segunda-feira, 24 de setembro de 2012


18.






De como ficam tolos, os bêbados e os apaixonados




Tarde de sábado em Campina Grande, ali no Ferro de Engomar.
No bar, que ganhou o nome por ter o formato de um ferro de passar roupas, encontrei amigos que já estavam por lá desde a hora em que a manhã cumpriu o seu ofício. Havia cachaça em copos espalhados sobre a mesa, e cerveja, e cigarros, e conversas atiradas para todos os temas. Um grupo de homens tocava samba, mantendo o que já é, ali, tradicional ajuntamento. E até me arrisquei a tocar algumas coisas junto com eles, armado com um triângulo.
Notei a mulher posta em pé, próxima à porta do banheiro. Seu companheiro lhe pagava bebidas e, vez ou outra, cobrava alguns carinhos. E ela parecia feliz, protegida pelo seu homem. Dois completos desconhecidos.  
Tarde bem caída, e quando todos pareciam ensaiar as primeiras despedidas, a mulher subiu ao balcão e, sem se importar com as reclamações do dono do bar – que depois me disse estar morto de cansaço, por não haver dormido nadinha na noite passada –, olhou para todos que, surpreendidos pelo gesto, deveriam ter, se fossem personagens de uma história em quadrinhos, aqueles balões cheios de interrogações desenhados sobre as suas cabeças.  
– Gente! Genteee! – ela falou, como a pedir atenção. – Eu posso falar?
Todo mundo aplaudiu, respondendo em coro e acompanhando os gritos com palmas:
– Fala! Fala! Fala! Fala! Fala!...
A cara do dono do bar não era de satisfação, mas, diante do apelo comum, deixou que a cena continuasse.
– Vocês sabem o que é o amor? Vocês sabem o que é o amooooor? – Perguntou assim, de modo retórico, esticando bem muito o “ôooor...” no final da palavra. – Eu vou dizer. O amor é uma coisa muito louca, mas é muito lindo também.
– Êeee... – Todos aplaudiam, em festa e picardia. Ela continuou:
– Eu subi aqui somente para dizer isso, e dizer que amo esse homem. – Tinha a cara encabulada, mas resistia, feliz e embriagada, apontando para o homem que também parecia meio acanhado.  
Daí, e atestando a veracidade da loucura que é o amor, todos começaram a gritar ainda mais e ainda mais agitados:
– Tira a roupa! Tira a roupa! Tira a roupa! Tira a roupa! Tira a roupa!...
Mas ela não tirou.
Desceu do balcão, ajudada por seu companheiro, que lhe recebeu com um beijo, atendendo à saraivada de palmas e gritos de “beija!, beija!, beija!, beija!, beija!, beija!..”
“A paixão é uma dama perversa, e de reações têpêemísticas variadas!”, pensei, na hora, lembrando-me de um fala do Fedro, n’O banquete, de Platão, em que a coragem alucinada dos apaixonados é pura sandice e, por isso, “dê-me um exército de amantes e conquistarei o mundo”, ele dizia.1
Na literatura, a temática amorosa costuma privilegiar o absoluto do amor, a opção eletiva do um pelo outro, nas promessas de exclusividade do amante ao seu objeto.  Na literatura ocidental, especialmente, o tema do amor também é alimentado pela tragicidade, pelo obstáculo e pelas tantas provações – puro platonismo.2 A maior história de amor do Ocidente termina com o seu personagem principal crucificado, e por amor a uma que, na trama, aparece como sua noiva... Ele se vai, prometendo voltar logo, rico e majestoso; ela o espera, pacientemente, sem pensar em se dar a outro.  
Figurado em Alceste, que oferece a sua vida em favor do seu marido3, Roland Barthes reconhece a historicidade do discurso ausente, aquele marcado na voz da Mulher: e ela que espera o Homem que partiu – como Penélope, a Odisséu; como a Igreja, a Cristo –, dispondo de todo o tempo do mundo para tecer o seu tapete, construir a sua doutrina poético-teológica, ou elaborar a intrincada ficção de um discurso interior: “[...] a ausência apaixonada dirige-se apenas num sentido e não pode exprimir-se senão a partir de quem fica – e não de quem parte: o eu, sempre presente, não se constitui senão em face de ti, sempre ausente.”4
Seja no andrógino de Aristófanes, narrado por Platão5, seja na Eva, feita da costela do Homem – e, por sua causa, a sua ruína –, o que há, nas relações afetivas, pela união ou pela separação, é a insatisfação satisfeita, a dor consentida, o “fogo que arde sem se ver”, a “ferida que dói e não se sente” – e isso, naturalmente, não explica o ideal, nem o revela, mas o real, e o animal no/do homem (no sentido mais abrangente do termo), sempre à caça não de uma vítima, mas da vida (Vontade de vida)... embora domado pelas morais dominantes, a heterônoma ou a autônoma, especialmente.
Na primeira parte de O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, publicado em 1841, Sören A. Kierkegaard mostra que o discurso de Sócrates, em contraponto ao dos seus predecessores, n’O banquete, tem a ironia como método. O pensador dinamarquês não tem uma novidade maior que esta, e apesar das críticas que faz ao romantismo6. Às coisas do amor, se ainda permanecemos em Kierkegarrd, será preciso ir à outra obra sua, o primeiro volume de A alternativa: Diário de um sedutor... mas, mesmo aí, e o estágio do esteta que aparece, e que, como se sabe, será ultrapassado pelo ético, e, este, pelo religioso. Mas, não vou falar disso... por hora.
Se, à semelhança daquela mulher apaixonada, eu também subisse ao balcão e fizesse um discurso sobre o amor, mas dizendo o que é que ele é mesmo, de verdade, era bem capaz de tomar umas garrafadas no meio da cara, para aprender a não estragar a festa alheia.  






1 O banquete, 179 a. PLATÃO. O banquete (O Simpósio ou do Amor). Lisboa: Guimarães Editores, 1986.
2 Veja o discurso de Sócrates, reproduzindo os ensinos de Diotima, em: O banquete; e também o Fedro. PLATÃO. Fedro (ou da Beleza). 6. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.
3 Cf. O banquete, 179 b.
4 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 52.
5 Também n’O banquete, 189c–193e.
6 “A ironia trabalha com o mal-entendido. A própria banca examinadora [da tese de Kierkegaard, que resulta no referido livro] experimentou isto na carne. O orientador da tese, Prof. F. C. Sibbem, não entendeu bem a ligação da primeira com a segunda parte, enquanto outros pareceres falaram até de dois trabalhos distintos, um sobre Sócrates e outro sobre o romantismo.” (VALLS, Álvaro. L. M. Apresentação. In: KIERKEGAARD, S. A. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 11. [Col. Pensamento Humano]).


terça-feira, 11 de setembro de 2012


17.






De como Ghiraldelli não explica nada sobre o amor (Parte 2, e final)




Rio de Janeiro, 25 de outubro de 2011, 05:35. Aeroporto Internacional do Galeão, aquele do Samba do avião, música do Tom Jobim; e que, por isso, também tem o nome dele, como homenagem.

– Tá gostando?
– Ah!?
– Do livro.
Um homem de barba rala, já quase toda branca, alto e de aspecto sisudo, porém gentil, apontava para o livro que eu segurava com alguma atenção. Daí notei quem era: Paulo Ghiraldelli Jr., autor de Como a filosofia pode explicar o amor. O livro que, por acaso, eu tinha em mãos. Não vou mentir dizendo que não fiquei meio constrangido e, talvez por isso, não soube bem o que dizer além de um honesto:
– É para ser honesto?
– Sim! Por favor! – Ghiraldelli disse, parecendo confiante e muito animado.
No automático, lembrei-me da crítica de Nietzsche ao cristão materialista David Friedrich Strauss, por seu livro A antiga e a nova fé, de 1872, que fizera aumentar o alarde já iniciado com a publicação de A vida de Jesus, de 1836. O impacto dessas obras na sociedade europeia da época, e o modo como o nome de Strauss estava ligado ao de Hegel, foi o que fez Nietzsche se opor ao referido pensador. Na Primeira consideração intempestiva: David Strauss, sectário e escritor, Nietzsche o acusa de, dentre outras, desconhecer a filosofia, não fundamentar consistentemente a sua ideologia cristã materialista-evolucionista e, de muitos modos, ser débil em suas argumentações, além de dominar precariamente a língua alemã, escrevinhando frases desconexas e sem sentido, mal elaboradas e, às vezes, ofensivas à mínima estrutura de um sistema linguístico que preze pela divulgação de ideias e alguma cultura. Também acusa os leitores de Strauss. Esses, ludibriados pela água turva do poço, deixam-se enganar por sua pretensa profundidade. A coletividade alemã é despreparada culturalmente e, por isso, incapaz de demonstrar senso crítico contra escritores como Strauss; é, igualmente, incapaz de acatar verdadeiras críticas e novas propostas de pensadores sérios; assim, e pelo modo como consomem tais obras, favorecem o surgimento e a proliferação de autores mesquinhos e ávidos por fama e fortuna, como o esperto Strauss.
– Na verdade – eu disse, agora pensando em outros espertos, como Ghiraldelli ou Gabriel Chalita –, penso que o senhor realmente não mostra como a filosofia pode explicar o amor. Com exceção do trecho que fala sobre Freud... – procurei o sumário – ... no capítulo 8, e que nem é lá tão extenso, não creio que autores como Schopenhauer, citado apressadamente, Lou-Salomé e Stendhal, somente para lembrar alguns dos mais relevantes, devessem ser ignorados em um livro que, ao menos no título, tanto promete.
– Mas eu falo de Stendhal...
– “Menciona”, e quase por acidente, e o faz em referência a’O vermelho e o negro. E quando o Do amor aparece, acho que é no capítulo 13 – lembrava bem disso porque havia associado o tal capítulo à passagem famosa da carta de são Paulo Aos coríntios –, é em uma referência muito discreta, como não deveria ser; para ele, pelo menos um capítulo, inteiro... e não pequeno.
– Nossa! – Ele disse –, você leu mesmo, hem?
– ...
– Mas, melhor assim. Ao menos mostra que leu. Fale mais.
– No capítulo dedicado a Freud, é O mal-estar na civilização que aparece. Penso que, para falar sobre o amor romântico, que está no mesmo nível da religião, pela sublimação que fazem das afecções, delirando sobre a pureza e a eternidade da sua Fonte, seria mais adequado utilizar O futuro de uma ilusão e...
– Mas – ele atalhou –, já que você prestou tanta atenção, deve ter notado que, até pela quase ausência de referências, notas de rodapé, índice anosmático e temático, é uma obra que se destina a um público, digamos, um público mais leigo.
– E não por acaso eu o comprei em uma banca de revistas.
– Foi? Onde?
– Lá em João Pessoa, na Paraíba.
– Olha aí! – Parecia contente. – Vejam só onde chegamos!
– ...
– Mas, você esta vindo de onde para onde?
Disse que era de João Pessoa mesmo, e esperava uma conexão para Porto Alegre. O voo, por ventura ou por azar, estava atrasado e sem perspectiva de chegada, devido ao mau tempo.
– Porto Alegre! – Ele disse, repetindo a minha última frase. – Desculpe, acho que não perguntei teu nome.
– Antonio Patativa de...
– De Assaré?!
– ... de Sales.
Sempre me impressiono de como as pessoas fazem essa piadinha, tão sem graça. Mas eu nunca fui deselegante por isso, e não seria, agora, com um colega de ofício. Assim, somente acrescentei:
– O de Assaré morreu em julho de... 2002; eu, ao contrário...
– Que Deus o tenha! – Ele disse.
– Duvido muito! – Respondi.
– Não acredita em Deus, Antônio?
– E nem no amor; ao menos como está escrito aqui, em seu livro. É sério: por que é que a gente tem tanto medo de dizer que... o rei está nu? Diga aí, companheiro.
– Hummm... Antônio, se você olhar bem aí... Posso pegar? – Entreguei o livro e deixei que ele procurasse o que, parece, queria me mostrar. Demorou um pouco a que achasse o trecho, e vibrou discretamente ao encontrá-lo, um leve riso de satisfação. – Aqui, ó! Página 58, capítulo 8: “Freud trouxe à baila algo que Schopenhauer e Nietzsche intuíram: que deveríamos prestar mais atenção à ideia de amor como algo vindo do mundo terreno, por mais espiritualizado e/ou idealizado que este pudesse parecer, como de fato se fez representar no chamado amor romântico.”
– ...
– Bem, é alguma coisa; não é? – parecia meio desapontado.
– “Freud trouxe à baila algo que Schopenhauer e Nietzsche intuíram...” Intuíram, nada! – Eu disse. – Eles foram bem além da mera “intuição”. Capítulos como Leben der Gattung, Methaphysik der Geschlechtsliebe e Die Pederastie, de O Mundo como Vontade e como Representação, não são, de forma alguma, mera “intuição” – desenhei as aspas no ar, com as pontas dos dedos, aproveitando que ele ainda segurava o meu/seu livro. – Uma geração antes de Darwin e 60 anos antes de Freud ou Nietzsche – continuei –, Schopenhauer foi o primeiro a apontar as razões inconscientes e biológicas para o amor. Coisa que, hoje, parece bem óbvia às pessoas mais entendidas e menos dadas às fantasias românticas.
– É – ele disse –, parece que tenho de admitir que não me detive o suficiente no velho Schopenhauer, embora tenha, de certo modo, apontado um pouco sobre o seu pensamento amoroso ao falar sobre Freud, sobre o Eu,  o corpo e...
– Foi Schopenhauer quem identificou o eu ao corpo: Eu-corpo; e o corpo ao mundo: corpo-mundo. Daí concluiu, partindo dos sentimentos imediatos deste último, que a essência íntima de cada coisa é a Vontade. Ele partiu da própria subjetividade egótica, como também fizeram os demais filósofos do idealismo alemão, mas lhe imprimiu uma dimensão novíssima de tratamento. Faz isso ao acrescentar, nela, a sua qualidade corpórea. A novidade que isso trouxe ao idealismo não foi percebida por seus contemporâneos. E ainda hoje se coloca a Nietzsche e Freud como promotores dessa descoberta decisiva. O mesmo se dá, de acordo com Roberto Rodríguez Aramayo, em relação à descoberta dos impulsos sexuais, relacionados à vontade de vida, etc.
– Roberto?...
– ... Rodríguez Aramayo, no “Estúdio preliminar” que faz à edição castelhana de Metafísica de las costumbres, de Schopenhauer. Parece que editado pela... não lembro a editora.
– Vou verificar isso.
– Lembro ainda que, no mesmo Estudo, falando sobre a influência da “teoria do amor” de Schopenhauer sobre Freud, Aramayo diz que esse não parecia muito disposto a ver em Schopenhauer o muito da sua inspiração, como registra em sua Autobiografía. E ele cita o trecho – reproduzi o mais fielmente que pude, conforme lembrei –: “A ampla convergência da psicanálise com a filosofia de Schopenhauer, que não somente reconheceu a primazia da emoção e da extraordinária importância da sexualidade, mas também o mecanismo de repressão, não pode ser atribuído ao meu conhecimento de suas teorias, como vi em Schopenhauer, mas em uma época muito avançada em minha vida.” Freud preferia confessar déficits ignorantes de leitura a dar a glória de uma “descoberta atribuída”. Enfim.
Ghiraldelli parecia entediado; e eu acabei ficando. Ele devolveu o livro, dizendo:
– Mais alguma observação? Esse nosso voo parece que vai demorar mais que o esperado.
– Pior que é. Então você está indo à PoA também?
– Pois é.
– Ah!, lembrei de uma coisa que, putz!, não poderia deixar passar.
Ele riu, como a dizer “lá vem você de novo”, e fez sinal para que eu prosseguisse.
– E quando... deixa eu ver aqui... – Localizei o trecho, que ficava no comecinho do referido capítulo “dedicado a Freud”, e li –: “Não canso de admirar as músicas de Rita Lee. As dela ou as que ela escolhe para interpretar. ‘Amor é isso, sexo é aquilo’, de ‘Amor e sexo’, é uma das frases mais fantásticas que eu ouvi. – Olhei para Ghiraldelli, com cara de “ah, tá!, senta lá, Cláudia!” Ele não disse nada. Continuei: – “Leva à verdade, à reflexão e, mesmo fazendo tanto, mantém uma simplicidade estonteante. O amor é o que está perto, isto aqui, ora, mas que o sexo fique bem longe, que seja aquilo lá. ‘Amor é isso’, veja que bonito!” – Fechei o livro, inconformado:
– A beleza, aí, não é mais que uma vontade que ela seja, para além do feioso “aquilo lá”. I believe the common denominator of the universe is not harmony; but chaos, hostility and murder.” Herzog acredita como Schopenhauer; e eu os sigo, nisso. Não há beleza alguma na procriação, na luta pela vida. O Pequeno Príncipe pensando em sua Rosa vaidosa... é a tradição romântica inteira mantida, sob a máscara de um Eros domado. Solum poeticae litterae, tantum fidem. Ademais, a letra nem é de Rita Lee, mas do Arnaldo Jabor. Pelo amor de Deus!...
– Eiii...!, e quando eu falo em “as dela ou as que ela escolhe para interpretar”? Isso não conta, não?
– Sim!, até conta. Ou melhor: até contaria, se, depois, logo na página seguinte, não estivesse assim – reabri o livro, na página 58, e mostrei-lhe o trecho que eu havia grifado com grafite –: “Sob essa luz dupla, sua atividade poderia ser descrita como uma tentativa de modificar a frase de Rita Lee.” Rita Lee? E que frase seria essa?
– “Amor é cristão, sexo é pagão...”
– Exatamente! Pode até ser bonita a frase (que não é da Rita), mas não tem nada de verdadeiro nela. E é exatamente isso que, parece, poderia ter sido mostrado, através de Schopenhauer, Freud, Nietzsche ou mesmo Lou-Salomé, dente outros e outras. E tem mais...
– ... Pode falar.
– ... Você diz que o livro é destinado ao público leigo, et cetera. Se é, para que utilizar, e sem tradução, termos latinos como par excellence e mutatis mutandis? E isso, a utilização deles, bem mais de uma vez. Soam deslocados e... deselegantes, dentro do grande contexto. E quando, aqui... – mostrei-lhe a página 50 – ... você cita Luc Ferry, a referência que aparece (“Aquele que é consciente do seu pensamento e responsável pelos seus atos”) é a uma obra sua, em que você já havia citado a citação, e a gente acaba sem saber onde foi mesmo que o danado do Luc Ferry disse isso. Há mais referência e referências às tuas próprias obras, Ghiraldelli. É como se, para justificar algo que você diz, você recorresse à sua própria autoridade. E por falar em autoridade: quando você faz referência ao “amor cristão”, baseado na obra de Hannah Arendt, é pensando n’A condição humana, e subscrevendo-a, como se o que ela diz aí fosse certo e acabado. Para falar de amor, em Arendt, eu escolheria O conceito de amor em Santo Agostinho, que é onde isso parece estar bem mais claro e fundamentado, embora equivocado... por afirmar coisas como esta, que está em seu livro: “Diz Arendt que foram os romanos, e não os gregos, que lançaram a ideia de comutar penas, em especial a pena de morte. O hábito de governar povos conquistados, a partir de províncias, obrigou os romanos a introduzir formas de amenização de penas. Todavia, foi só com o Evangelho de Jesus que surgiu o conceito de perdão.” É como se a história do mundo se resumisse à história do Ocidente, e fosse toda ela cristianizada. Naturalmente que é preciso destacar a noção de perdão, na perspectiva jurídica, e o perdão, na perspectiva teológico-salvífica, como aparece na cristandade, et cetera. Agora, confundir o perdão com o amor, e sublimá-lo, como se a coisa sublimada fosse real e fundamento de fundamentos, aí é que está o mais do mesmo do livro, e a manutenção do status quo do pensamento e do erro mais comum a tantos e tantos que escrevem sobre o amor. Essa é a grande novidade em Schopenhauer, ausente em teu livro. Ele, apesar de também ter se voltado a’O banquete de Platão, como você também faz, e ao Fedro, supera-os, depois de elogiá-lo, dizendo que ele foi o que mais se dedicou ao tema do amor sexual. Mas o que Platão dizia sobre o tema, conforme Schopenhauer, não passava de mitos, de fábulas e anedotas que se referiam, geralmente, à pederastia. Assim, sobre o tema do amor, Schopenhauer não teve predecessores a copiar; e os seus contemporâneos nada diziam que fosse digno de grandes comentários...
– Boa observação! Não tenho o que contestar. Admito que deveria ter dado mais atenção a pormenores como esses...
– E outros.
– Outros? Quais?
– Tem um que é central, superior a todos. Foi por causa dele que, logo de cara, vi que o teu livro não me seria lá de muita ajuda.
– Uau! Isso me pareceu bem imodesto.
– O que é a modéstia?
– Ok! OK! Evitemos essa digressão. O que foi que deixou o meu livro tão... rebaixado em teu conceito?
– Logo no primeiro capítulo, quando você descreve os tipos de amor, na literatura, et cetera. Os que aparecem: Eros, philia e ágape. Você não vai, em nenhum capítulo depois, dizer que esses amores, todos eles, são apenas meios de falar, por outro viés, do amour de soi, do amor-próprio, ou o stergein dos gregos, e nosso, naturalmente. Não foi por acaso que eran e stergein, no Novo Testamento, foram evitados. Você não somente subscreve o Novo Testamento como subscreve a quem o subscreve, como Agostinho e Arendt, exaltando festivamente as sublimidades de philein e agapan. Não posso aceitar isso senão como uma espécie de manutenção ad infintum das histórias da carochinha, dos contos de fadas, do amor do Pequeno Príncipe à sua Rosa, e mais do mesmo... um equívoco milenar. Hoje, na emergência do sujeito, não precisamos mais de subterfúgios como “egotismo”, para driblar o velho sentido pejorativo do Eu supervalorado. No início do Walden, de Thoreau, ele diz que “a maioria dos livros omite o eu ou a primeira pessoa”, daí, e como justificativa, o seu eu, ali, será mantido; e essa é a sua diferença, em relação egocentrismo. “Geralmente não lembramos que, afinal”, ele diz, “é sempre a primeira pessoa que está falando.” E, “eu não falaria tanto sobre mim mesmo se existisse alguma outra pessoa que eu conhecesse tão bem.” No amor ou no ódio, para o amor ou para o ódio, a nós mesmos ou aos outros, é o nosso Eu-messsmo que aparece – falei assim, esticando o “s” bem muito, e metendo um excessivo “nosso Eu-messsmo” para enfatizar a ênfase. – O que fazemos disso é que são outros quinhentos e, daí, a importância atual da ética, mas a autônoma, nunca heterônoma. Madre Teresa de Calcutá: ágape ou stergein? Não há dúvida: stergein. Mil vezes stergein! Quanto mais amor, tanto mais egoísmo. Santa Teresa D’Ávila, o piedoso Padre Pio, Adolf Hitler, Pol Pot, Pinochet, Reverendo Moon, Billy Graham... tudo stergein, de um jeito ou de outro...
– “Atenção, senhores passageiros do voo...”
Era a voz no sistema de som do aeroporto, informando que a aeronave já estava se preparando para pousar e que, em breve, anunciariam os procedimentos para o nosso embarque.
– Ufa!, finalmente! – ele disse.
O seu “ufa!”, desconfiei, tinha uma dupla causa: a chegada do nosso avião e a pausa que isso impôs à minha falação sem fim. Eu realmente havia me empolgado naquilo, e não era por acaso que havia comprado o bendito livro do Ghiraldelli, que eu parecia querer depenar por tanto, sim, haver me decepcionado.
– Posso falar só mais uma coisa?
– Mas você nem deixou espaço para as minhas respostas, Antônio.
– Hum... foi mesmo. Desculpe.
– Nada! – ele ziguezagueou com a mão, sinalizando que não havia nada a ser desculpado. – Na verdade, prefiro ouvir as suas colocações... elas podem ajudar a, quem sabe, melhorar uma próxima edição, me fazer rever alguns pontos.
– Pois, se você for rever alguma coisa, pelo amor de deus, companheiro!, exclua aquele monte de referências ao homem de Platão, segundo Aristóteles, só na “sacanation”. “Bípede sem plumas”... é muito clichê, e usado e abusado como você faz, é muito deselegante.
– “Senhores passageiros do voo...”
Era o nosso. Despedimo-nos em um aperto de mão amistoso, como convém aos cavalheiros. Entre filósofos, diferentemente do que ocorre entre os teólogos, a discórdia não aponta para fogueiras, nem condenações eternas. Poderíamos ter ido, inclusive, à fila de embarque; mas desejei ir ao banheiro antes. Depois disso, nunca mais encontrei Ghiraldelli; nem em aeroportos, nem em congressos de filosofia, nem em nada... e duvido muito que ele se lembre de alguma coisa dessa nossa conversa chata e tediosa. Melhor assim.





quarta-feira, 5 de setembro de 2012


16.





De como Ghiraldelli não explica nada sobre o amor (Parte 1)



 “Antes de alguma palestra, enquanto se espera dar a hora exata do início do evento, é comum as pessoas formarem grupinhos de conversação ao redor do palestrante. Eu estava em uma roda de bate-papo desse tipo, na universidade. No centro dela, o padre convidado a falar também aguardava o momento, mas ali mesmo já havia começado a aquecer a garganta. Dava suas opiniões sobre tudo, falando pelos cotovelos, e, como de praxe, tecia comentários doutorais a respeito do amor. Foi então que o meu celular chamou. O toque não era tradicional, mas aquele com sons diferentes. No caso, tratava-se dos ruídos característicos de uma moça fazendo amor, que alguém em casa havia colocado como ‘chamada’! Eis que o constrangimento foi geral. E piorou quando eu, tentando consertar a situação, comentei que aquilo era o que de fato era mesmo: ‘gemidos de amor’. Saí logo da roda para atender à chamada e, evidentemente, não voltei.
“Interessante esse fato: falávamos de amor, mas os gemidos de amor não foram bem-vindos!”1

É o primeiro parágrafo e início do segundo, no capítulo 1 de Como a filosofia pode explicar o amor (Universo dos Livros, 2011), do professor Paulo Ghiraldelli Jr. E essa é a melhor parte do referido livro – por, e com graça, mostrar o contraste entre o ideal (o amor romântico, sublimado, no discurso “piedoso” do padre) e o real (os gemidos do sexo sendo feito, sem piedade alguma).
Erra-se, e erra-se muito – e o próprio Ghiraldelli não será isento a isso, em seu livro2 – quando se faz a distinção entre uma coisa e outra, ou quando confundem esse amor como derivação daquele Outro, como se o ideal, sublime, sublimado, tivesse uma existência própria, extramundana, e não somente em nós mesmos, em nossos delírios e vontades inconscientes. No amor e na guerra, e sem tal delírio, nada é lindo, nada é sublime, nada é encantado; tudo é fome e destruição.






1 GHIRALDELLI JR., Paulo. Como a filosofia pode explicar o amor. São Paulo: Universo dos Livros, 2011. p. 7. (Col. Filosofia Prática).
2 Que, por sinal, faz parte de uma coleção intitulada “filosofia prática”, da editora supracitada. Olhando-se a fundo, porém, e pela mera repetição do autor às concepções ultrapassadas e teóricas, subscrevendo-as, a “praticidade”, aí, auxilia apenas à manutenção do romantismo – fonte de lucros garantidos ao mercado editorial, à indústria cinematográfica e musical, dentre as mais representativas, nas artes – e do equívoco milenar, desde Platão até os dias de hoje. Minha crítica, sobre a obra, aparecerá no diálogo a seguir.  


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