quarta-feira, 21 de setembro de 2011

53.




Sobre o olhar poético




O espetáculo que fascina os olhos não habita no poético, nem na casa da poesia; mora mesmo é na imaginação, no sonho, na fantasia, no delírio febril – que é tudo o que há, que é tudo o que somos. Viver é estar mortalmente doente. Ter esperança é o grande vício. 



sábado, 17 de setembro de 2011

52.


Das misérias do haver nascido (fragmento autobiográfico) 


Quando nasci, em Zé Gomes (sertão pernambucano), a parteira, fofoqueira, encarregou-se de espalhar a notícia à pequenina cidade, quase vilarejo: “É um minino, um neguim, assim... (medindo com as mãos). Deve de sê fi de um que não seu pai; homi branco de que só macaxeira despelada.” Sim; devido às meizinhas abortivas, tomadas pela senhora minha mãe, nasci pretinho; e careci de muito tempo para herdar a nova cor que carregarei pelo resto da pequenina vida a mim destinada: amarelo pálido-desnutrido. Cresci, menino nascido à força. Seria registrado depois, depois demais: quando desbotado; quando a voz da vergonha das faladeiras não era mais ouvida, não fazia mais sentido. Eu: aborto abortado. Nunca me deram mole, não! E juntei-me aos tantos meninos pobres que, como eu, precisam inventar os seus próprios brinquedos: carros de flandres, de latas de sardinha com rodas de sandálias de borracha, baliadeiras com ligas recortadas em câmara-de-ar de pneu de bicicleta, pipas, papagaios de plástico, punheta... É; como o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, também fui o maior onanista da minha rua. Mas o meu amor, cançonetista inglesa, cozinheira de mil seios, trazendo todas as mulheres do mundo em seu corpo, ainda não veio... O Tempo, senhor soberano, é também soberbo. Hoje, ao seu peso, tenho saudade dos banhos no açude do tio Dedo, durante as cheias de Março; saudade das batatas roubadas nas terras do tio Neco... meus tios mortos, gêmeos univitelinos; saudade das pescarias de piaba, no açude de Zé Gomes; saudade das seriguelas e das mangas roubadas no sítio de Chico Afonso; saudades do menino que um dia fui, e que morreu só deus sabe aonde – como acontece com todo mundo. Cedo descobri: viver é buscar sentidos para viver; ser sábio é perceber que, tal busca, é o único sentido que há, e que pode haver.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

51.


Da serenidade 


A persistência faz o gênio, ou o tolo. E às vezes, sim, o Acaso é quem impera. E sempre há, como desafio, aqueles ou aquelas que plantam flores, regando-as pacientemente, esperando as borboletas que hão de vir; pequeninas esperanças. Somente o grande pessimista saberá ter boas e infalíveis desesperanças (isto é, a correta contemplação do final do caminho, à beira do penhasco), seu realismo fantástico: nada mais a fazer senão voltar, refazer o caminho, ou continuar fitando o horizonte adiante, inatingível. Na total desesperança é que está a quietude da aceitação de Moira, imperatriz do Mundo   rendimento diante do que é maior do que Eu. Não é fatalismo; não. Trata-se, antes, da tranquilidade da alma que silencia, reverente, diante do trágico que sobre tudo impera – mesmo em havendo um contínuo florescimento das vontades sempre feitas. Mas, não! “Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos”, adverte-nos Goethe*. Sim, com chuva ou com sol, e em vindo o desencantamento dos dias, “não pularemos para fora deste mundo. Estamos nele de uma vez por todas”. Palavras de Christian Dietrich Grabbe**, no Hannibal (1835). A consciência de si, a correta compreensão acerca do destino individual e da inevitabilidade da morte é que caracterizam o sábio. Ao tolo, tal consciência somente existe enquanto falta. Aquele, vê e cala; este, esperneia e grita. O sábio, como na metáfora continuamente repetida por Rubem Alves, sabe ver o moranguinho, antes de despencar no abismo; sabe notar o seu vermelho maravilhoso, que deve anunciar seu sabor, idêntico. O tolo grita por socorro. Nada vê; nada quer senão salvar sua pele; e, por tanto esforço, força demais o pequenino galho ao qual se agarra, arrancando-o, despencando para a morte. Ela que é, para o sábio ou para ele, destino comum. Não adianta, ao cão atado à carroça, o latido, a reclamação. Ela seguirá sua marcha funesta até o fim, a todos arrastando. A tranquilidade do sábio é o que os estoicos chamavam de ataráxia (imperturbabilidade). Virtude de poucos.

__________

* “Alles in der Welt lässt sich ertragen, / Nur nich eine Reihe von schönen Tagen.” (Weimar, 1810-12).
** “Ja, aus der Welt warden wir nicht fallen. Wir sind einmal darin.”


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

50.


Sobre o que há 


Todas as coisas que são, foram ou serão, na ordem natural do Mundo (sublunar), moram na palavra, participando da/na essência íntima do Real e dos objetos silenciosos que guardam o pó do tempo – não mais que um conceito acerca do que há, do que pode haver, e/ou do que conhecemos, podemos conhecer. Para todos os fatos do Real, há uma normatividade intransponível, invencível e alheia aos nossos minúsculos destinos. E para todas as nossas certezas, quaisquer que elas sejam, faltam eixos, pontos de fuga que ponham termo ao horizonte sempre devindo, fundamentos fixos aos quais possamos nos agarrar durante este furacão que é a vida. O Mundo, por exemplo, não é um lugar. Lugar é definição, “coisa” que diz respeito ao “desde quando?”, “por quê?”, “até quando?”, “onde?”... Ora!, quem sabe “onde é o Mundo”?


sexta-feira, 2 de setembro de 2011

49.



Da equidade dissonante



O velho, da janela, olha para o cão, velho também. Diz à mulher, ocupada em tecer alguma coisa, desligada do mundo: “Esse bicho tá vencido! Vô dá um jeito.” Pega a espingarda que deixa ali, pendurada na parede. Assovia. O cão levanta a cabeça, no ato. O velho põe um chapéu. Sai. Resmunga entre os dentes: “Vem dá uma volta, garoto”. Já longe, no meio do mato, quando se prepara para disparar contra o bicho, pelas costas, à queima-roupa, surge um urso enorme, cinzento como os olhos de Nume, furioso como a morte de um diabo. O velho urra. Está apavorado. O tiro é contra as nuvens. O cão, feito um raio, puro instinto, avança contra a besta. Morde aqui, é mordido ali; e assim até que a fera foge, tangida pelos latidos do cão que o persegue raivoso, muito machucado. Minutos depois retorna. O velho, olhando-o nos olhos, diz assim, sóbrio como Odisseu, indiferente como Penélope: “Uôa! Boa, garoto! Bouuua mesmo!” E dispara bem no meio da barriga do bicho, fazendo-lhe saltar uma costela, exposta. O bicho grita e tenta fugir. Cai entre os arbustos. Folhas entram em sua barriga, aberta. Gritará por umas duas horas, ainda tentando acompanhar o homem que volta para casa, para o sossego do seu lar, graça de Deus. Os uivos vão sumindo, baixinhos, distantes, distantes; cada vez mais distantes...

........... Quer justiça? Compre!

........Ninguém disse que o Mundo é fácil, que viver é doce, que a Esperança está ali, e que as coisas são bonitinhas e coloridas, como a menina de tranças que dança em algum anime do sr. Hayao Miyazaki.


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