quinta-feira, 28 de julho de 2011

38.



Sobre a Morte e sobre o medo da morte



Via de regra, e pelo grande desconhecido que sua certeza traz, a Morte mete medo e, escape psicológico, as pessoas evitam mencioná-la em suas conversas alegres. O nome de Hades (governante do Mundo Inferior, dos mortos), por isso e por exemplo, era reverente e silenciosamente evitado pelos gregos mais antigos, anteriores aos primeiros filósofos. Era o deus mais odiado pelos mortais, segundo Homero (Ilíada 9, 158-159); e Platão nos diz que era comum o uso de eufemismos referentes a ele (Crátilo, 403a), como Plutão, ou Serápis.
........Já mais recentemente, Qohélet (Salomão, filho de David?) afirma ser sábio aquele ou aquela que, vivo/a, aplica seu coração a uma séria reflexão sobre o fim: “Mais vale visitar uma casa em luto do que ir à casa do banquete; lá está o fim de todo ser humano: que os vivos apliquem a isso o coração. Mais vale a dor que o riso, pois sob um rosto triste pode pulsar um coração feliz. O coração dos sábios está na casa do luto, o coração dos insensatos, na casa da alegria.” (Eclesiastes, 7, 2-4).
........Epicuro de Samos, por esse mesmo tempo (cerca de 310/260 a.C.), diz àquele que é, muito provavelmente, seu mais próximo e querido discípulo, Meneceu – em uma carta que lhe envia: “O mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos.” Meneceu é instruído a não temer a morte. O que não equivale, de modo nenhum, à imprudência de se viver de modo irrefletido, atirando-se aos precipícios. O que se propõe, contrariamente, é que seja evitado o sofrimento da perspectiva, que é certo, na morte; e que ela não seja, já, em vida – e isso em função da eudaimonía, da vida feliz. Sábio, portanto, é aquele que cultiva uma alma serena, imperturbada (ataraxía): “O sábio”, ele diz, “nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é uma mal.” O problema, o grande problema, como se vê, é o pensamento que se tem acerca da vida (ou de como vivê-la), até que ela não seja mais. A morte, mesmo, para nós, nunca é – somente enquanto “coisa pensada”, tola e “sofrida expectativa”. Contra o medo, o não pensar? Não!, porque aí seria o não-pensamento pensado, pensando-se... ou algum tipo de anomia lobotomizada. Melhor, então, é o pensamento correto acerca da situação, e a decisão ante as ações que, daí, da/na vida e/ou sobre a morte, devem advir, tendo em vista o não-sofrimento – que também equivale ao prazer (hedoné), o sofrimento evitado: “É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz.” Sofrer, no presente, por um medo infantil de um sofrimento porvir, não parece mesmo uma ação fincada na sabedoria – seja na aristotélico-estoica, na budista ou em qualquer outra, pensada, refletida. Para tudo e em tudo, vale o equilíbrio e a imperturbabilidade.
........Na visão que tem do novo céu e da nova terra, o apóstolo João diz que, aí, “não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, pois já s primeiras coisas são passadas” (Apocalipse, 21, 4b), ao que Minelvino Francisco Silva (poeta popular que ficou conhecido como “o trovador apóstolo”) faz coro – na última estrofe do cordel: A marreta da morte é tão pesada que a pedreira da vida não agüenta (Hedra, 2000, p. 147):

........Diz João, conhecido Evangelista
........Que a morte no fim irá morrer
........Em um lago de fogo derreter
........Para todo cristão levar de vista,
........A marreta se queima e sai da lista,
........O Satã nunca mais aqui atenta
........Que um anjo o amarra pela venta
........E a morte será desbaratada,
........Acabou-se a marreta tão pesada
........Que a pedreira da vida não agüenta

........A propaganda cristã – de uma beatitude eterna que vence a morte, temporal – tem atrás de si o peso dos séculos (Ulisses, Orfeu, Mitra, et cetera) e, à frente, o apelo do ágape que é qual moeda; “moeda do reino” (como dito por Agostinho de Hipona, De civitate Dei, XV, 6). Perfeita e de valor incalculável, com ela se compra, se vende, ao peso da graça... que não tem preço. Seja como for, o terrível Hades, pelos avanços da medicina ou pelo declínio das religiões majoritárias com os seus infernos e condenações (que também são armas), é cada vez menos temido, quando não enfrentado com danças e celebrações ao novo Dionísio metamorfoseado em cada um de nós: homens e mulheres do culto ao livre pensamento – a única liberdade sagrada e, pela qual, realmente compensam todos os sacrifícios e todos os martírios.


quarta-feira, 20 de julho de 2011

37.



Fé, niilismo e uma dose de aguardente



É preciso a real solidão para que se perceba o Real, e para que os espelhos do tempo apareçam... Tat tvam asi (como quem, diante de um espelho, vê a sua grandeza e a sua miséria, e a si mesmo se diz: “Tu és isto”). “O Eu”, dizia Emily Dickinson, “por trás de nós oculto, / É muito mais assustador, / E um assassino escondido em nosso quarto, / Dentre os horrores, é o menor”. É na experiência lacônica do/no Mundo, no breve encontro do Eu consigo mesmo, e daí com o Outro – este que “não sei”, inferno horrível, quando bom ou quando ruim –, que me re-conheço: ente medonho e inevitável, que chega de assalto, em sua mais completa nudez. Aí estou, e não saberia dizer aonde, exatamente, e por quê. E ai daquele que não tem as muletas da filosofia, da religião, da fé na fé. “Sim”, dizia Christian Dietrich Grabbe, no seu Hannibal (1835), “não pularemos para fora deste mundo. Estamos nele de uma vez por todas” (Ja, aus der Welt werden wir nicht fallen. Wir sind einmal darin). A única maneira de fazê-lo seria através da morte provocada: o suicídio – já que não há, para tal, uma proibição (ou lei) eficaz que, realmente, impeça a sua viabilidade. Do contrário, e para onde quer que o Eu vá, ali estará o mundo inteiro, o seu mundo: sufocando-o, enfermando-o, fazendo-o reconhecer-se um-com-ele e, daí e mesmo daí –, de tudo e de todos, desprendido, irremediavelmente só. Mas, ainda (e como não seria?): o Mundo, o Outro, o Eu consciente (autoconsciente) e, naturalmente, o inferno. Não por acaso, no Die Fromme Helene, de 1872, encontramos Wilhelm Busch afirmando: “Aquele que tem preocupações, tem também aguardente” (Wer Sorgen hat, hat auch Likör); e Freud, para tal realidade imposta, entende que “a vida [...] é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la”, dizia, “não podemos dispensar as medidas paliativas” – está lá no Das Unbehagen in der Kultur (“O mal-estar na civilização”), de 1929. Mais recentemente, em Aprender a viver: filosofia para os novos tempos (2006), Luc Ferry propõe que a filosofia sirva de bastião coerente à razoabilidade dos que não têm mais como crer na antiga fé ocidental: do progresso idílico da moral ascética, da beatitude porvir, celeste, depositada nalgum reino de maravilhas post mortem. Mas, não é porque não exista mais este céu que, já, agora, tudo tenha que ser este inferno do Eu, consciente de si, do Outro, do/no Mundo. A filosofia ou, antes, o filosofar, pode tornar-se um exercício (como foi o teatro trágico, para os gregos; a poesia, para Fernando Pessoa; a música, para Schopenhauer, et cetera) para a transcendência do Eu: equivalente contrário ao transe místico, ou a entrega da/na fé confiante, opium; mas, melhor porque não uma ilusão, um entorpecer dos sentidos. “Não se filosofa por divertimento”, Luc Ferry me dá razão, “nem mesmo apenas para compreender o mundo e conhecer melhor a si mesmo, mas, às vezes, para ‘salvar a pele’. Há na filosofia elementos para vencermos os medos que paralisam a vida, e é um erro acreditar que a psicologia poderia, nos dias de hoje, substituí-la.” Aquele que não tem religião, pois, abrigue-se na filosofia. O único pecado é calar. A liberdade é de quem voa mais alto.


domingo, 17 de julho de 2011

36.



Sobre o destino das ideologias e das doutrinas



Todas as ideologias e todas as doutrinas (principalmente as políticas e religiosas) têm apenas três caminhos, para o bem ou para o mal: a organização (institucionalização); a corrupção do seu princípio essencial, matricial, ou o aniquilamento. Nos dois últimos casos, é o fim; de certo modo. Quanto à primeira via, ela pode assegurar alguma permanência às ideias fundantes, mas ao preço da sua essência, da sua “alma”, que se dilui ao passar do tempo, no acontecer da Grande História. Foi assim com o budismo, com o taoismo, com o catolicismo (ou cristianismo); e é assim – ou será – com qualquer outra religião ou sistema político que prega a melhoria da condição do homem no Mundo, sua salvação – aqui ou depois –, ou o que quer que seja. As doutrinas (puras?) existem apenas nas cabeças e nos corações dos doutrinadores primeiros, ou dos seus construtores – quando há, por algum milagre, um consenso pacífico. Mas a ideia mesmo (ou a doctrina prima), como a experiência da fé (enquanto fidei donum), do insight clarificante, é intransferível – como a poesia ao poeta, ou o êxtase do músico, na música. Dois exemplos: “A música e o orgasmo são as duas coisas que mais aproximam a gente de Deus”; Erasmo Carlos teria dito. Você pode até não concordar com ele, mas é um modo, próprio, de falar de uma experiência – lugar psicosomático que eu ou você jamais teremos qualquer acesso, para dizer que sim (é boa) ou para dizer que não. No primeiro livro do profeta Samuel, na Bíblia, consta que Saul, atormentado por um espírito mau, da parte de Deus, acalmava-se ao som da harpa de Davi, quando tangida – que era como um Orfeu que atraía as bestas, amansando-as, ou fazendo o terrível Cerberus adormecer. Quantas escolas budistas existem hoje, no mundo? Quantos cristianismos (ou doutrinas autoproclamadas cristãs)? Em quantas ramificações se encontra, na atualidade, a sagrada doutrina islâmica? Morto o doutrinador, morre também a doctrina prima. O que se segue, depois, nunca é o que foi (o próprio verbo, ser, não sobrevive, aí, no infinitivo), o que se desejou. De tantas religiões mortas e de tantas teorias políticas pensadas, planejadas e/ou escritas – que alcançaram multidões de adeptos, por uma predileção consensual imposta pela força, pelo benefício ou pela propaganda –, restaram apenas os registros históricos, nos livros de História... quando restou. Pode-se acreditar que, uma vez, uma única vez, houve um Cristo neste mundo, encarnado; e, sendo-o, conforme os Evangelhos, somente ele teria sido, de fato, cristão – no sentido de crer no que ensinava e, mais importante, vivia. O que se seguiu depois, com os apóstolos – e são Paulo entre os principais –, foi a imitação daquilo que o Cristo ensinava, vivia; conforme o entendimento de cada um: sua interpretação, sua hermenêutica; e conforme a fé dos que creem (até o dia de hoje) nestes primeiros intérpretes. Imitação. O próprio nome de “cristão” advém daí: da chacota dos anticristãos de Antioquia (cerca de 44 d.C., de acordo com o relatado do capítulo onze nos Atos dos apóstolos), do chiste pejorativo, do escárnio combativo, da zombaria anunciada. A natureza das ideologias, como das religiões – realizadas ou não –, não é, via de regra, o aniquilamento, mas a transformação, a adequação ao irresistível giro da roda do tempo, da roda fortuna. Nós somos o produto de tudo o que veio antes, es as sementes do que ainda está para vir; seja lá o que isto seja.


quarta-feira, 13 de julho de 2011

35.


Contra os críticos de(nas) arte(s)



Crítico de arte (ou de artes) é aquele que, grosso modo, e à mesma, pouco ou nada faz; mas pensa que faz, criticando os que fazem, realmente. E alguns chegam a ganhar muito bem para “falar muito mal ou o contrário deste ou daquele artista, conforme a tendência dominante do mercado cultural (ou Indústria Cultural) de cada região, estado, pais (cf. Theodor W. Adorno, Ueber Fetischchrakter in der Musik und die Regression des Hoerens [Sobre o caráter fetichista da música e a regressão da audição], ensaio de 1938)*. Ora, a boa arte ou a arte ruim (é caro dizer), nada mais são que adequações ao “gosto” individual e à ideia que, em cada indivíduo, é irremediavelmente subjetiva, sem parâmetro definido por “qualquer” ponto estético-fixo, número áureo, eixo comum, et cetera. Quem pode medir o que é o belo, o feio? Somente Eu, para mim; você, para você. E mesmo assim, por qual parâmetro? Nenhum! Vladimir Mayakovsky, repetindo os antigos poetas, os trágicos gregos, dizia que a arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo.” Sentido que, antes, em Nietzsche, já havia sido defendido naquele que seria o seu primeiro livro escrito, o Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus, escrito em 1872. C. S. Lewis, mais tarde, usará a mesma metáfora de Mayakovsky, em The problem of pain (1940), colocando o homem no lugar do mundo, e no lugar da arte, o sofrimento. Enfim, e com as insistentes exceções, parece que os pensadores estão sempre andando por este caminho, e os críticos, por outro. Mas, qual? Eles não sabem, por certo. Novamente se cai na falta de parâmetros ou então se volta ao pouco válido eu acho...”. Não há também, ao menos que eu saiba, um curso universitário de... Crítica da/s Arte/s. E mesmo que houvesse, pelo que se nota na atualidade. Resultado: os mais aptos a tratar sobre arte, não são artistas. Paradoxo? E se um artista crítica negativamente a arte de outro, um terceiro poderá dizer que ele faz isto porque, em sua própria arte, vê-se frustrado. E talvez outro, ainda, aponte-lhe o feito como... falta de ética profissional”, exibicionismo, inveja do (se houver) sucesso alheio. Ironia?
O grande problema dos críticos, problema mesmo, é que alguns acreditam realmente que têm uma leitura abalizada sobre isto ou aquilo, de modo a ser recebida por pessoas de igual verve intelectual, bom gosto não duvidoso, sagacidade apurada; e há, inclusive, grupos que se associam com a finalidade de ganharem força, respaldo popular. Entre os que apreciam as artes – julgando-as divinas ou não, conforme os seus gostos – e os que acreditam portadores dos meios de divinizá-las ou demonizá-las, há diferenças. E a diferença entre uns e outros é que, os críticos, evidentemente, acreditam-se mestres da balança, do jeito extensivo. Quem tem razão é o maestro Artur da Távola (in memoriam), dizendo que, “na história, não se registram os nomes dos críticos, mas dos criticados”. A pergunta que faço, para não ir tão longe: como, porém, criticar os críticos sem criticá-los? Não sei a resposta ao paradoxo gritante; mas penso que, de algum modo, e pelo exposto, mantenho-me a salvo na intransponível individualidade. E, melhor que ser o crítico de arte, é ser o artista.

__________

* Theodor Wiesengrund-Adorno (1903-1969) nasceu em Frankfurt, Alemanha. Aí fez os seus primeiros estudos, e tempos depois, na universidade da mesma cidade, obteve o título de doutor em Filosofia (1923), com uma tese sobre Edmund Husserl (1959-1938). Em Viena, estudou composição musical com Alban Berg (1885-1935), considerado, pela crítica especializada, um dos maiores expoentes da revolução musical do século XX.


terça-feira, 12 de julho de 2011

34.


Sobre a Verdade e o seu silêncio



“Não mascarar o real com palavras provoca alegria ou raiva”, disse Liezi (ou Lie Tse), um dos maiores pensadores do taoísmo. Algo, sem dúvida, muito semelhante a um provérbio italiano que recomenda: “Diga a verdade e saia correndo”. Como um Pilatos a outros Cristos, também eu, diante de todos os mestres da razão e da sabedoria assistemática, perguntaria: O que é a verdade? Quid est veritas? E não aceito que a resposta, como dizem alguns, recorrendo à virtuosa figura de Cincinato, esteja, já, aí, na própria pergunta: Est vir qui adest. (ou: “É o homem que é antes de ti”). E não uso de falsa retórica. Os sábios (os sábios mesmo) calam-se diante dela, de uma definição última para ela – ao menos aqueles que não invocam o ponto cego da religião, ou do fundamentalismo violento de qualquer argumento. Sócrates, por exemplo, e no máximo, arriscava-se a dizer que “a verdade não está com os homens, mas entre os homens”. E o silêncio do Cristo, à pergunta de Pilatos, é comovente.


domingo, 10 de julho de 2011

33.



Eu, Nietzsche e Lou



Nossas percepções individuais são os únicos meios que dispomos para falar sobre o Mundo, na experiência do Eu ante o objeto amado, ou odiado – que dizemos “nosso”, de um modo ou de outro. E o que é a verdade do Outro senão as suas próprias percepções, mesmo aquelas que são ditas na primeira, na segunda ou na terceira pessoa. A máxima do egoísmo é também a máxima da verdade experiencial: “O mundo gira em torno de mim.” E não é assim para todos? É. Sou, para mim mesmo, planície ou abismo – dependendo sempre da ocasião. Enquanto não encaramos o abismo da completa solidão do Eu, tememos esse vazio inominável que todos, em todos os lugares, por medo ou por ignorância, chamam por tantos e tão variados nomes... o Sagrado. “Encare o abismo e o abismo começará a lhe encarar também!” E como haveria de ser diferente? Mesmo Nietzsche, armado com uma filosofia da liberdade, construída à base de marteladas, foi também, ele mesmo, um criador de ídolos; sendo o maior deles a sua própria projeção, divinizada – como disse Lou Andreas-Salomé em: Nietzsche em suas obras (Friedrich Nietzsche in seinen Werken), escrito em 1894, e respaldada pelo próprio. Ela que, talvez, conforme um biógrafo seu (H. F. Peters), pode ter parte na loucura amorosa do pensador alemão. Ela que, no muito que escreveu, recomendou, em um poema:

........Ouse, ouse... ouse tudo!!
........Não tenha necessidade de nada!
........Não tente adequar sua vida a modelos,
........nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
........Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
........Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!
........Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
........Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:
........algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!

........Ela que, por fim, e ainda conforme Peters, não sabia ser fiel a mais ninguém senão a si mesma. A liberdade requerida, para mim ou para o Outro, é o cúmulo do egoísmo. E não basta a divisão metódica (egoísmo psicológico, egoísmo ético”) ou o neologismo forçado (“egotismo”), usado por Miguel de Unamuno e George Santayana. Vale menos ainda, o termo, em seu sentido vulgar; tal introduzido pelo alemão Christian Wolff, ao falar sobre a “seita dos egoístas” – surgida pouco antes de ele lançar seus Vernünftige gedanken von Gott, der Welt und der Seele des Menschen, em 1718. Esqueça tais sentidos, e mais outros que porventura possam ser lembrados. Sem classificação aparente, tudo cabe no Eu, por um ou outro viés. Dele, não somente é impossível fugir como, também, pensar no Outro senão com o nosso estranhamento, nossa reserva (que tantos negam, dizendo que, não), nosso cuidado: para o nosso sorriso franco ou àquele outro, dissimulado; para a nossa atração ou repulsa – coisas que sempre se confundem (co-fundem) em alguma parte do caminho: como a fome e a saciedade, o sono e a vigília, a excitação e o tédio.


sábado, 9 de julho de 2011

32.


Contra a ideia do herói


Todo mundo, um dia, já sonhou em mudar o mundo, não mudando nada, realmente – conformando-se à maioria que procura esquecer isso que é uma ilusão natural da adolescência, da juventude. E assim, embora existam uns poucos que consigam pequeninas revoluções, o mudo continua a ser, em sua grande constituição etnográfica, massificado por essa gente pequena, desiludida, conformada, acomodada ao curso dos rios, levada pelos ventos do tempo, da Grande História do mundo. Mais cômodo e fácil é adotar a pseudofilosofia de Mahatma Gandhi: “A única revolução possível é dentro de nós,” pois “aquele que não é capaz de governar a si mesmo, não será capaz de governar os outros.” A mudança de todos começa em cada um de nós... e é andando que se caminha. Não! Não assim, Helena. O coração quer mais; e quer logo, agora. Isso, talvez, explique, de algum modo, o fascínio por heróis, por deuses, por religiões, por isso e por aquilo. Este poder de ir além do pequeno e frágil que é tudo: a vida, o mundo, o humano, et cetera. Heróis! Ah!, os heróis! Não se cresce nunca enquanto não se abandona de uma vez por todas a ideia do herói, de heróis. Não se cresce nunca, portanto. O que cresce e envelhece, realmente, são os brinquedos dos nossos desejos. E queremos outros, novos e maiores. Sempre, sempre, sempre...


sexta-feira, 8 de julho de 2011

31.


Contra os psicólogos


Os psicólogos de hoje não curam mais a alma de ninguém – exceto, com pequeninas exceções, as suas. Para tanto, agora, servem, as modernas psicologias; e o embuste é tanto que, nicho, há quem fale de uma “filosofia clínica”, e recomende “mais Platão e menos Prozac” (Lou Marinoff). Tudo flui ou pode fluir para a autoajuda, o autoexame: físico e mental. Uma partida de futebol, a certos pacientes, por exemplo, tem o mesmo efeito de uma seção inteira de psicanálise. No mais, é isto: cada um se vira como pode, acredita no que quer – ou no tanto que se permite manipulado. Resultado natural é que vive como vive, hora assim, hora assado. Mas hoje é quarta, e logo mais haverá uma partida do seu time, transmitida pela TV; e os seus amigos lhe esperam ali no bar. No campo, a metáfora da vida: tudo é luta (pólemos, éris). Heráclito, mais uma vez, coberto razão.



quarta-feira, 6 de julho de 2011

30.


O irresistível peso de tudo


Um homem equilibrado, conforme a sentença latina, é aquele que tem uma mente sã em um corpo são (Mens sana in corpore sano). Tal homem bem-aventurado, se existisse, seria o mesmo que um deus. Mas os deuses, que lástima!, não existem! Se existissem, porém, seriam infinitamente infelizes por reterem tanto poder; seriam tão infelizes que desejariam a feliz miséria dos homens: que são cegos aos seus destinos; que odeiam seus pares; que amam seus objetos desejados; que sentem o peso do corpo, o indisfarçável peso do mundo; e envelhecem, e não sabem dormir com fome, e têm pesadelos pelo excesso de saciedade. Sim!, quem dorme primeiro é a mente. O corpo, que nada é, obedece. Mas o corpo, à mente, pesa demais; insuportavelmente demais. E daí as insônias e a invenção das canções e dos poemas; e daí os tantos livros e a arte em geral; e daí a angústia universal que não cabe em nenhum livro de história, mas está em todos: todos os livros sobre tudo e sobre todas as coisas; todos, todas.
*****
......Suz Tzu dizia que “a suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar”. Mas, para se ter uma tão boa estratégia, há que se lutar contra as más. Heráclito, menos “sábio chinês”, dizia que “tudo é luta!”, e Sêneca, séculos depois, sentenciava: “Viver significa lutar.” No Ocidente – e no Oriente, na prática mais comum do dia-a-dia das pessoas comuns –, Heráclito e Sêneca (e praticamente todos os filósofos) prevaleceram. Oh, sim!
......Heráclito, coberto de razão... e depois de estrume – conforme seus pouquíssimos e confiáveis biógrafos. Viver é penoso! Morrer, também. Quer um equilíbrio? Equilibre-se aí, na resistência ao irresistível peso de tudo. Sábio, por fim, é aquele ou aquela que está no meio, entre o isto e o aquilo, rindo e troçando entre os dois abismos.


terça-feira, 5 de julho de 2011

29.


É preciso duvidar de tudo, ainda


Somente o que pode ser dito, existe. Mesmo a teologia apofática de Dionísio, Pseudo-Areopagita (séc. V), foi um “dizer não dizendo” – outro recurso para além daquele da analogia fidei, ou da analogia entis. Do Absoluto, porém, nada do que é dito é, de fato, o que é dito – máxima do Taoísmo (em referência ao Tao)  e de outras religiões chamadas “filosóficas”, e da fenomenologia. Aí estão, entrechocando-se, as concepções físicas e metafísicas do Ocidente e do Oriente. De modo abrangente, a fé confiante se submete ao estabelecido, sem questioná-lo; a “fé pensada”, por outro caminho, procura, sempre, fundamentar os seus fundamentos. Mas, como? Procurar por um saber é confessar não sabê-lo bem (seja por sua grandeza ou mistério, ou, pior, pela ignorância daquele que procura conhecer o/a...), e o crer-se poder sabê-lo; e, logo, um não confiar no que já se sabe, ou acredita saber – como saber acabado. Que dilema! A fé confiante não pode ir tão longe e, se vai, torna-se cega. “Pensar é estar doente dos olhos”, diz Alberto Caeiro (Fernando Pessoa). E, se Deus é um mysterium tremendum, o aproximar-se dele mediante o pensamento é, ironicamente, um distanciar-se. “O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério. / Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o sol...”, ainda Caeiro.
............Não é à toa que, ao falar sobre a disciplina para a meditação, dos orientais, Rubem Alves nota: “Para os ocidentais meditar é pensar. Para os orientais é parar de pensar: produzir o vazio, a ausência de saberes, para fazer lugar para o saber do corpo. Os místicos, orientais e ocidentais, procuravam o vazio para ter a experiência da iluminação. Isso é incompreensível aos ocidentais.”
............Também não é à toa que “a teologia [cristã], cheia de ademanes”, como tão bem nota Kierkegaard, “assoma à janela e, mendigando os favores da filosofia, oferece-lhe os seus encantos”. Trata-se de um cortejo ilícito que, à cata de um sistema (uma teologia sistemático-hegeliana, por exemplo), de um fundamento não-paradoxal, fundamentado, crido realizado, perde-se no caminho, não percebendo, aí, o Real que se revela. Assistemático, Kierkegaard é homem de fé confiante, não de fé que procura saber – como a de Agostinho, Anselmo e outros. Contra toda a tradição aristotélico-medieval-tomista (e até mesmo platônico-agostiniana, como se nota acima), ele, em questões de fé religiosa, reafirma o credo quia absurdum est de Tertuliano: “A filosofia e o cristianismo não se poderão jamais unir... A filosofia, na sua mais alta completitude implicaria a sua total ruína, isto é, a evidência de que não pode corresponder à sua determinação.” Preso à existência, porém, o pensador dinamarquês, diferentemente de Tertuliano, resiste ao movimento último da fé confiante, o da entrega total que salta sem pensar, totalmente confiante: “Não posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no absurdo; tal coisa é impossível, mas não me vanglorio por isso.” Hoje, por herança desse existencialismo (cristão) tão bem assentado nele – que é apontado como seu pai –, os leitores da Bíblia, por exemplo, não fazem isto para, exatamente, saber o que Deus quer (ou exige, como no caso emblemático e paradoxal de Abraão), mas qual o benefício – e daí para sempre – que isso lhes trará (cui bono?): “Eu sinto que o texto salta sobre mim, e é isso que eu preciso: que ele me fale agora, para hoje.” Alguém pode dizer assim, de uma perspectiva tão existencialista que nem desconfia. É como eu já disse em outra parte (1, §8): O desejo de Deus, ou do divino, desejo transcendentalizado, pode ser, ou nada mais ser, que a Vontade que ele seja. É preciso ter muita fé para não ter fé, e aceitar a não-fé como fé-em-si-mesma. Seja como for, a fé é, sem qualquer dúvida, muito útil àquele (ou àquela) que precisa de quem tem fé. É preciso duvidar de tudo, ainda. 


segunda-feira, 4 de julho de 2011

28.


O Ser, a palavra e a garganta cortada


Não ter nada a dizer é, ainda assim, dizer algo, e ser a “coisa” que “nada diz”. Homens e mulheres são, essencialmente, palavras. Palavras são, mais que sinais – ou sinais de sinais (conforme diz Agostinho de Hipona no De Magistro) –, Ser. A palavra é a casa do Ser. Heidegger sabia disso – repare nos estudos que ele faz sobre Parmênides, e sobre Hölderlin –, e os semitas também, de uma perspectiva bem mais vital. Sim!, a “alma vivente” (nefesh hayyah, que existiria por ação do “Sopro” divino), tal relatado no Gênesis, alimenta-se pela “garganta” (lugar da “palavra” [como as emoções, que “moram” no coração] e da morte fácil, na degola), que também está relacionada à respiração, laringe, etc. Indo além, e em um sentido mais concreto, nefesh ainda pode ser relacionada à fome, desejo, avidez, cobiça, afã, sede de vingança, etc.; esbarrando, necessariamente, e como designação pronominal da primeira pessoa do singular, no EU (que deseja com todo o sEu ser). E daí o sentido antropopsicosociológico para a “morte social” (Norbert Elias) do indivíduo longe da comunidade (outsider) – sem voz, sem fala, sem o ouvido do Outro, ou sua atenção recíproca. Ora, mesmo na gramática, as palavras, isoladas umas das outras ou do seu grande contexto, são nada. Nada (logo algo) no sentido de desvalorado pelo conceito do ter (ou valer) que o Outro lhe atribui, lhe concede. O mais autêntico do indivíduo, portanto, é a inautenticidade do ser-para-o-outro – que acaba sendo, no final, a supervaloração do Eu, refletido no Outro, que não é mais que objeto para a Vontade de ser-si-mesmo do mesmo Eu. Acontece que, na grande disputa do viver si-mesmo, e contra os nossos desejos mais profundos, todos são objetos de todos... e ninguém deseja ser isto que se é. Mas (ah!, a velha e inevitável conjunção adversativa!) o Eu carece do nada, para que ele mesmo se reconheça como algo; e o que sente-se um nada precisa do (ou de...) “algo” que lhe poderá fazer deixar de sê-lo. Daí, por fim, o grande sentido para um poema que li, em um adesivo, no interior de um ônibus em Porto Alegre: “Até para ser nada o homem tem que entrar na fila, com hora marcada.”


domingo, 3 de julho de 2011

27.


A moral das intenções


Um discurso de fé na razão: o bom senso é a coisa melhor partilhada entre os homens. O contrário disso poderia ser: o mau senso também. Mas assim, como se vê, reafirma-se o otimismo pelo pessimismo; que dá no mesmo, e que é o mais óbvio e, conforme parece, mais sensato – numa apelação última à razão mínima, para o bem ou para o mal. Ora, é evidente que tudo, para ser medido pela dualidade bom/mau, bem/mal, deve passar pela análise do momento e das motivações... inclusive o momento, e as motivações.





sábado, 2 de julho de 2011

26.


Do amor e do amar


Os amores canibalizam-se. Por isso que não existe o amor, mas os amores, e o desejo, e a fome, e mais fome, e sempre mais fome. Por isso que a soma de dois amores é igual à desilusão.






LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...