segunda-feira, 29 de agosto de 2011

48. 


Da vida que se adia 


A procrastinação é a coisa melhor partilhada entre os homens, pois cada um vive governado pelo passado, projetando-se para o futuro – que nunca vem – e esquecendo-se que há apenas ação imediata: o impulso natural e todas as suas consequências. Sim! A procrastinação é a coisa melhor partilhada entre os homens.
........Adiamos a beatitude que podemos ter, hoje, em função de outra, que poderia ser, amanhã; ou depois de depois de amanhã.
........Adiamos o nosso reino terreno, o melhor que podemos ter, o melhor que poderemos fazer, em função das tantas utopias idílicas, lançadas para o horizonte escatológico, o porvir que nunca sabemos.
........Adiamos o convite à mulher dos nossos sonhos, ao homem dos nossos sonhos, para um café, um cinema, um passeio ao fim do dia, e o que pode advir dos encontros tão bons. Sim! Adiamos porque nos envergonhamos. E a vergonha é algum tipo de tristeza fundada no amour de soi, provinda do medo que temos da opinião contrária ou da censura de outros acerca de nós mesmos: os desprezados, humilhados, desconfiados do sucesso duvidoso.
........Adiamos a imodéstia, da qual nos censuram quando nos falta, ou nos recriminam quando nos sobra: o peso de alguma glória, do feito merecidamente louvável, que é escárnio àquele ou àquela, perdedores que não sabem sê-lo.
........Adiamos o “basta!” àquilo (mulheres, homens, governos, religiões, et cetera) que cerceia o que temos de mais valioso: nossa liberdade de ir e vir, de cultivar e cultuar o pensamento autônomo, que nos conduz às nossas próprias decisões e aos prejuízos necessários, os nossos prejuízos.  
........Adiamos o espanto e a perplexidade ante o exótico que nos fascina, o erótico que nos paralisa, o grandioso que desaba sobre o mundo, todos os dias, todas as horas, ao qual dizemos, sem fé nenhuma, cheios de exclamações: “Não!, não! Não pode ser! É claro que não é!”
........Adiamos a decisão de admitir psicologicamente que somente há (ou pode haver) desencanto após o encantamento, e que isso bem poderia (o achar-se encantado) não ser mais que o haver-se preso, habituado às ilusões: sobre a verdade, sobre o bem, sobre o belo, sobre o sublime, et cetera...  
........Adiamos, ridiculamente adiamos, assumir a coragem que nos incita a mandar o velho às favas. A mesma coragem que abraça o novo como melhor, como superação do antes posto, fixado e defendido como garantia de alguma segurança em um mundo inseguro; mundo que muda sempre e inexoravelmente, rápido demais, dando-se ao novo que chega de assalto.
........Adiamos, não por fim, o que a vida nos oferece agora, , em troca do que, tolos e tolas, sonhamos – feito as crianças que nunca soubemos crescer. E somos, sim!, sem que nos lembremos, cadáveres atrasados, gestando mais cadáveres, adiando o fim que vem, devindo, desde que nascemos...


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

47.


Dos perfumes 


As imagens moram nos cheiros. Um navio que se desprende do cais e parte para longe, levando o amor da sua vida, está aí, agora, no fechar dos olhos quando vem o cheiro salgado da maresia. O longe se faz perto, na saudade entranhada no corpo: nos ouvidos, na boca, no nariz. As imagens moram nos cheiros, e nos frascos de perfume sobre o toalete. Um dia de sol intenso, por exemplo, e uma camponesa colhendo miosótis em um campo aberto, cabem perfeitamente em um frasco de 12/6cm.


terça-feira, 23 de agosto de 2011

46.


Das vantagens do ser idiota 


“Se uma pessoa é diferente, é fatal que se torne solitária”, Huxley (Aldous) escreveu isto para o seu Admirável mundo novo, de 1932. Em um reino de idiotas, um sábio seria a pessoa mais infeliz do mundo. Acontece que sabedoria não traz felicidade, mas solidão, e a antipatia dos idiotas que, grosso modo, sabem ser bem felizes com o bem pouco de que dispõem – que não inclui, naturalmente, o pensamento sobre a justiça sempre ausente, e aquele outro que subtrai o seu bendito sono pelas madrugadas. Que vale mais, pois: ser o sábio ou o idiota? Certa vez, santo Agostinho, andando pelas ruas de Hipona e refletindo sobre o que seria a verdadeira eudaimonía, pensou se aquele bêbado que via, ali, à sua frente, feliz da vida, não estava, neste mundo, muito melhor que ele. Constatou que, dado à temporalidade do efeito do álcool e da ressaca que haveria de vir, o tal homem não poderia realmente estar feliz, somente alegre. Ele, porém, peregrino que era neste vale de lágrimas, no permanente serviço dispensado à Igreja, embora fustigado pelo labor intelectual e pela lida diária em favor dos outros e de si mesmo, para que todos eles chegassem às bem-aventuranças eternas, ao lado de Deus, era – só podia ser – mais feliz que o beberrão, pobre miserável. Mas, e se não houver esta recompensa prometida pela religião cristã para o mundo post mortem? – alguém poderia colocar a questão, e a colocaria muito bem –, quem, no tempo presente, estaria em melhor situação? O problema, a partir daí, e assim posto, entra na disputa conceitual que requer uma resposta que não a da fé, somente; uma que responda: o que é felicidade, afinal? É; felicidade é mesmo uma palavra muito comprida. Imagine se você fosse obrigado a repetir: “eu sou feliz!”, por sessenta e duas mil vezes, imagine... Quando parasse, veria que, agora – sim, sim, oh, sim! –, era mesmo muito feliz. Huxley também disse isto, com um outro sentido: “Sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade.” Vai que é, não é?!


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

45.


Dos modos de se obter a felicidade


Lição número um, e única, do/no meu livro: Curso completo para a conquista e manutenção da eterna e absoluta felicidade, em uma única edição: nascer cego, surdo, mudo, insensível. A outra lição seria: não nascer. Mas aí, para aprendê-la, teria já que ser tarde demais.


terça-feira, 16 de agosto de 2011

44.




Da polidez do polido



Quinta-feira, 28 de julho de 2011. O odiado rosto de Fábio Pereira de Souza aparece em todos os noticiários da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba. “Mas, como pode?” Helena me pergunta. “Esse homem é casado, pai de três meninas, e dava palestras contra drogas nas igrejas evangélicas e...” E Helena está mesmo chocada. Acontece que a polidez, dentre as virtudes, como diz Comte-Sponville, “é a primeira e [...] também a mais pobre, a mais superficial, a mais discutível”. Sim: por trás de pessoas muito polidas também podem estar escondidas as pessoas mais imorais que se pode conhecer. Para o tanto de polidez, o mesmo tanto de perigo referente à bestialidade imoral. “A polidez faz pouco caso da moral, e a moral da polidez”, ainda Comte-Sponville. Fábio, dono de uma boa aparência, apresentava o falso nome de Abner Machado Pereira Neto e, como se soube, era carioca, e publicitário. Quinze meninas, das que o reconheceram, foram as suas vítimas. Uma delas, de apenas 13 anos, está grávida da... besta humana.
..........Sábado, 18 de setembro de 2010. Estou em frente ao Clube Cabo Branco, no bairro do Miramar, em João Pessoa, bebendo de bem com os amigos. De um carro coberto de adesivos, desce o piancoense Antônio Petrônio de Souza, mais conhecido como Toinho do Sopão. Ganhou o nome por distribuir sopa na Lagoa (Parque Sólon de Lucena, no Centro da cidade). Ele vem ao nosso encontro, contando piadas e entregando “santinhos”. “Populista o cara, meu!”, penso. Toinho, na época, era candidato a uma vaga de deputado estadual, pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN). “Meu voto é seu!”, diz um nosso amigo, entusiasmado, e para, penso, ver-se livre do candidato. 31 de outubro, 20:00. Dentre os 36 candidatos eleitos, Toinho, sem estrutura de campanha e sem qualquer tradição política, é o mais votado, chegando à incrível marca de 57.592 votos. Os 2,90% de todos que o escolheram, colocaram-no em um primeiro lugar absoluto. O resultado dava-lhe o título de deputado mais votado no Estado, em todas as eleições para o parlamento estadual. Antes de haver o segundo turno, para Governador, Toinho traiu seus eleitores e rebelou-se contra seu partido, declarando apoio ao candidato oposicionista, dizendo jocosamente que votaria naquele que mais “engrossasse o caldo da sua sopa”. Depois de outros tantos desentendimentos e reviravoltas, Toinho agora mostra a que veio – principalmente depois de dizer que o salário que o Governo estadual dava à sua mulher, de R$ 3.500, era uma “esmola”: “Eu tinha esmola, deram um gerenciamento para minha esposa de três mil e pouco.” Quem, do “povo”, no Brasil, hoje, ganha tal “esmola”? Seja como for, o “polido” Toinho continua fazendo pose de “candidato do povo”, e atualmente é candidato à prefeitura da cidade.
..........30 de julho de 2004. O cineasta indiano, naturalizado estadunidense, M. Night Shyamalan, vê a estreia de A vila (The village), seu mais novo filme, do qual também é roteirista – embora as acusações de que tenha feito plágios (e não seria a primeira vez) de A hundred yards over the rim (um episódio da série “The Twilight Zone”, 1961) e Running out of time (livro de Margaret Peterson Haddix, classificado como Young-Adults, em 1995). No filme, ambientado em 1897, os habitantes (60 pessoas) de uma vila rural, isolada do resto do mundo, na Pensilvânia, parecem felizes... Não são. A polidez de seus líderes (prefeito, pastor, et cetera) é uma mentira, como também são os monstros que habitam a floresta de Covington. A vila é uma metáfora sobre a ignorância e o conhecimento, sobre a polidez dos líderes que, por carisma ou por força, dizem aos mais jovens: “Vocês não devem ir por aí, além dos limites que estabelecemos.” “Aqueles de quem não mencionamos” podem ser muitas coisas: 1) a estupidez dos que dizem que “religião é coisa que não se discute”, no sentido de: “aceite, obedeça, não pense, se cale”; 2) o reverente e temeroso silêncio dos que acreditam nisso; 3) a estupidez dos que acreditam que “político é assim mesmo: tudo ladrão!”, não enxergando isto como cumplicidade e legitimação da corrupção funcional; 4) a covardia nada anômala dos que trocam suas dignidades por minúsculos benefícios, oferecidos por minúsculas criaturas; 5) a imbecilidade dos que vendem suas liberdades individuais pelo baixo valor da preguiça: de pensar por si mesmo, questionar leis e governos, ir atrás de informações e interpretações que não as oferecidas pelo mainstream, pela Indústria Cultural, et cetera. Todas as criaturas vis, grosso modo, estampam a polidez como uma fachada larga e iluminada, com o fito de esconderem a podridão que fermentam – como os pomposos túmulos revestidos de mármore. Um canalha polido não é em nada menos ignóbil que outro; é provável que seja até mais que este. “A Polidez só dá aparência de moralidade e honestidade, mas não nos eleva a elas. Não há diferença entre um assassino, seja ele polido ou não. Contudo, o polido choca muito mais, torna-se mais detestável justamente por esconder-se atrás da polidez”, afirma Jair Antônio Pauletto. O fundamentalismo carece da polidez, depende dela. Enquanto termo, o fundamentalismo tem sua origem no Ocidente cristão: como fruto e consequência do que se convencionou chamar de Modernidade. Foi no Ocidente que os maiores fundamentalistas, filhos queridos do Romantismo, vingaram – em oposição aos Ilustrados e Liberais. Durante o período Romântico (século XIX), contemporâneo do Colonialismo (até a primeira metade do século XX), os fundamentalistas cristãos exportaram suas ideias aos continentes colonizados pelas potências do Atlântico Norte.
..........11 de setembro de 2001. Após os atentados ao World Trade Center, em Nova York (o coração financeiro norte-americano) e ao Pentágono, em Washington (o coração militar norte-americano), a temática do fundamentalismo voltou a ser atual. Aos fundamentalistas islâmicos, acusados do atentado, os Estados Unidos eram a casa de Satã. George Bush, em retaliação aos mesmos, promete “eliminar o mal deste mundo”; e a Rede Globo de televisão, no Brasil, somente se reportava aos membros da Al-Qaeda (“A Base”, “O Alicerce”) como “o terror”. Seu líder, Osama Bin Laden, tornou-se o homem mais procurado da face da terra; e nenhuma cabeça valeu tanto quanto a sua, viva ou morta. O mesmo Osama que, no tempo em que Hollywood filmava Rambo 3 (1988)*, era o melhor dos rebeldes afegãos – que eram, nas palavras de Ronald Reagan: “Heróis semelhantes aos pais fundadores dos Estados Unidos da América do Norte.” Os mesmos que, dez anos depois, já eram reputados como “o mal deste mundo”.
..........11 de setembro de 1973. 28 anos antes do WTC, o palácio presidencial de Santiago do Chile, por ordem de general Pinochet (Augusto José Ramón Pinochet Ugarte), está ardendo em chamas, após o bombardeio. Em outubro de 2008, quando estive por lá, pude ver fotos de como tudo ficou, e objetos dos tempos da ditadura. Entre os tais, os óculos de Salvador Allende, quebrados pelo balaço que ele tomou na cabeça – outros dizem que ele suicidou-se, para evitar a humilhação que o exército, rebelado, vendido aos EUA, lhe poderia infligir... como ocorreria ao grande Victor Jara (Víctor Lidio Jara Martínez), cinco dias depois, covardemente assassinado. Do atentado contra Allende, Henry Kissinger (Heinz Alfred Kissinger), diplomata americano de origem judaica, disse ter sido uma coisa boa, afinal, o Chile “se havia tornado marxista em decorrência da irresponsabilidade de seu povo.” De fato, e como diz Martin N. Dreher: “Todos os fundamentalistas se parecem: os religiosos e os do mercado. Os religiosos porque vivem dos dogmas da fé; os do mercado porque, para eles, o mais importante são as leis que regem a compra e a venda de seus produtos. Desprezam vidas humanas. O trágico é que, enquanto desprezam vidas humanas, fazem-no em nome da Verdade Única.”

*****
..........Nos ataques e retaliações, todos têm razão, todos são inocentes, todos são culpados, todos são santos, todos são demônios. Por trás de cada ação moral ou imoral, o Eu de cada líder ostenta e quer preservar a imagem da polidez. Por amor ao bem comum e à Verdade que acreditam conhecer e defender, são capazes de matar, são capazes de morrer; por puro altruísmo, por desapego à vida em favor da pátria, do povo, por Deus. No final das contas, vivendo ou morrendo, é por eles mesmos que eles morrem, ou vivem. E se alguém pensa que não é líder de nada, nem de ninguém, não pode escapara de ser o seu próprio líder. A polidez, virtude pequena, desvela e encobre “o ‘eu’ por trás de nós, oculto”, e muito maior – como Emily Dickinson diz. Sim, este EU, muito maior, é “muito mais assustador”; e tanto que, “um assassino escondido em nosso quarto, dentre os horrores, é o menor.”

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* Conforme o Livro Guinnes dos Records (1990), este é o filme mais violento já produzido por Hollywood, com um total de 221 atos de violência e 108 mortes.


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

43.



As quatro Virtudes Cardeais



Prudência (Prudentia) | Confundiu-se a prudência, principalmente na Antiguidade e na Idade Média, com sapientia (φρόνησις, sabedoria), que é tradicionalmente aplicada à conduta racional das/nas atividades humanas, isto é: àquela capacidade que o humano (são) tem de dirigir suas ações da melhor maneira possível, com vista ao bem comum, e não somente o seu. Platão dizia que sofia (σοφία) é a ciência que governa a ação virtuosa: a prudência (Rep., IV, 443 e; 428 b). Assim, e como pode ser lido n’O Banquete (209 a): “[Sofia é] a mais elevada e, sem a menor dúvida, a mais bela [das virtudes], pois trata da organização política e doméstica, à qual se dá o nome de prudência e justiça.” Uma definição, sem dúvida, acima demais das nuvens – como ilustrado no Platão do/no afresco do italiano Raffaello Sanzio, “Academia de Atenas” (1511): dedo erguido, apontando o céu, como a mostrar que as ideias são mais reais que os seus simulacros. Aristóteles, realista, aponta para o chão, como a dizer: “[sofia é o] hábito prático e racional que diz respeito ao que é bom ou mau para o homem” (Et. Nic., VI, 1140 b 4), “[mas] o homem não é o melhor ser do mundo” (idem, VI, 7, 1141 a 21). A sabedoria é prática e, conforme o homem muda, ela também. Tanto que, tempos depois, encontramos Epicuro dizendo a Meneceu (A Meneceu, 132): “[a sabedoria] de que nascem todas as virtudes, é até mais preciosa que a filosofia”, porque tem a ver com a aplicação do saber à ação, para a aquisição da eudaimonía (vida feliz). Tal assertiva foi comumente aceita pelos estoicos: a sabedoria é a virtude absoluta, e somente o sábio poderá ser, realmente, feliz. É como a encontramos em Tomás de Aquino: “Conselheira em todas as coisas referentes à vida humana, bem como o fim precípuo da vida humana” (Sum. Theol., II, 1, q. 57, a 4); e “o fim precípuo da vida humana” é voltar-se para Deus (o Summum Bonum) e gozá-lo para sempre (bem-aventurança). Aliás, para os cristãos, a Sabedoria é uma personificação do Logos pré-encarnado (o Cristo) no Mundo, e já antes de sê-lo* – e mesmo quando Deus não falava nada, aos hebreus mais antigos, a Sabedoria era, também, no Mundo, a sua voz consciente, conscientizadora a bem conduzi-los à boa ação**. É neste sentido que se pode ler um texto no livro dos Provérbios (8, 22-31), onde a Sabedoria, personificada, faz um longo discurso aos homens:


..........Iahweh me criou, primícias de sua obra,
..........de seus feitos mais antigos.
..........Desde a eternidade fui estabelecida,
..........desde o princípio, antes da origem da terra.
..........Quando os abismos não existiam, eu fui gerada,
..........quando não existiam, os mananciais das águas.
..........Antes que as montanhas fossem implantadas,
..........antes das colinas, eu fui gerada;
..........ele ainda não havia feito a terra e a erva,
..........nem os primeiros elementos do mundo.
..........Quando firmava os céus, lá eu estava,
..........quando traçava a abóboda sobre a face do abismo;
..........quando condensava as nuvens no alto,
..........quando se enchiam as fontes do abismo;
..........quando punha um limite ao mar:
..........e as águas não ultrapassavam o seu mandamento,
..........quando assentava os fundamentos da terra.
..........Eu estava junto com ele como o mestre-de-obras,
..........eu era o seu encanto todos os dias,
..........todo o tempo brincava em sua presença:
..........brincava na superfície da terra,
..........e me alegrava com os homens. (BJ)

..........Quando o leitor se depara com o prólogo do Evangelho segundo João, não estranha a relação que evoca uma cristofania, na sapiência proverbial aí fincada, conforme o autor neotestamentário: “No início era o Verbo, e o Verbo estava voltado para Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava, no início, voltado para Deus. Tudo foi feito por meio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não o compreenderam” (Jo 1, 1-5, TEB). A ignorância, contrária à sabedoria, são as trevas. O sentido, embora tenha a roupagem da mensagem cristã, é o mesmo que pode ser encontrado nos gnósticos, quando estes personificam a Sabedoria como a última emanação (ou Eon), que quer sair do seu estado de desejo e alcançar o conhecimento direto do Pai – de acordo com o que diz Irineu de Lyon, no Adversus Hæreses (II, 5), e conforme o testemunho de Cícero, que diz que os gnósticos chamaram Deus (como também chamaram a alma do Mundo) de “Perfeita Sabedoria” (Acad., I, 29). O haver a Sabedoria, assim, é praticamente a recompensa que se tem, ou se pode ter, ao se fazer parte de um círculo iniciático, acadêmico-doutrinal: judeu, gnóstico, cristão, et cetera. É prudente aquele que vive conforme a Sabedoria, obedecendo-lhe. Quem assim não faz, não vive, afunda-se nas trevas da ignorância e, de modo algum, pode ser sábio, feliz.
..........Quando Plutarco*** escreveu o pequenino tratado Como distinguir o bajulador do amigo, foi uma prudência prática que evocou – coisa que somente apareceria, bem mais acabada, bem depois – destacando-se entre outros, menos famosos, Immanuel Kant. Não havia dúvida de que Platão e Aristóteles fossem mestres e estudiosos da natureza humana, mas tratavam esses temas de um modo que nem todos podiam alcança-los, tamanha a abstração com que conduziam seus raciocínios. Plutarco rompe com esse costume, expondo seu pensamento, neste sentido, de maneira muito lúcida e clara. Quando fala do bajulador, por exemplo, diz: “O bajulador é inteiramente semelhante ao camaleão, que pode assumir todas as cores, exceto a branca”. O homem sábio (ou prudente), deverá saber distinguir perfeitamente o amigo do bajulador.
..........No livro de André Comte-Sponville, Pequeno tratado das grandes virtudes (Martins Fontes, 1995), a prudência vem somente depois da polidez e da fidelidade (capítulos 1 e 2, respectivamente): “A polidez é a origem das virtudes; a fidelidade, seu princípio; a prudência, sua condição”, ele diz. “Mas”, questiona, “será ela mesma uma virtude?” Ao menos na Antiguidade e Idade Média, era – uma entre as chamadas quatro virtudes cardinais (Iustitia, Fortitudo, Sapientia, Temperantia)****. “É a mais esquecida, talvez. Para os modernos pertence menos à moral do que à psicologia, menos ao dever do que ao cálculo.” E aí Comte-Sponville introduz o pensamento kantiano, sua moral do dever.
..........Para não irmos tão longe, basta ficar assentado que, antes, os homens pensavam (de modo inquestionado): devo fazer o bem por amor ao bem, porque é o melhor a ser feito, para todos (no meio dos quais se incluía). Hoje, pensam, questionando: o que devo fazer para cumprir o meu dever – e/ou evitar as punições de não cumpri-lo –, e ter em paz a consciência? Esta é, sem dúvida, uma das melhores definições do triunfo do Eu-egoísta sobre o Outro, e sobre o Mundo, enquanto re-conhecimento de uma condição temporal: de situação, de juízo. Morto o ideal, não morre a ideia, mas a realidade do mundo se altera, altera-a; e nós nos transformamos também, acompanhando o fluxo do rio do tempo. E se não há uma Sabedoria personificada, um bom senso a conduzir os homens às melhores ações, há, ainda assim, um consenso acerca de... O Eu-egoísta-consciente de si é, também, consciente do Outro-egoísta-consciente de si; e sabe que, para preservar o seu próprio Eu, e para a sua felicidade, precisa se impor (e impor aos outros) certos limites, e/ou aceita-los conforme um mínimo de sentido requerido. E se não fosse assim, e pela impositura de acordos consensuais (e/ou leis aprovadas pelas maiorias ou seus representantes), seria a barbárie. De fato: o homem em seu estado natural – como tão bem exposto por Hobbes no Leviatã – não se submete aos acordos por amor a qualquer acordo, ou a um Summum Bonum, mas por amor a si-mesmo, acima de tudo; e depois, por submissão às forças que lhe são externas: da natureza ou do príncipe, ou do Estado, ou do lobo mais forte que ele. A prudência pode ser, dependendo do caso, mera retração ao ataque talvez perigoso; o nosso ataque. Quando não ferimos, é por amor de nós mesmos que não o fazemos. Ferir o Outro pode, dependendo do caso, doer muito mais em nós. A isto se dá, e sem nenhuma pele, o nome de prudência.

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* É o que propõem mostrar os vários autores do livro As raízes da Sabedoria. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. 86 p. (Col. Cadernos Bíblicos, 28).
** Neste sentido, ver: GILBERT, Maurice; ALETTI, Jean-Noël. A Sabedoria e Jesus Cristo. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. 101 p. (Col. Cadernos Bíblicos, 32).
*** Plutarco nasceu por volta de 47 d.C., na cidade grega de Queronéia, na Beócia. Estudou filosofia, matemática, medicina e retórica; viajou pela Ásia e pelo Egito, e esteve várias vezes em Roma. De volta à Grécia, em 95, foi incorporado ao colégio sacerdotal de Delfos. Já próximo de sua morte, em 120, ocupou altos cargos municipais. É considerado um dos principais pensadores de seu tempo, e um dos primeiros moralistas (no sentido moderno do termo), tratando friamente sobre as paixões, sobre os costumes, os vícios e as virtudes dos homens – admirado por autores como Schakespeare, Corneille, Schiller, e influenciando aquele que é, certamente, o maior de todos os moralistas modernos: Michel Eyquem de Montaigne.
**** Os Padres criam haver uma participação do Cristo (e por Cristo) em cada uma das virtudes, e não faziam distinção (como os escolásticos, depois) entre as virtudes “naturais” e as “sobrenaturais”. Quase todos aceitavam e explicavam àmiúde a divisão que Platão (Polit., 439a s) fizera às quatro virtudes cardeais: 1) a prudência que aperfeiçoa o logistikón, a mente; 2) a coragem que é a força do thymoeidés, apetite irascível contra o mal; 3) a temperança, que resiste ao epythymetikón, a concupiscência; 4) a justiça, que harmoniza em sua justa proporção o exercício das virtudes precedentes.



quarta-feira, 10 de agosto de 2011

42.



Da solidão do solitário



21 de agosto de 1865, 5 horas da manhã. Richard Wagner está nas montanhas, em uma pousada que o seu amigo Luís II da Baviera lhe emprestou, longe de Munique, nas encostas do Hochkopf. Ali, longe de sua amada Cosima, escreve a seguinte nota em seu Caderno marrom – que é um diário, dedicado à amada: “Afastado de ti, aproximei-me ainda mais de tua pessoa. Sinto isso! Tu és, para mim, minha única e meu tudo. Volta e tudo ficará bem.” Não ficaria. Não ficou.
..........Exemplo da espécie, o homem treme de pavor diante da solidão – da qual é e está sempre sujeito, sujeitado. Não há nada além do Eu – mesmo quando em relação com o Outro (a quem diz amar, podendo odiar ou ser indiferente), e com o Mundo (que é onde o Eu encontra o Outro, e a si mesmo). Para fugir de tal temor, inventaram-se “coisas”: clãs, tribos, cidades, os Estados, os partidos, os deuses, as religiões, et cetera. E para fazer frente ao trágico que impera sobre tudo, que quer esmagar o Eu, a arte foi, para os gregos, inicialmente, a grande saída. Mas, o que é a arte?
..........Seja lá o que for, é ela que transfigura a desordem reinante do/no Mundo, fazendo com que a vida, embora terrível e problemática, seja suportável. No Mundo, tudo dança aos pés do acaso. Se o Outro não é invenção, mas consequência, a relação com ele, sim – bem como com as coisas que escapam às análises miúdas da nossa razão instrumental: Deus, os anjos, as entidades supralunares, et cetera. Ágape, o amor sublime, sublimado, tão eficazmente inventado como Ideal, Perfeito, foi, como afirma Nietzsche, uma dose de veneno contra Eros: “O cristianismo deu a Eros veneno para beber – ele não morreu, é verdade, mas degenerou-se em Vício.” (Além do bem e do mal, 4, 168). Contudo, e por mais que se produza o ópio cotidiano, o trágico não se vai; e nem a nossa enorme solidão; apenas esconde-se, calada – como um gato que espreita o passarinho. Na hora certa, ela pula sobre nós, e desfalecemos em suspiros e olharem compridos janela afora. E se não houver mais ópio, e nem novas mentiras aos nossos sentidos, sempre haverá alguma arma por perto, e o seu disparo – como no caso do pobre Werther; como no caso do jovem Tristão; como no caso de Romeu; como no caso do Cristo, por amor à sua Igreja... Tanto mais sublimado o amor, tanto mais mentiroso e perigoso ele é. A besta que habita em todos nós não tem nada de sublime, nada de romântico, nada de belo, nada de leal, nada de verdade senão a verdade de si-mesma, para si-mesma: sua vontade; a besta que habita em todos nós está sempre caçando a sua presa, e caça sozinha.


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

41.


Da estética e do fundamento da “ideia de estética” (II)


Não existem pessoas feias, ou coisas. Existe mesmo é a estética, e a moral. Mas, o que é a estética? E o que é a moral? Todos os estetas e todos os moralistas deveriam, como Tim Maia, trabalhando como guia de turismo em 1974, no Rio de Janeiro, usar uma placa que dissesse: “Não me sigam, também estou perdido!”



terça-feira, 2 de agosto de 2011

3. Escousses estético-analíticos


40.


Da estética e do fundamento da “ideia de estética”


Estética, que é a “teoria do belo”, vem do grego aisthesis, que significa “faculdade de sentir”, “compreensão pelos sentimentos, pela intelecção” e, ainda, “percepção totalizante”. Trata-se, portanto, da teoria da percepção dos padrões distintivos entre um e outro valor e, logo, da percepção hierárquica dos sentidos. Aplicada à(s) arte(s), a estética faz juízo do seu objeto, classificando-o conforme o valor da percepção crítico-individual que considera o tempo, o espaço, os valores simbólico-objetivos (custo, técnica, público destino, outros...) et cetera. Sendo a “beleza” um termo dos mais subjetivos, o valor da estética aplicado à(s) arte(s) gera conflitos insolúveis: o que é lindo, para A, pode ser um horror, para B. Alguns autores – e vou com os tais –, afirmam que a arte escapa a todos os conceitos, sendo percebida apenas intuitivamente (uma espécie de tribunal interno), e fruída ao critério de cada um, do gosto individual (que, outro, pode questionar; se se leva em conta os níveis qualitativo-quantitativos como: educação, classe social, afinidades com o tema, et cetera). Não obstante – e esta é, certamente, a maior das antinomias aplicadas à(s) arte(s) –, os valores existem (mesmo que os critérios sejam questionáveis); e existem para que seja possível fazermos uma distinção elementar entre o que seja um poste de luz elétrica na via urbana e um poste de luz elétrica nalguma instalação nalguma exposição nalgum salão de artes; e existem para que, eu e você, por algum mecanismo íntimo, possamos saber o que, em se tratando de arte(s), pode ser, ao menos para nós, um luxo ou um lixo. Mesmo que o valor de uma obra esteja consignado ao nosso juízo (ou a aceitação de um juízo externo), parece que, sim: há “um valor” – que pode facilmente ser notado em seus tantos contrapontos. Em Awful art (Scholastic Ltd., 1997), Michael Cox conta que, certa vez, em Paris, durante um jantar dos futuristas (grupo de poetas e artistas surgido no começo do século XX), o italiano Fillippo Tomasso Marinetti, poeta e líder do grupo, teria afirmado: “Toda arte antiga deve ser destruída, e da forma mais violenta possível.” No diálogo imaginado (embora ocorrido, de outro modo) por Cox, Marinetti, empolgadíssimo, fala aos amigos:

..........MARINETTI – Até destruirmos a arte do passado não pode haver arte
..........moderna. Temos que ir ao Louvre!
..........OUTRO – Isso! Vamos apreciar a arte!
..........MARINETTI – Apreciar não, seu doidão! Vamos até o Louvre... queimar
..........a arte! Queimem o Louvre! Queimem o Louvre!
..........OUTRO – Vai ser a fogueira mais artística que já se viu!

..........Somente depois de morto, há quase cem anos, foi que as telas de Vincent van Gogh começaram a ter o valor que, hoje, têm. Tudo teria começado na casa de leilões Christie’s, em Londres, quando uma de suas pinturas de girassóis foi vendida por cerca de 42 milhões de dólares. Meses depois, um bilionário australiano pagaria mais de 50 milhões de dólares pela tela Íris. E as reproduções desses mesmos quadros enfeitam, agora, milhares de casas por todo o mundo. Mas o seu autor, o pobre Vincent, para não morrer de fome, alimentava-se frequentemente de biscoitos de marinheiro (farinha de trigo, água e sal) e ovos, e só. Uma vez, no desespero, comeu suas tintas, tentando envenenar-se. É que suas pinturas, com pinceladas enérgicas, grossas camadas de tintas coloridas e pulsantes, estavam muito à frente do seu público, no final do século XIX, que às considerava grosseira, espalhafatosa e de extremo mau gosto. As mesmas que, agora, são consideradas geniais – avaliadas entre 65 e 85 milhões de dólares, mesmo a mais singela dentre elas. Na grande História da Arte, e com frequência, o Tempo não é amigo do artista genial; e nem os seus críticos.
..........“Isto não é bonito, não é bom!” Por qual critério diríamos? Por qual parâmetro? O pergunta pelo fundamento do valor estético. Ah!, isso sempre independe dos consensos acerca do que, inescapavelmente, seja mera percepção da nossa individualidade estética. Mesmo assim, a arte, como a História (que precisa ser dita), precisa ser vista, avaliada. No final das contas, o grande problema não é o da estética, mas do seu fundamento, e da verdade/realidade de “tal fundamento”.


segunda-feira, 1 de agosto de 2011

39.



Os 5 conselhos da prudência



1. Quando você encontrar alguém muito bem intencionado, fuja.
2. Quando esta ou aquela doutrina (religiosa ou política) te parecer perfeita e acabada, pronta para incendiar o mundo e trazer o progresso, a paz e o paraíso à Terra, desconfie.
3. Quando você cair (ou for atirado) de um prédio muito alto, e até que chegue ao chão, e a óbito, aproveite a queda: voar é o teu sonho mais antigo, lembra?
4. Quando te disserem: não dá!, é impossível! Sorria, e vá em frente. Pode parecer clichê (e é), mas é bem certo que toda grande caminhada começa com o primeiro passo; e se tudo vier a confirmar o que te disseram, quando te advertiam, ao menos você tentou, não foi?
5. A maior e melhor de todas as advertências é: tenha medo daquele ou daquela que diz: “eu te amo”; e o maior e melhor de todos os conselhos: “Não siga os conselhos de ninguém!”

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Observação:

Terminam aqui os “Escousses exegético-psicológicos”. A seguir, os fragmentos dos “Escousses estético-analíticos”, e o final desta série.


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