segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

19.



Da autêntica inautenticidade



Rafael, num desses sites de relacionamentos, conheceu Carla. Depois de muitas e agradáveis conversas – como ele mesmo me disse –, decidiram se encontrar. Garota inteligente, cabeça feita, futuro promissor, conquistou fácil o coração do cara, com quem passou a dividir também sua cama, por algumas noites.
Acontece que os amigos de Rafael, gozadores que eram, e socráticos – pelo menos na parte da ironia –, quando perguntavam pela moça, nem ao menos mencionavam seu nome – que é a nossa identidade social mais próxima –, mas referiam-se a ela como “a gorda”; embora ela não fosse exatamente isso que eles diziam. “E aí, Rafa”, perguntavam, aos rizinhos miúdos, “não vais te encontrar com a gorda hoje?”
Dada a repetição da mesma fala, dos mesmos risos, Rafael, que até então resistira a crer que Carla fosse gorda e que isso e que aquilo, começou a observá-la com os olhos dos amigos; e isso pesa muito na contabilidade existencial de cada um. Tanto que, não por acaso, Sartre, falando da inautenticidade, diz que o eu inautêntico é aquele que me faço fundamentado no olhar do outro, e que é por meio deste Outro que me vejo. Ou, definindo o status da liberdade que apregoava, afirmava: “Para saber uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro”, e daí, provavelmente, a sua máxima mais conhecida: “Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim.”
Certo é que, para Rafael, nos dias que se seguiram, aquela admiração de outrora, que era sua, não sendo também dos outros – pelo menos dos seus amigos mais próximos –, começou a emudecer, desbotar; e Carla já não lhe dava mais tesão. E embora Rafael nada soubesse sobre Sartre, sabia que, “sem tesão, não há solução”, como diz Roberto Freire, introduzindo o conceito na cultura brasileira, no livro homônimo.
Já não bastava achá-la admirável. Não bastava gostar do seu papo-cabeça. Era preciso, mais que isso, o Desejo – porque o que havia, mesmo, era o desejo do desejo dos outros... Beleza e virtudes não bastavam. Não à sua situação amorosa. Carla teria que encontrar outro Rafael, ou um outro Outro.

* * * * *

Moral da história: o meu querer é o querer do outro. Fugir disso é a liberdade, e uma definição para o Eu autêntico. Quem, porém, é ou pode ser, realmente, livre? Nada mais autêntico, nada mais inautêntico. Eis a contradição! Eis o homem!  


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