quarta-feira, 24 de outubro de 2012


20.




Dos nomes que o Amor tem, e do sentido que eles escondem



“Amor”, substantivo masculino... Os dicionários comuns não ajudam:

1. Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem a outrem. 2. Sentimento de dedicação absoluta de um ser a outro, ou a uma coisa. 3. Inclinação ditada por laços de família. 4. Inclinação sexual forte por outra pessoa. 5. Afeição, amizade, simpatia. 6. O objeto do amor (1 a 5).1

“Amar”, verbo intransitivo, que nem na novela de Mário de Andrade, onde o pensamento ingênuo de Elza lhe diz que, no princípio, o amor tem que ser simples. “Simples e insexual. [Pois] nasce das excelências interiores. Espirituais. O desejo [vem] depois.2” Mas, ah!, que seria isso senão antecipar o pensamento ao pensador, à “coisa pensante (res cogitans)? Não! Não é assim, Elza. Primeiro é a res extensa3, depois a cogitans, e, somente aí, o cogito. O cartesianíssimo cogito ergo sum antepõe-se ao pensamento, afirmando o sujeito4. É assim também com a fórmula agostiniana si fallor, sum: se me engano, existo5, que alguns veem como germe da fórmula cartesiana. É preciso haver o que se engana para que haja o engano... Elza saberá disso, depois.
Quantos saberão? Quantos quererão saber?
“São tantas as teorias sobre o amor, e nenhuma delas serve para nada”, alguns dizem, apressando-se no juízo, pensando com o coração, que nada pensa, mas considera o “fato imediato”, não refletido  na aceitação de um sentimento que, para ser inteiro, exige tempo, calma, ponderação e, acima de tudo, fundamentos. A informação/sensação imediata do visual é vomitada, e agressiva – hoje, mais que antes. A sutileza racional é moeda rara. Adquiri-la exige tempo e esforço, principalmente aos que não são naturalmente dotados de muito brilhantismo intelectual. Os apelos externos, por outro lado, tornam tal empresa ainda mais laboriosa. A segurança reverente da palavra escrita vai sumindo diante das tantas telas do zapping em sua profusão, como lembradas e louvadas pelo Capitão Beatty, na distopia de Ray Bradbury:

Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com “fatos” que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente “brilhantes” quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque no terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia.6

É preciso desobedecer tal orientação, mesmo com as ameaças da melancolia – coisa que Guy Montag, personagem principal de Fahrenheit 451, fará e experimentará. No amor, para saber, é preciso saber: amores são, por quaisquer caminhos, afirmações absolutas do nosso Eu que, em função de si mesmo (ou da sua autopreservação), cria “coisas” e fantasias – sendo a religião, muito provavelmente, a maior de todas. Schopenhauer chamava isso (essa força do “amor”) de Vontade (Wille), e Freud, Pulsão (Trieb).
Os amores, na divisão clássica, se distinguem em, pelo menos, quatro: erótico (Eros, eran), o da amizade (philia, philein), o desinteressado (ágape, agapan) e o amor a si mesmo (stergein), ou amor-próprio, amour de soi.
Homens e mulheres que somos, somente experimentamos, por meio do intelecto ou da experiência pura, o último dessa lista. Volto a Nietzsche: “O egoísmo não é um princípio, é só e unicamente fato.7” A farsa, a maior de todas, é a do amor romântico. Ele seria o Eros domado, abraçado à philein, subjugado e dependente da perfeição de ágape. Aí ele se espelharia, unindo os corações e as mentes em uma grande fraternidade universal que, embora as tantas diferenças, transforma homens e mulheres em irmãos8; e mesmo quando (homem e mulher) eles se fazem um (uma só carne), através do matrimônio - que a doutrina católica apresenta como sacramento. Ágape é, acima de tudo, fundamento. Não!, eu digo. Ágape é, acima de tudo, delírio, fantasia, desejo que exista algo além do que os nossos olhos podem ver. Não há. E, se há, somente a nossa fé o garante; a razão, nunca. Mas aqui não há lugar para a fé... não essa. 
Assim, o amor que Arturo sente por sua mulher, ou por sua amante, ou por qualquer outro (ou outra) que seja objeto da sua atenção, é, no final das contas, amor que deseja e responde apenas a si mesmo, e vê no Outro aquilo que lhe faz bem, lhe dá prazer, lhe faz falta, lhe apetece as afecções... o EU refletido no TU. O Outro, objeto, mesmo que outros discursos digam o contrário na tentativa infantil de manter o modelo afundado na poeira dos séculos -, é mero objeto, meio para a minha satisfação, por amor a mim mesmo. Mas, ah!, também sou o mesmo para ela, ele: objeto, de amor ou ódio.
Na carta do Apóstolo aos cristãos de Éfeso: “Quem ama a sua mulher, a si mesmo se ama”. É evidente que esse, nosso, não é o mesmo sentido que o Apóstolo dá à missiva. Também é certo que o contexto do discurso deixa claro aquele sentido estoico-fraternal de há pouco falado. Mas, sim, a citação ilustra perfeitamente o que dizemos.
Agora, suponhamos que alguém tenha um filho e, coisa mais que normal, diga-lhe: “Eu o amo, filho.” Esse amor é, também, braço curto do amour de soi. Que é isso, o desejo de ter filhos (o pai, via de regra, deseja um filho, e a mãe, uma filha), senão o nosso desejo inconsciente de continuidade? Continuidade do Eu no Tu. Os pais, nos filhos, mantêm-se vivos, prolongam-se na história biológica do mundo. Ágape nenhum. Obedecemos, quase sempre, cegamente ao impulso natural. Não há amor aí, apenas Vontade de vida.
Ágape é uma espécie de “amor pelo feio”9, em contraste ao Eros grego – que corresponde exatamente ao amor pelo belo, erótico, sexual. No Novo Testamento, o que mais aparece é ágape, depois philein. Eros e stergein, somente como insinuações combatíveis, a combater-se10. E foi assim que, conforme Nietzsche,

O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores supremos do espírito. E exemplo mais lamentável – a corrupção de Pascal, que acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando ela fora corrompida apenas pelo seu cristianismo!11

Amor por algo que não merece o amor, é ágape: o caridoso ágape – coração das palavras charis (graça, favor imerecido) e charitas (caridade). Nalgumas versões mais antigas do Novo Testamento – do capítulo 13 da primeira epístola de são Paulo Aos coríntios, mais especificamente –, a tradução de αγάπη aparece como “caridade”, muito mais acertada; pelo sentido que evoca em seu grande contexto, diferente do que aparece nas versões modernas. Aqui, porém, este detalhe filológico/exegético não vem ao caso.
O amor é sempre amor por algo, e esse algo sempre esbarra em nós mesmos. O “querer algo” nunca é, realmente, “querer algo”, mas querer-si-mesmo12. Madre Tereza de Calcutá é um exemplo radical, inevitável... some-se a ela todos os homens bons, os santos, os justos, os piedosos, os salvadores da humanidade. Tanto mais amor “demonstrado” ao outro (em função do outro), tanto mais amour de soi. No outro, vemos o reflexo de nós mesmos. Mesmo no suicídio, que alguém poderia julgar o maior ato de desapego à vida própria vida, de desamor a ela.

Todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva uns a irem para a guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em todos, acompanhado de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a menor diligência, senão com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo do que vão enforcar-se.13

Quando se faz o bem a alguém, faz-se porque é bom fazer o bem a alguém ­– conforme o modelo moral-dualista do Ocidente, que diz que o bem é bom por si mesmo, e o mal, mau... ou, por falta de um discurso mais preciso, “a privação [ausência] do Bem”, de Deus14. Tais conceitos, porém – veja os filmes de Akira Kurosawa –, não são assim tão precisos, fechados, infalíveis. Se Deus é onipresente, como haveria de haver algo em que ele “faltasse”? E como poderia estar quieto no mesmo lugar em que o mal estivesse, sem destruí-lo? Estaria somente nas obras do amor? Obras de amor... Ah!, o prazer do dever cumprido! O coração repleto de ações altruístas que... não!
Tenha medo, muito medo, de quem diz: eu te amo. Veja-o com desconfiança e, talvez, com a pergunta infalível: por quê?




1 Verbete em: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 29.
2 ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 21.
3 Não levo em conta o idealismo (moderado?) cartesiano que separa o corpo (ou a matéria) do intelecto, e que supõe uma res divina, substância muito mais exterior e necessária.
4 A necessidade do “eu sou, eu existo” – uma vez que não se pode duvidar sem existir – é o primeiro conhecimento certo que, segundo Descartes, se pode ter com certeza. E mesmo que exista um “Génio Maligno” que possa me enganar a respeito de muitas coisas, inclusive de mim mesmo, “não há dúvida que também existo, se me engana; que me engane quanto possa, não conseguirá nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que, depois de ter pensado e repensado muito bem tudo isto, deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito, é necessariamente verdadeira.” (DESCARTES, René. Meditações sobre a Filosofia Primeira. Coimbra: Livraria Almedina, 1976. p. 119).
5 “Pois se me enganar, existo. Realmente, quem não existe de modo nenhum se pode enganar. Por isso, se me engano é porque existo. Porque, portanto, existo se me engano, como poderei enganar-me sobre se existo, quando é certo que existo quando me engano?” (De Civ. Dei, XI, XXVI; AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. 2. ed. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas / Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. p. 1051-2).
6 BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. 2. ed. São Paulo: Globo / Biblioteca Azul, 2012. p. 86.
7 NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência. São Paulo: Escala Editorial, 2010. p. 148. (Col. Grandes Obras do Pensamento Universal, 97).
8 O conceito, em sua universalidade, vem dos estoicos, com a afirmação de um Logos universal (isto é, presente em todos os indivíduos humanos), abraçado pelo apóstolo Paulo e, depois, subscrito pelos Padres. Ver, a propósito do tema, o livro de: RATZINGER, Joseph. A união das nações: uma visão dos Padres da Igreja. São Paulo: Loyola, 1975.
9 No sentido contrastante de que, Deus, a ninguém apreciaria mais ou menos em resposta a algum atributo estético: “Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; aquilo que no mundo é vil e desprezado, aquilo que não é, Deus o escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura possa orgulhar-se diante de Deus.” (I Cor., 1, 27-9, TEB).     
10 “Dos quatro verbos gregos que denotam os diferentes aspectos do amor, eran, stergein, philein e agapan, os dois primeiros são praticamente evitados no Novo Testamento (especialmente eran e o substantivo eros, pois possuíam conotações afetivas incompatíveis com o amor a Deus). O terceiro, philiein, não foi privilegiado, focalizando a atenção em agapan e o substantivo agape, cuja aplicação, até o momento marginalizada, permitia a ampliação do campo semântico requerida. Nesse sentido, o amor ocupa o lugar principal e a amizade o secundário no cristianismo, invertendo a hierarquia pagã.” (ORTEGA, Francisco. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 58).
11 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: Maldição do cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 12 (§ 5).
12 SCHOPENHAUER, Arthur. El amor, las mujeres e otros ensayos. Madrid: Editorial EDAF, S. A., 1993, p. 439-60. (IV, § 62). Schopenhauer, aí, tem o pensamento no Banquete, de Platão.
13 Pens., VII, 425; PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 137. (Col. Os Pensadores).
14 É o que Santo Agostinho afirma, demonstrando inicialmente que o mal não é um ser, que não tem caráter ontológico, sendo o completo não-positivo do não-ser: “O mal não tem natureza alguma; pois a perda do ser é que tomou o nome de mal” (De Civ. Dei, IX; AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus: contra os pagãos. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2003. p. 29. v. II); ele é, ademais, a perversão da vontade: “E procurando o que era a iniquidade compreendi que ela não era uma substancia existente em si mesma, mas a perversão da vontade...” (Conf., XVI;  AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 2006. p. 191); e como a vontade não é livre (por causa da Queda), embora o homem tenha livre-arbítrio, o mal é ação do homem, sem Deus: “Assim a avareza não é vicio do ouro, mas do homem que ama desordenadamente o ouro, por ele abandonando a justiça, que deve ser infinitamente preferida a esta metal. E a luxuria, não é vicio da beleza e graça do corpo, mas da alma que perversamente os prazeres corporais desprezando a temperança, que nos une a coisas espiritualmente mais belas e incorruptivelmente mais cheia de graça. E a jactância que não é vicio do louvo humano, mas da alma que ama desordenadamente ser louvada pelos homens, desdenhando o testemunho da própria consciência. E a soberba não é vicio de quem dá o poder, ou do poder mesmo, mas da alma que ama desordenadamente seu próprio poder, desprezando o poder mais justo e poderoso. Por isso quem ama desordenadamente o bem, seja de qual natureza for, mesmo conseguindo-o, se torna miserável e mau no bem, ao privar-se do melhor.” (De Civ. Dei, VIII; p. 70). Mais sobre a questão do mal, em Agostinho, em: EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995.






quarta-feira, 10 de outubro de 2012


19.





Do egoísmo e seu problema



Antes de ser vitimado por um câncer em 15 de dezembro de 2011, Christopher Hitchens foi um dos ateus mais atuantes e influentes, defendendo teses que mostram a atual desnecessidade das religiões; existentes, no passado, por alguns motivos óbvios: o nosso medo infantil daquilo que é maior que nós, e externo (o mundo, o cosmos, o desconhecido, etc.), nosso medo da extinção do nosso Eu post mortem e a necessidade de alguma resposta à pergunta: “por que há alguma coisa ao invés do nada?” A resposta da fé foi, por muito tempo, mais importante do que a resposta nenhuma. Nunca soubemos silenciar o pensamento inquiridor, a dúvida cortante, o espanto diante de... Daí nasceu a filosofia, daí vieram as religiões. Por um viés mais político, a religião também foi (e ainda é) instrumento para o surgimento, poder e manutenção de líderes autointitulados  ou intitulados por outros  representantes dos deuses entre nós, seus/nossos legítimos mediadores na terra, etc.
Ensaísta, crítico literário e jornalista, Hitchens era conhecido, juntamente com Richard Dawkins, Sam Harris e Daniel Dennet, como um dos quatro “cavaleiros do ateísmo”. Algumas teses de Hitchens têm bases antigas, apoiadas nos estudos naturalistas de Charles Darwin e no pseudo-agnosticismo de Thomas Henry Huxley1 (“pseudo” porque, embora seja assim que o próprio Huxley tenha definido a sua posição religiosa – aliás, o primeiro a fazê-lo –, suas convicções são as mesmas de qualquer ateu confesso), bem como na grande crítica de Nietzsche à moral cristã e no materialismo histórico de Marx, Engels, dentre outros2. Seu livro de 1995, The missionary position: Mother Teresa in theory and practice3, foi base para um documentário produzido para a televisão, que, no Brasil, ganhou o título de Madre Teresa de Calcutá: anjo do inferno4, no qual é narrador. Madre Teresa foi, para Hitchens, uma “ladra anã e fanática”, uma “demagoga de extrema-direita”, uma fraude dissimulada. No seu “amor ao outro”, o que mais aparecia era o amour de soi. Embora a teoria do “gene egoísta” (the selfish gene) tenha sido divulgada por seu amigo Dawkins5, não há como não vê aí – e em todos os livros de Hitchens – a natural prevalescência do Eu como agente primeiro e inevitável a qualquer causa que seja considerada boa ou má, conforme as normas culturais e/ou os juízos éticos consensuais, dentre outras áreas e análises que podem ser lembradas – a religiosa, por exemplo.
Apesar da fama de crítico das religiões – da cristã, em especial –, nem Hitchens, nem Dawkins, e nenhum outro “cavaleiro do ateísmo” foi tão frio e incisivo, até hoje, quanto o já mencionado Nietzsche – a quem o equivocado Urbano Zilles se refere, forçadamente, como um “cristão [em] potencial ou reprimido”6. Não mesmo!
Depois de ver Madre Teresa de Calcutá: anjo do inferno, o trecho abaixo – enorme, mas interessante e provocativo – fará todo o sentido, e reforçará o que é dito por Hitchens, Dawkins, Harris e Dennet, referente ao nosso egoísmo inevitável, e necessário.   

“253 – O egoísmo e seu problema! A tristeza cristã em La Rochefoucauld7 que o encontra em toda parte e julga com isso diminuir o valor das coisas e das virtudes! Procurei de início demonstrar contra ele que nada mais pode existir senão o egoísmo – que no homem, cujo ego se enfraquece e se ameniza, a força do grande amor se enfraquece também – que os grandes apaixonados o são por força de seu ego – que o amor é uma expressão do egoísmo, etc. O erro na avaliação visa na realidade o interesse: 1º. daqueles que é necessário servir, ajudar; do rebanho; 2º. contém uma suspeita pessimista na própria raiz da vida; 3º. procura negar os homens mais magníficos e mais realizados: medo; 4º. quer ajudar os vencidos a reivindicar seu direito contra os vencedores; 5º. acarreta uma deslealdade geral, até entre os melhores homens.

“254 – Crítica do amor-próprio. – Ingenuidade involuntária de La Rochefoucauld, que acredita dizer algo de audacioso, livre e paradoxal – nessa época a ‘verdade’ psicológica parecia surpreendente. Exemplo: ‘As grandes almas não são as que têm menos paixões e mais virtudes que as almas comuns, mas somente as que têm maiores desígnios.’ É verdade que John Stuart Mill8 (que chamava Chamfort9 o La Rochefoucauld do século XVIII, mas mais nobre e mais filósofo) só vê nele o observador perspicaz de tudo o que na alma humana se reduz ao ‘amor-próprio habitual’ e acrescenta: ‘Um espírito nobre jamais consentirá em se impor a necessidade de considerar de modo duradouro a vulgaridade e a baixeza, se for para mostrar contra quais influências nefastas a elevação do espírito e a nobreza do caráter podem prevalecer.’

“255 – Nunca pensei em ‘deduzir’ todas as virtudes do egoísmo. Gostaria de estar certo primeiramente que são ‘virtudes’ e não formas temporárias que o instinto de conservação assume em certos rebanhos, em certas comunidades.

“256 – Não pode haver ações não egoístas; as palavras ‘instinto altruísta’ soam a meus ouvidos como ‘ferro de madeira’. Gostaria que se tentasse demonstrar a possibilidade de semelhantes atos. É o povo que acredita que existem, e todos aqueles que se assemelham ao povo; – é como se acreditássemos que o amor materno ou simplesmente o amor são sentimentos altruístas.
            Acreditar que os povos sempre interpretaram no sentimento do egoísmo e do altruísmo o quadro do bem e do mal é um erro histórico. O bem e o mal como o ‘lícito’ e o ‘ilícito’ (conforme ou não ao ‘costume’) são muito mais antigos e universais.

“257 – Os homens admiram e elogiam os atos de outro que parecem desinteressados de sua parte, contanto que esses atos sirvam a eles. (Desinteressados no sentido do desfrute ou da utilidade). Outrora se conferia ao desfrute e à utilidade10 um sentido muito vulgar e muito estreito; e todo aquele que fizesse uma coisa, por exemplo, para a glória, já era desinteressado na opinião dos homens grosseiros, da massa. É porque não viam os desfrutes mais delicados, porque muito maior era a estima no domínio do desinteresse. A falta de refinamento psicológico é a razão de muitos elogios e de admiração. Uma vez que a massa não tem paixão, admira a paixão, porque está ligada a sacrifícios e ignora a prudência; não podendo imaginar o desfrute que a paixão oferece, era negada. A multidão despreza tudo o que é habitual, fácil, pequeno.

“258 – Como nascem o instinto, o gosto, a paixão? Esta sacrifica em proveito próprio outros instintos menos poderosos (outras necessidades de prazer); não é altruísmo. Um só instinto domina os outros, mesmo o pretenso instinto de conservação. O ‘heroísmo’, etc., não foram compreendidos como paixões, mas como eram muito úteis aos outros, eram considerados como superiores, mais nobres, diferentes, porque a maioria das outras paixões eram perigosas para os outros. Era uma visão bem limitada! Mesmo o heroísmo do patriotismo, da lealdade, da ‘verdade’, da pesquisa, etc., é extremamente perigoso para os outros – mas os homens são muito tolos para perceber isso. De outra forma, difamariam as virtudes altruístas, como a cobiça, a sensualidade, a crueldade, o gosto das conquistas, etc. Mas as primeiras, uma vez julgadas e sentidas como boas, aos poucos foram idealizadas, tornaram-se ideais. É assim que o trabalho, a pobreza, a usura, a pederastia foram desprezadas em certas épocas, idealizadas em outras.

“259 – Que um homem não deseje certas coisas, não goste delas, nós lhe imputamos isso à baixeza e à vilania. O ‘altruísmo’ é exatamente o contrário: consiste em amar certas coisas às quais sacrificamos outros instintos e sobre as quais a maioria dos outros homens não chegue até mesmo a pensar que possamos amá-las até esse ponto. Desse modo admitem o milagre do ‘altruísmo’.

“260 – Os homens constataram com surpresa que alguns negligenciam seu próprio interesse (na paixão ou por gosto); ficaram cegos em proveito íntimo do orgulho, da emoção, etc., e consideraram esses homens primeiramente loucos, depois bons, no caso em que levassem vantagem da parte deles. Em seguida desenvolveram a crença de que esses atos são realizados propositadamente para seu bem. Ao elogiar essa espécie de homens e de ações, conseguimos fomentar outros atos análogos e gratuitos. O que exaltou o altruísmo até esse ponto foi o egoísmo daqueles que necessitam de ajuda e benefícios.

“261 – O amor. – Olhem-nos a funda esse amor e essa compaixão feminina – o que há de mais egoísta? E quando as próprias mulheres sacrificam sua honra, sua virtude, a quem elas se sacrificam? Ao homem? Ou melhor, a uma necessidade desenfreada? São desejos igualmente egoístas, embora representem um benefício para outros e inspirem reconhecimento.
            Em que medida semelhante superfetação de um único valor pode santificar todo o resto.

“262 – Viver para os outros: passatempo infinitamente agradável para os homens intensamente egoístas (entre eles contamos aqueles que se torturam por escrúpulos morais).

“263 – A compaixão, desperdício do sentimento, parasita prejudicial à saúde moral. ‘Só pode ser o dever, aumentar a soma dos males no mundo.’ Toda vez que só fazemos o bem por compaixão, fazemos o bem para nós mesmos e não ao próximo. A compaixão não se baseia em máximas; a compaixão é um contágio.

“264 – Crer que a história de todos os fenômenos morais se deixa simplificar, como julgou Schopenhauer, a ponto que a compaixão esteja na raiz de toda emoção moral conhecida – é um grau de absurdo e de ingenuidade onde só poderia chegar um pensador desprovido de todo senso histórico e que teria escapado de forma mais estanha dessa marcante escola histórica que os alemães fundaram, de Herder11 a Hegel.12

“265 – O egoísmo não é um princípio, é só e unicamente fato.

“266 – O egoísmo! Mas ninguém jamais perguntou de que tipo de ego se trata. Todos supõem involuntariamente que todo ego é igual a outro ego. Essas são as consequências da teoria servil do sufrágio universal e da ‘igualdade’.

“267 – Não há egoísmo que se mantenha em si e que não invada os outros – portanto, esse egoísmo ‘permitido’, moralmente indiferente, de que se fala, não existe.
            ‘Sempre se desenvolve o próprio eu em detrimento do próximo’ – ‘A vida subsiste sempre à custa de outra vida’ – quem não compreende isso não deu ainda o primeiro passo na probidade para consigo mesmo.

“268 – Retificação do conceito de ‘egoísmo’ – Se compreendemos até que ponto o conceito de ‘indivíduo’ está errado, quando todo ser particular é justamente o processo inteiro em linha reta (não a herança desse processo, mas o próprio processo), então o ser particular adquire uma enorme importância. O instinto fala nele de modo preciso. Quando esse instinto se enfraquece, quando o indivíduo procura um valor no serviço de outrem, podemos concluir com toda segurança pela lassidão e degenerescência. O altruísmo dos sentimentos, se for profundo e sem trapaça, é um instinto que procura garantir-se pelo menos um valor secundário no serviço de outros egoísmos. Mas na maioria das vezes é apenas aparente, é um desvio destinado a conservar o sentimento próprio de nossa vida, de nosso valor.”

Cristãos católicos e protestantes, notadamente os que utilizam as grandes mídias para a divulgação do que afirmam ser uma “mensagem cristã”, não encontram forma melhor de “venderem sua fé” senão explorando o que há de melhor partilhado entre os homens: o egoísmo, a imediata satisfação do Eu. O que pedem em volta, mais do que a fé ou a piedade, são os recursos para continuarem aí, aparecendo e rapinando os mesmos crentes miseráveis que, carentes de senso crítico, não percebem que são vítimas exatamente do que combatem, neles e nos outros: o egoísmo, o superexagerado amor ao Eu.
É claro que há diferenças entre o egoísmo valor moral (a super autoestima, a vontade de receber o louvor alheio, etc.) e o egoísmo natural (o cuidado inconsciente do Eu que abraça, inclusive, a ideia do “valor moral”), sem o qual a vida não é possível. O problema é que esses mesmos cristãos, crédulos e confiantes, não pensam sobre tais diferenças – como é comum de se fazer depois de abraçarem a fé no que, dizem, está além da razão... E assim não ouvem o sapere aude! kantiano, dentre outros desafios menores. Mas até mesmo isso, essa preguiça da razão e o seu sono, não é outra coisa senão uma cama grande e macia onde deitamos o nosso Eu, deixando que a vida siga o seu curso natural, animalizando-nos – pela falta de uma reflexão desapaixonada referente às coisas da fé, às vezes, única paixão. Paixão? Paixão nenhuma.






1 Cf. HUXLEY, Thomas Henry. Escritos sobre ciência e religião. São Paulo: Editora UNESP, 2009. (Col. Pequenos Frascos).
2 Hitchens é conhecido por sua admiração a George Orwell, Thomas Paine e Thomas Jefferson, frequentemente citados em seus livros.
3 HITCHENS, Christopher. The missionary position: Mother Teresa in theory and practice. London: Verso, 1996.
4 Pode ser visto no YouTube, em: <http://www.youtube.com/watch?v=zjB1YlDE4ok> Acesso em: 10 out. 2012.
5 DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. The selfish gene foi publicado pela primeira vez em 1976.  
6 “[Nietzsche] atacou o cristianismo com fanatismo. Serviu-se de certas formas do cristianismo histórico nas quais só via debilidade e mentira. Rejeitou a idéia de um Deus vingador. É difícil verificar até que ponto sua fúria anti-religiosa não oculta um cristão potencial ou reprimido.” (ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1991. p. 180 [Col. Filosofia]).
7 François La Rochefoucauld (1613-1680), escritor moralista francês. 
8 John Stuart Mill (1806-1873), filósofo e economista inglês, divulgador do pensamento utilitarista. 
9 Pseudônimo de Sébastien-Roch Nicolas (1740-1794), que foi poeta, jornalista, humorista e moralista francês.  
10 Cabe exatamente ao conceito da moral cristã de Santo Agostinho (354-430), relacionado ao uti e frui, que, principalmente no De doctrina Christina, aparecem pormenorizados e definidos: “Fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela própria. E usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser amado” (De doc. christ., I, 4). Nas palavras de Lima Vaz: “Agostinho recorre à distinção frui-uti para estabelecer a distinção entre a dimensão teológica e a dimensão antropológica da doutrina cristã, a primeira compreendendo o mistério da SS. Trindade, os atributos de Deus e a Encarnação do Verbo, a segunda tendo por objeto a ordem da vida moral do homem, considerado na excelência de sua condição de criatura feita à imagem e semelhança de Deus. A ordem da vida moral é, pois, regida pela ordem do amor que se desdobra na esfera do uso como amor de si mesmo e dos outros segundo o reto modo e os graus correspondentes, e se eleva finalmente à esfera da fruição como amor de Deus, amado em si mesmo e por si mesmo.” (VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia IV: introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999. p. 193).
11 Johann Gottfried Herder (1744-1803), escritor alemão.
12 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo romântico-idealista alemão, combatido tanto por Kierkegaard como por Schopenhauer e Nietzsche.


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