domingo, 18 de dezembro de 2011

18.



Da caridade



Amanhecia, e Zaratustra sentia o frio gelar seu rosto, penetrando até os ossos. Mas não era o suficiente para dobrá-lo. Na praça, para onde havia descido, procurou lugar para sentar, e ver surgir o Sol que, a julgar pelas cores da aurora, não demorava chegar. “Há tantas auroras que não brilharam ainda”, pensou, lembrando-se do Rigveda. Passava por ali um homem que ele nunca vira. Talvez um comerciante. Em sua espontaneidade e gentileza, o homem lhe ofereceu um cobertor de lã, dizendo:
– Recebe-o. É um frio de gelar a alma, e a cores do dia que vai chegar.
– O que é isto? – Zaratustra perguntou, sem emoção. – Não sabeis que os bichos têm as peles de que precisam? A natureza, prodigiosa, dota-os de tudo o que eles, enquanto vivos, carecem.
Zaratustra fitava os olhos do desconhecido. Este, nada entendendo, nada disse. O eremita lhe acudiu.
– Quando foi que perdemos nossa primeira pele? Quando acreditamos haver domado a natureza, a nossa e a Outra, que a todos domina. Em nossa naturalidade, naturalizamos o artifício, lutando pela vida. Viver, porém, é andar sobre uma ponte que sempre se rompe, e nos lança no grande abismo: do nada ao esquecimento. E não sabemos bem como chegamos aqui. A memória presente, do tolo, é promessa vã da Vontade, da perspectiva que, amante do passado, está grávida de sonhos de... ar: desejo de eternidade, de uma felicidade que não acabe nunca.    
Nessa mesma hora aproximaram-se de Zaratustra a sua águia e a sua serpente. O homem observou a cena e, novamente, nada falou. Os primeiros raios de Sol tingiam o céu sobre a linha ondulada do horizonte longínquo.
– O que eu digo e faço – Zaratustra continuou –, é cedo; cedo demais. O Tempo está grávido de uma aurora absoluta, para depois da noite absoluta; mas a noite mais fria ainda não veio. O dia, porém, adiantado e furioso, planeja o seu fim prematuro. Dia, luz. Luz: ventre e aborto.   
– Que quereis dizer com isso tudo? – O homem inquiriu.
Que a caridade do caridoso é exercida sempre em função de si mesmo. Todos os homens são ventres, e o mundo todo, massamorda. Se pudessem, eles devorariam o Mundo a dentadas e, por fim, a si mesmos; de uma mordida só. Beberiam os oceanos, comeriam as constelações.    
– Minha ignorância deve ofendê-lo, senhor – o homem disse, confuso. – Somente o teu bem foi que desejei quando, vendo-te no frio, ofereci-te o cobertor. Tuas palavras, porém, têm o peso da dúvida, do enigma profético.  
Ora! – disse Zaratustra –, não vês? O bem que desejas a mim é o mesmo que a ti, somente a ti, por igual medida retributiva, desejas. Não é este o mais dos mandamentos entre os cristãos, e não é este o provérbio mais antigo entre os mestres do Ocidente? Trata-se de uma moral que não posso compartilhar; eu, o amoral dos dias que estão por vir. O que nos insta a um bem menor senão o ter em vista um bem maior? O Outro é o meio, objeto para fim do nosso próprio fim.
E, virando-se para o nascente, disse ao Sol, como quem a desfiá-lo:
Que seria de ti, ó Sol, se não fossem aqueles sobre os quais derramas a tua luz? Mas os que se banham nela, nela também se embriagam; e de tal modo que nem percebem: ao invés de te louvarem, deveriam louvar a eles mesmos, que te percebem e sabem que percebem; que dão valor e desvalor às coisas que percebem. Tu, tão grande, tão poderoso, nem ao menos sabes que és, quem és.
Nisso, o homem se retirou, deixando o cobertor aos pés de Zaratustra, a quem julgava louco e ingrato. Aquela conversa toda, definitivamente, não era para ele.
– A caridade é sempre carente, como o amor do que ama. – Concluiu Zaratustra, olhando em direção ao homem que se distanciava.
E fez-se o dia.
E tudo estava claro.


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