Terra, ao lado do “seu” belo Leonardo – que ela sabia ter, por ela, os mesmos sentimentos, até então impossíveis.
Já durante o funeral, que se realizou em uma tarde chuvosa do dia seguinte, sem muitas pompas, a Sra. Maia diria a Leonardo, em um misto de tristeza, alegria, ansiedade e discrição: “Agora precisamos ter paciência. Se já suportamos tudo isso, até agora; poderemos, sim, aguardar por mais um pouco... até que o morto seja esquecido pelo populacho”. E Leonardo, como sempre, amável e paciente, assentiu à proposta.
Os sofrimentos da Sra. Maia, nos dias após o incidente, multiplicaram-se assombrosamente. Por um lado, sofria com o remorso de não ter sido uma tão boa esposa e, na morte repentina do seu pobre marido, não ter disposto do tempo necessário para lhe pedir perdão por algo que houvesse feito, contrariando-o; por outro, sofria com a expectativa de que o tempo passasse logo, para que ela, enfim, pudesse entregar-se ao amor do seu Leonardo. E assim, quando não era assombrada pelo fantasma do marido morto, tão vivo, reclamando um amor que nunca tivera, era assombrada pelo fantasma da solidão, do desejo de possuir e ser possuída pelo amor a que resistira por tantos e tantos anos.
Passaram-se duas primaveras antes que a Sra. Maia recebesse pela primeira vez em sua casa o respeitável e distinto Sr. Leonardo. Marcaram o casamento para o final de maio do ano seguinte. E, para manter o respeito e as aparências, restringiram esses encontros a dois por semana, e sempre na presença de convivas, para que não levantassem suspeitas quanto à idoneidade das pessoas dos enamorados e daquele novo relacionamento.
Fim de maio.
O dia tão esperado, por fim, chegara. A Sra. Maia quase não conseguia conter sua alegria e ansiedade. Oh, Deus! Por que as horas não passavam? O noivo, que morava não muito longe dali, viria em uma charrete especialmente alugada para a ocasião tão festiva.
Mas horas não passavam; pareciam eternas...
E Leonardo, por que não chegava logo?
O tempo não passava...
Não é o noivo que aguarda a noiva no altar?
Por que essa inversão? Por quê?
O tempo não passava...
O que estava acontecendo? Alguém teria de lhe explicar algumas coisas.
Quando o criado chegou, a Sra. Maia previu mil recados, mil justificativas, mil motivos para o atraso do seu amado; não previu, porém, aquele que aquela infeliz criatura trazia: o animal que puxava a carruagem assustou-se, não se sabe com o quê, e, descontrolado, fez o transporte tombar violentamente. Num lance de pura infelicidade, Leonardo, caindo de costas, bateu com a cabeça numa pedra à beira do caminho. Morreu em seguida.


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

3.


Do lugar em que o Amor habita 


Gabriela amava Júlio, que, coisa mais normal do mundo – e Drummond que o diga –, não lhe correspondia; porque em seu coração somente havia lugar para o Alfredo... que morreu de AIDS em agosto de ’99. 
........“Agora que o Alfredo bateu as botas”, Gaby pensava, “o Júlio há de olhar para mim. Ahhh, há!”. 
........Mas qual o quê! Cinco meses depois, em uma festa de carnaval, o Júlio achou de se enrabichar por um traveco alto e enxerido chamado Luana. 
........“Bicha feia da porra! Vai-te foder, Júlio César Pereira da Silva! É o cão chupando manga verde com sal e pimenta! [Suspiro] Ai, meu Deus!, como eu odeio esses viados de merda!” 
........Era Gaby praguejando, em seus excessos de ira, frustração e orgulho ferido. 
........Hoje, aos 40, ela diz ter amor apenas à sua cadela poodle, a quem batizou com o nome de Alfredo, em memória e vingança contra o falecido.  


quinta-feira, 10 de novembro de 2011

2.


Dos vinhos 


De conformidade com o provérbio latino, in vino veritas, “a verdade está no vinho”. O mesmo é dito por Balzac, nos Esplendores e misérias das cortesãs: “Corentin chamou Derville de parte e disse-lhe: – In vino veritas! A verdade está debaixo das rolhas”.
Pois foi assim que Carlos Eduardo, numa festa de final de ano, depois de anos e anos de solidão e de amoroso silêncio, mediante os efeitos inebriantes do néctar dos deuses, declarou à Maria Estela, de joelhos, no meio sala, entre os convivas:
Eu te amo, Maria Estela; sempre te amei!”
O povo amigo, igualmente alterado, desabou em assovios e aplausos de “arre! finalmente!”, e danou-se a repetir, com palmas desencontradas: “Beija! Beija! Beija!...”
Era evidente que o Carlos, in natura, não teria coragem de fazer o que fazia ali, aquela cena toda. E Estela sabia que ele, apesar do porre, falava sério e tinha lucidez suficiente para compreender as implicações decorrentes do fato dado. Todos na sala, os que assistiam a cena “hollywoodiana”, sabiam que Estela também nutria o mesmo sentimento em relação ao confessante que esperava uma resposta favorável ao seu amor de tanto guardado. Estela, todavia, corada de vergonha ante a cena tão cafona, conseguiu mesmo foi deixar a sua taça cair, manchando a ponta do tapete. E todos que esperavam ouvir um “eu também te amo”, ouviram apenas uma voz tristonha e melancólica que dizia por entre os dentes:
“Levante daí, Carlos! Você está ridículo!”
E a festa, claro, não foi mais a mesma. É, in vino veritas, de um jeito ou de outro. Estava claro que Estela, se não estivesse sóbria, não falaria assim ao homem da sua vida; o mesmo homem que, no dia seguinte, e nos dias subsequentes, passaria a evitá-la, como o Diabo à cruz. É que o Carlos Eduardo, além da vergonha do horroroso vexame, nutria agora uma crescente antipatia àquela que, de modo tão frio, o rejeitara.   


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O grande livro do amor


Livro 1



Em que são dados exemplos cotidianos do amor platônico-romântico, a fim de se destacar o trágico que impera sobre todas as relações afetivas, no Mundo. A dor, como na filosofia de Arthur Schopenhauer e na obra cinematográfica de Werner Herzog, é o motor de tais modelos que, nos Livros 2 e 3, como se verá mais adiante, serão aclarados. 



1.

Das amorosas opções

Etelvina amava Marcelo, a quem chamava de Marcelinho, “meu Marcelinho”. Mas, lástima do acaso!, surgiu Vicente – que a mulherada dizia ser umpoço de perdição de boniteza”. E Etelvina, que amava Marcelo, viu aquele amor todo voar para os olhos de Vicente, os cabelos de Vicente, a boca de Vicente, e tudo o mais que dizia respeito ao Vicente. Viva Vicente para presidente! 
........Pois você não sabe, Helena? 
........O amor é sempre assim: exagerado e espalhafatoso; grita nas vias públicas; envia torpedos e recados melosos pelo Orkut, pelo Twitter, pelo Facebook; é grudento e adocicado igual suco de mangaba, e doce de goiaba. O amor tem dessas macaquices: está num galho, fazendo caretas e comendo piolhos da cabeça do outro e achando tudo lindo e maravilhoso; daí, “de repente, não mais que de repente” – que nem no poema do Vinícius –, pula para outro galho que é mais verdoso, segundo o seu incerto e fogoso juízo. E “do riso faz-se o pranto. De repente, não mais que de repente”. 
........É por isso que o amor também vive acompanhado da dor; causa da sua constante inconstância. Vez por outra um galho se parte. O amor, cheio de si, pesadão, despenca galho abaixo, vai ao chão. viu um amor durar para sempre? Nunca! Somente nas histórias bestinhas que contam às crianças de sete oito anos: “... e os dois viveram felizes para sempre”. 
........Não, Helena! 
........O amor mesmo, na vida real, está em tudo, mas é cego e variável, variante. Sonha sempre com um galho mais verde que aquele em que se pendura; sonha sempre com um rosto que nunca muda, como se quisesse para si uma estátua que fosse viva. Mas, como secam as árvores, também o amor, que não gosta de pau seco, sonha com outros galhos, com outros rostos. Mas sempre haverá gente besta dizendo que amará para sempre aquele ou aquela que julga amar; e é por isso que surgem as tolas promessas de que nunca haverá de haver um galho mais verde e mais vistoso do que este que agora se tem – pois que o amante sempre pensa possuir o amor do seu objeto. E na sua felicidade temporal, deseja a eternidade. Nietzsche, por boca de Zaratustra, dizia que “todas as coisas acham-se encadeadas, entrelaçadas, enlaçadas pelo amor”, e que, inutilmente, dizemos ao sofrimento: “Passa [...]! Pois quer todo o prazer – eternidade”. Também o Manoel de Barros, poeta pantaneiro, numa tirada de mestre, afirma: “Duas coisas que não vão acabar nunca no mundo são: gente besta e pau seco”.  


terça-feira, 8 de novembro de 2011

63.


Conclusão contra as conclusões 


Por que fragmentos? Porque Fredrich Schlegel, em quem acredito, acredita que “Um fragmento tem de ser igual a uma pequena obra de arte: totalmente separado do mundo circundante e perfeito em si mesmo, como um porco-espinho”, e porque Novalis (Friedrich von Hardenberg), à margem do tal fragmento de Schlegel, anotou: “O porco-espinho: um ideal”. Como os espinhos estão para o porco, assim também os fragmentos, ligados ao um que não é o todo, mas parte: um porco, uma pele, um motivo, uma intencionalidade, uma coerência, uma incoerência, et cetera. Fragmentos, pois, são como flechas que acertam vários anéis de um mesmo alvo. Dizendo que há um arqueiro, e um espaço entre os dois... e uma ação. O haver ação é o que impulsiona toda a trama: da História, da(s) Arte(s), das Filosofias, das Teologias, et cetera. Fragmentos, pois, são como flechas: soltas, ligeiras, em movimento. Para o “fim”, basta a palavra – que nada finda, realmente –, ou a sua ausência... Ficaremos na ausência.     

FIM

OBSERVAÇÃO!
Findam-se aqui os textos que compõem os “Escousses provocativos a todo discurso filosófico-teológico que deseja-se levado a sério”. Na sequência, textos do inédito O Grande Livro do Amor.


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

62.




Da originalidade inédita dos clichês




É fácil, bem fácil, cair nas repreendas do historiador paulista Sérgio Buarque de Holanda. Segundo ele, é frequente, à pseudo-intelectualidade brasileira, o alimentar-se das mais variadas e díspares doutrinas estrangeiras.* Daí, mais que nunca, o constante regurgitar de declarações, conclusões apressadas e convicções igualmente díspares, descartáveis, estilo zapping... e o resto é pastiche. Adaptar velhos discursos fundamentados sobre “verdades” subjetivo-individuais, igualmente velhas, e apresentá-los como coisa nova e original é, também, cair no clichê mais que gasto dos... clichês: colagens sobre colagens, embrulhadas no exibido rótulo de “pós-modernismo”. Pastiche! Pastiche. E para que eu mesmo não me demore a repetir o já dito, redigirei o incrível e inédito Livro das conclusões, em que provarei, por A + B, e com base em minha novíssima Filosofia da adequação, que todas as conclusões são coisas... desnecessárias.

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* E pergunto se, algum dia, sairemos do primeiro parágrafo de Raízes do Brasil (1936): “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, senão adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso e, ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto do nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.”  


terça-feira, 1 de novembro de 2011

61.


Da morte e do morrer, e do Grande Significado


Vida nenhuma, de nenhum indivíduo, pode ser tirada. Caso fosse, ele ainda haveria de ser, sem a vida – que lhe seria imputada como falta. Sim!, ser, é ser consciência. O indivíduo, não sendo, nada tem que lhe possa ser subtraído. É matéria na matéria; e só. Algo somente pode ser subtraído do que é (que sabe que é), mesmo após a subtração. Eu, se não sou, nada sei da vida que me falta. Que sou, portanto? Novamente: consciência. O que isto que dizer? Que a Vida mesmo é, mas não pertence; na condição de “propriedade”. Portanto: posso perder um amor, posso perder um amigo, mas não posso perder a Vida. Não posso perder o que não me pertence. Posso acabar com a vida que há em mim, mas não como a Vida. Viver é sentir-se, saber-se: eu sou o que sei de mim e, daí, do Outro, e do Mundo. O “sentir”, porém, e como ensina Alberto Caeiro, “é estar distraído.” De fato: a nossa vida é fenômeno da Vida, que não é nossa e nem de ninguém - fenômeno. Dizer o fenômeno é procurar dar significado ao fenômeno – mas, que significado ele teria senão ser si-mesmo? No mundo (excetuando-se o fato de que podemos pensar sobre nos mesmos), também somos coisas – coisas que pensam-se a si mesmas como mais que coisas - e daí as metafísicas, as sublimações, os idealismos. Não nos basta ser homem; não nos basta ser mulher. Não!, procuramos por um significado real do ser – isto é: o sentido de estarmos vivos; seus para quês. Mas, ah!, não há tal significado; não ha outro sentido senão o pensar sobre o sentido.

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum.
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: –
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

        É, novamente, Caeiro (Fernando Pessoa). É, naturalmente, uma desconstrução deste nosso racionalismo ocidental – que defende o engavetamento metódico do sensível, ou a departamentalização de tudo o que se sabe haver: em reinos, em categorias, em classes, em gêneros, em grupos, et cetera. Tal sensualismo fenomênico, adequado ao poema, “exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender.” Coisa que, por estar evidentemente contra a estrutura das academias, não lhes interessa. Um dito, mesmo mal dito, é melhor que dito nenhum. E é assim que a Vida, por meio da “nossa vida”, e através de todas as coisas que lhe são necessárias, é avaliada como boa ou não: pela ética, pela estética, pela religião – recursos da própria Vida (ou da Vontade), no fito de manter-se a si mesma. Vida é uma coisa; consciência de Vida, outra; viver, particularidade individual. Quem pensa a vida, começa a não viver. Viver é estar distraído.


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