quinta-feira, 29 de março de 2012

51.





Da nossa pressa de viver



Magdala me chamava de Passarinho, enquanto eu voava pelo azul dos olhos dela. Amava a sensação, como quem ama a beatífica promessa de um amor perdido que foi achado. Mas, ah!, como estão perdidos os que pensam haver encontrado algum amor no amor de (ou por) uma mulher! Se amar bastasse”, diz Albert Camus, nO mito de Sísifo (1942), as coisas seriam simples. Quanto mais se ama, mais se consolida o absurdo”. 
Uma noite a encontrei, completo acaso, depois de estarmos em festas diferentes. Tanta gente, e estávamos sozinhos, no final. Foi entre as despedidas que nos beijamos. Primeiro beijo. Último beijo. Caso que não é para ser, tipo romance de verão, dado no inverno.
Em julho de 2011, Magdala completou 23 anos, entre os gatos e as estradas. Quando agosto chegou, o carteiro lhe trouxe um bilhete, de outro que também a amava, a seu modo. Nele, com a data do dia 28, estava assim:

Magdala,
É preciso celebrar. Somos bonitos e jovens demais. Nada é mais urgente.

Quem assinava era Bonifácio Segundo, meu bom e querido amigo.
Em setembro do mesmo ano, encontrei Magdala em Campina Grande, na casa de Nabila, juntamente com Hil e Aislan. Era um dia para festa e celebração; e foi. Mas não éramos mais os mesmos daquela noite, e nem seríamos. Depois, não a encontraria mais. Ela se fez dia; eu, noite. Ou o contrário, que dá no mesmo.
Em novembro, eu e Nabila estávamos na casa de Bonifácio e Anna Vivi, lá em Bancários, e nos lembrávamos do tal bilhete, ou tentávamos lembrar: de como era bonito, e do que dizia, e de como a juventude tem mesmo essa pressa de viver contra a terrível verdade do ditado de Teógnis: “Choremos a juventude e a velhice também, pois a primeira foge e a segunda sempre vem.” É o novo que se impõe, lançando-se às distâncias que, nós, vamos tendo cada vez mais dificuldades em acompanhar. Daí viria a nossa pressa de viver, dizíamos; e o carpe diem, e o tempus fugit. Os deuses bem-aventurados, mesmo os mais jovens, também são velhos. Deuses que são, têm o peso dos séculos, e da imortalidade. A juventude do homem, não. É coisa certa em sua incerteza temporal, na transitoriedade que reclama urgências. Corre, menina! Corre, menina! Se não é agora, nunca. Daí que, quando amam, os jovens exalam “tanta formosura que os sóis e os deuses morrem de vergonha”, diz Eduardo Galeano em “O amor”, primeiro texto do livro Mulheres, de 1998. Mais adiante, n’“Os negrores e os sóis”, ele conta de uma amiga que, embora não o conhecesse tão bem, uma vez ligou, tarde da noite, para contar que estava apaixonada, que “finalmente tinha encontrado o que havia estado buscando sem saber que buscava e que precisava contar para alguém e que desculpasse o incômodo e que ela tinha descoberto que era possível dividir as coisas mais profundas e queria contar porque é uma boa notícia, não? e não tenho a quem contá-la e pensei. [...] Agora mesmo, me disse ela”, ele conclui, repetindo as palavras da amiga, “morro de vontade de ir na rua, tocar corneta, abraçar as pessoas, gritar que eu amo e que nascer é uma sorte.”
Ai de ti, juventude! Ai de vós, apaixonados! E o velho Teógnis, coberto de razão.
Aquela que é considerada a primeira grande obra-prima do cineasta sueco, Ingmar Bergman, estampa a “Juventude” (Sommarlek) em seu título. Lançado em 1951, porém, o filme tem, hoje, exatos 60 anos. 60 anos! O título está aí; a essência do conceito, não.  É que o tempo, como aparece no final de outro filme (Irreversible, de 2002, com roteiro e direção do franco-argentino Gaspar Noé), a tudo destrói: Le temps detruit tout. Sim, pois toda modificação é também uma forma de destruição.
Magdala, Nabila, Bonifácio, Ana Laura, Carla, Yuri, Aurora, Nádia, Hil, Aislan, Felipe, Anna Vivi, Anna Cristina, Hugo, Márcio, Rafael, Tiago, Alecrim, Tahiane, Andréia... Enquanto não chega o dia em que poderemos pagar as nossas contas apenas com a exibição da nossa beleza, é preciso celebrar. Somos bonitos e jovens demais. Nada é mais urgente!


quarta-feira, 21 de março de 2012

50.





Do amor aos livros



– Publica os teus pensamentos, e a tua doutrina. Assim também outros te poderão seguir, ou julgar a verdade sobre o que dizes.
Um ouvinte de Zaratustra, em meio ao pequenino grupo que o escutava, disse assim, entre o elogio e a zombaria.
– E acaso tu me segues? E acaso Zaratustra procura seguidores, como se fosse o mestre de uma religião? Na sede, não são aos homens que procuram a fonte? E por que eu haveria de plantar oceanos em tantos desertos?, ou escrever livros? Coisa que todo deslumbrado, hoje, pode fazê-lo: bastando, para tanto, dispor de recursos e vontade; o conteúdo interessa menos. E divulgam a estupidez com o rótulo da virtude; e a obviedade viciada como se fosse sabedoria, e a repetição mecânica da imbecilidade coletiva do senso comum carnavalizado como novidade ou brilhantismo. A mim me basta o dizer, e como um sangradouro.   
– Palavras ditas ao vento – alguém afirmou – são como folhas outonais: caem ao sabor do acaso e, depois, desaparecem.
– Palavras escritas – Zaratustra disse – são como os rasgos do formão na pedra que esconde a estátua. Muitos, através deles, obrigam-se à arte de esculpir o próprio rosto, na intenção de uma celebrada permanência através dos séculos. A glória do tolo é o seu próprio delírio, e nada mais.   
– Não deveria haver livros, portanto?
– Eu não diria assim.
– E, como diria?
– Que o grande número de livros ruins não deveria jamais fazer com que as pessoas esquecessem a grandeza dos poucos que são bons. Aqueles que trazem consigo o universo inteiro, e cabemos nele.
– Que mais?
– Que o amor aos bons livros deveria ser medido pelo tanto que os mesmos nos perturbam.
– De fato – alguém, enfim, parecia concordar com Zaratustra –, o comercio da arte da escrita, somado à facilidade que se tem de publicar tudo o que é tido como “literatura”, de todos os gostos e para todos os gêneros, tem transformado tal arte em artifício, publicando tudo aos montões, uma vez que não há critérios nem restrições.
Todos, agora, estavam voltados ao dono de tal discurso. Tão logo ele se calou, todos se voltaram para Zaratustra, que disse:
– Quanto mais se fala ou se escreve, tanto mais se propaga o erro.   
– Mas, se não há quem fale, ou escreva, como é possível a transmissão do conhecimento, ou do progresso?
– Extremismo! É, extremismo! – Alguém entre os ouvintes gritou, agitado e descontente. Imediatamente as vozes se misturaram confusas, entre os concordes e os discordes. Zaratustra ergueu a mão e, depois que todos silenciaram, disse-lhes.
– Extremismos. Aqui é tratado de um erro específico. Talvez, juntamente com a arte de falar, as escolas devessem ensinar a arte de calar. Vede como há falastrões em vossas cidades; e pregadores de doutrinas estranhas em vossas praças; e vendedores de felicidades extramundanas em vossas ruas; e doutrinadores de nuvens em vossas casas... Vede! As bibliotecas de todo o mundo estão repletas das ilusões escritas e impressas em volumes de luxuosos acabamentos, com os seus títulos gravados em ouro. Mas, como nos belos túmulos de mármore, o que eles escondem é sempre o mesmo: a corrupção daqueles que definem o certo e o errado, e o sacrifício necessário pelo prêmio da virtude, na castidade da razão. É uma plêiade de autores que não vão além de Platão, viciados no socratismo insipiente que fundamenta absolutos, e deles depende; os mesmos absolutos que somente podem ser atingidos mediante as ciências da imaginação. Não teria razão, por acaso, o velho Protágoras, dizendo que o homem é a medida de todas as coisas, das que são e das que não são? Sim, tais homens...
– Parece que te esqueces de que também és um homem; ou te julgas superior aos grandes do tempo dourado? – Alguém perguntou, desdenhando.   
– Exatamente! – Zaratustra disse, firmemente. – E, mesmo por isso – concluiu –, não há editores para os meus livros, e nem leitores...
– E nem ouvintes! – Alguém atalhou, interrompendo-o.
Zaratustra fitou-o por alguns instantes, e depois olhou em volta de si. Agora, de fato, restavam bem poucos a ouvi-lo, com suas caras de indiferença e, talvez, alguma curiosidade. Zaratustra, talvez por enfado, talvez por altivez, também decidiu se retirar à sua montanha, levando a sua águia e a sua serpente, e acenando displicente àqueles ainda ali, na praça do mercado. E tudo voltou a ser como era antes, e como sempre é: vazio e absurdo.



quarta-feira, 14 de março de 2012

49.





Das categorias operativas do objeto auto normativo    




Deixei que os dois se aproximassem. Passos lentos, braços dados, cabeças curvadas em direção aos pés que liam a calçada lodosa, coberta de talos nus de velhas folhas mortas e pequeninos galhos caídos. Depois os segui.
Era um dia frio. O bastante para que ela se agarrasse ao braço dele, mantendo-o junto a si. E falava sem parar, o tempo todo. “Deve estar feliz”, pensei, “ou bêbada”. Depois me pareceu que nem era uma e nem outra coisa. Sua voz era aguda e firme, e muito convincente.  
– Atualmente – ela dizia – existem quatro mil cidades com, cada uma, mais de cem mil habitantes. Duzentos e cinquenta delas com mais de um milhão; mais de quarenta com cinco milhões, e mais de uma quinzena chega a dez milhões, ou mais.
– Caralho!
– É. Dados atualíssimos. E andei lendo um livro de Richard Sennet, The conscience of the eye, o design e a vida social nas cidades – ela desenhava aspas no ar com a mão direita, enquanto citava o nome do livro, mantendo a esquerda presa ao braço do companheiro. – Nalguma parte, lá pelo meio, Sennet comenta sobre a diversidade populacional nas cidades contemporâneas. Diz que a livre apropriação dos espaços não planejados para usos não planejados promove o desenvolvimento de uma identidade de vizinhança, que é comum à vida urbana, de modo abrangente.
A essa altura, não era mais possível não pensar sobre o que, porventura, ambos estariam falando, antes que eu pudesse escutá-los. Era uma conversa incomum às pessoas comuns, ocorrendo assim ao acaso, em meio ao passeio público.
– Interessante. – Ele disse.
– Eu acho. – Ela respondeu, e continuou:
– Sennet toma Nova York como modelo; lugar privilegiado para onde afluem pessoas de todas as partes do mundo, coexistindo na diferença que os torna comuns...
– Assim?, numa boa?
– Não, né?! Há os limites, claro. E também os impedimentos. “Diferença de e diferença para os constituem essa relação, ou o par infeliz”, Sennet escreve, para elucidar a questão colocada: da apropriação dos espaços que não são meramente...
Ele, certamente, não compartilhava da mesma empolgação que ela; exteriorizado, de si mesmo, ao interrompê-la em meio à fala, na questão da diferença de e do para o, como ela mesma havia acentuado com a citação.
– E amanhã?
– Sobre as cidades?
– Não, pequena; sobre a gente.
– Eu não sei.
– Você ainda vai lembrar de mim, amanhã?, nesta cidade tão grande, de tantos diferentes com suas tantas e tão diferentes caras de infelicidade?
– Se eu te amasse, sim.
– É muito cedo para o amor, não é?
– Parece que, sim.
– É – ele disse, como se não fosse a ela que dissesse, mas apenas pensasse alto –, o amor ajuda a discernir.
– Hahaha... Ei!, isso é Proust.
– Ah!?
Não era, ao menos para ele; ao menos que ele soubesse.
– É, sim. “Amar auxilia a discernir, a diferenciar...” Está lá, em alguma parte de Em busca do tempo perdido.
– Não sei se entendi...
– Ora! “Em um bosque”, Proust mesmo explica, “o amador de pássaros distingue logo o chilrear privativo de cada ave, coisa que confunde o vulgo.” Ou seja...
– Você está fugindo do assunto, não é?
– Estou não, bobo.
Respondeu, apertando o braço dele.
Pararam.
Ele lançou, contra ela, um olhar comprido de “olhe lá, pequena!”, e ela lhe respondeu batendo em seu peito, seguidas vezes, com a palma da mão aberta, para que ele parasse com isso. Estavam em frente à casa dela, que abriu o pequenino portão de ferro, convidando-o:
– Você poderia entrar para uma xícara de café, antes de ir.
Mas algo o incomodava. Jamais saberei do que se tratava, pela ausência do contexto. E ele declinou o convite de um modo que eu nunca antes havia visto e, creio, não voltarei a vê-lo:
– Mon petit – disse, afastando-se dela –, preciso ir jogar tênis. Adeus!  
Saiu sem beijá-la.



sábado, 10 de março de 2012

48.





De quando todos estão, basicamente, anestesiados   




Mateus estava louco. Loucasso! Nunca vi alguém viajar tanto por fumar, apenas, maconha. Na hora, não perguntei; depois fiquei pensando se ele também não havia usado “doce”. Vai saber! O que sei com certeza é que ele estava ali, a nossa frente, falando coisas do tipo:
– Eu deito e durmo, e sonho que estou deitado, e dormindo, e sonhando... Mas, no sonho, eu não quero sonhar, e nem quero querer. Querer é tudo o que se pode chamar de inferno. Qualquer querer.
– Por que, Mateus? – Não sei quem perguntou.
– Porque querer é não ter o que se quer, mermão. Ou então ter é querer não mais ter, saca? Daí, mesmo o não mais querer é também uma espécie de querer. Entende?
Se eu dissesse o que me lembro do que alguém falou, em resposta à pergunta, estaria mentindo. E não há necessidade de mentiras aqui. Lembro, porém, que associei isso que ele dizia ao conceito de amor de Diotima, do modo como Sócrates o apresenta, n’O Banquete, de Platão.
– Daí, no sonho, eu tinha outro sonho – Mateus dizia.  
Lembrei na hora do Martin Luther King Jr. em seu famoso discurso: “I have a dream!” Pensei também que, “putz!, que mania que eu tenho de ficar associando tudo à tudo! Se fuder!”
– Contaí, magrão! – Márcio falou, rindo, chapadíssimo. 
– Antes tem o contexto, saca?
– Que contexto? – Perguntei.  
– O contexto é minha própria percepção do real, entende? Somente assim é que o sonho ganha sentido.
– Aiii... conta logo, Mateus! Baita enrolação! – Cláudia parecia curiosa, como é comum às garotas serem curiosas. Karina riu, e aumentou o coro dos descontentes:
– É, Mateus, conta logo.
– Assim; presta atenção. Eu olho a cidade e me vejo como alguém perdido no meio dela, aos olhos de quem vê essa mesma cidade, do alto. São Chico é uma cidade de muitos segredos. As ruas de São Chico são como veias colaterais: mão, contramão; coronária direita, coronária esquerda...
A essa altura, Rafael também não aguentou e:
– Puta que pariu! Tu vai contar a merda do sonho ou não vai, viadinho?
Estávamos sentados em um trapiche do Lago São Bernardo, em uma madrugada gelada de São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul. A terceira garrafa de vinho estava pela metade, e o licor de menta que eu havia levado fora, praticamente, ignorado. Márcio começou a preparar um paiero, como eles dizem por lá, enquanto Mateus começava a contar, finalmente, o seu viajoso sonho.
– O sinal fecha, eu paro – ele diz, encenando. – Uma mulher se insinua para mim, seminua... Dissimulo, finjo que não vejo. É um sexo barato. “Minha carreira ainda não findou, tá longe disso...”, eu pendo. Cêis sacam a parada? Eu tô sonhando que tô sonhando e, no sonho, penso. Como é que pode, isso?
– Ahhh, não para! Termina – Cláudia interrompe, reclamando objetividades.
– O sinal abre, eu avanço pela perimetral. “Onde estará o coração desta cidade?” Me pergunto, falando com meus fantasmas. “Onde esta veia termina?” Me espanto, e com razão. Nenhuma cidade tem coração, nenhuma... “O coração desta cidade, meu Deus!, sou eu...” Eu digo; e penso que acordei dizendo isso, e banhando em suor.
– E é só isso? – Karina pergunta, desapontada.
– Só. Mas, saca: a alma da cidade é a alma das pessoas que vivem nela. Isso quer dizer que, se uma cidade é feia, então é porque as pessoas é que são feias e...
– Eu também tive um sonho. – Digo, mentindo.
– Hahaha... Bando de viadinhos sonhadores! – Márcio tira onda; sua maior e melhor especialidade.
Todos riem, e alguém pergunta:
– Quê que tu sonhou, Pata?
– Sonhei que a Brigitte Bardot, com um corpinho de 20 e uma carinha de 21, chegava para mim, nuazinha em pelo, rebolando e cantarolando com a voz de Charlotte Gainsbourg:

Eu tenho um alaúde nas mãos
E um anjo solto no peito;
Cantos canções de amores findos
E primaveras por florescer...

O meu amor é um poeta triste,
É um soneto dos mais antigos...
É uma Justine, uma Valentina
E suas vergonhas bem saradinhas...

– Putz! Tinha que ter a parte da sacanagem; né, Patativa? – Mateus reclama, desenterrando uma dose de pudicidade que não sei de onde.
– Tem nada de sacanagem não! – Eu digo; eu minto.
– Tem sim, seu porra! – ele discorda, sorrindo e me esmurrando de mentirinha. - Eu manjo das putarias. 
                



segunda-feira, 5 de março de 2012

47.






Da obra do amor que consiste em fazer o elogio do amor




N’O mito de Sísifo, na relação dos autores que “se agrupam em torno de um espaço privilegiado e amargo onde a esperança não tem lugar”, Camus, depois de mencionar Nietzsche, Jaspers, Heidegger, Chestov, Husserl e Scheler, afirma que Kierkegaard é o mais interessante de todos, pois “pelo menos durante parte da sua existência fez melhor do que descobrir o absurdo: ele o viu.” Viu e nos faz ver, confundindo a sua obra à sua própria vida.  
O primeiro livro de Kierkegaard, que li, foi Temor e tremor – edição portuguesa, da Guimarães Editores, de 1990... a mesma que, ainda hoje, utilizo em aulas de teologia e/ou filosofia contemporâneas. Comprei a edição de As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos, que Rafael estava lendo, durante a 53ª Feira do Livro de Porto Alegre, em novembro de 2007, se não me falha a memória. E apesar de haver dado umas boas folheadas nela, ainda não havia lido nada com a atenção devida. Depois que ele leu o trecho sobre a obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida, porém, me veio de ler mais sobre o que o filósofo de Copenhague realmente estava querendo dizer com aquilo, dentro do seu contexto mais geral. A constatação foi de que Camus, sim, tem razão quando afirma que Kierkegaard é o “Don Juan do conhecimento, [que] multiplica os pseudônimos e as contradições”; ele que, em Temor e tremor, de si mesmo, diz: “O presente autor de modo algum é um filósofo. Não entende qualquer sistema de filosofia, se é que existe algum, ou esteja terminado”; ele que, sobre o amor romântico, afirma: “O amor romântico carece [...] de reflexão, e nisso consiste o seu defeito. Assim, seria aconselhável, como método, submeter o verdadeiro amor conjugal a uma espécie de dúvida prévia...” O amor romântico é como a fé religiosa, ou, considerando o seu objeto: somente existe verdadeiramente enquanto não refletido seriamente, suspendido na dúvida que a razão pura traz. Ah!, e que dúvida terrível! Kierkegaard a encarnou, como vocação e ofício. Regine Olsen, a noiva com quem ele rompeu, certamente não poderia partilhar desta vida que era sua, seu fardo – coisa que ele não poderia desejar a outrem. E mesmo o fato de despedi-la é, como tudo em sua vida, uma etapa do (ou para) seu pensamento. “De fato”, afirma Lukács, “mesmo Regine, que ele havia abandonado, que em sonho transformara em um ideal além do seu alcance, não pode ser para Kierkegaard mais que uma etapa, porém uma etapa que o conduziu de maneira mais acertada a seu objetivo.” Que objetivo? O absurdo paradoxal, o salto da fé: etapa final depois de superadas a estética e a ética.  “Que é o noivado senão um amor irreal que se alimenta unicamente dessa tenra e doce torta que é a possibilidade?” Possibilidade é a dúvida entre o possível e o impossível; nem chega a ser absurdo. Kierkegaard escreve Temor e tremor e os Discursos edificantes, por exemplo, ao mesmo tempo em que escreve – o que Camus chama de “manual de espiritualismo cínico” – o Diário de um sedutor, todos em 1843 (O “Diário” é a primeira parte de Ou, Ou. Um fragmento de vida). Aí estão todas essas etapas, e a coroação da fé como o grande paradoxo... e o amor.
O amor romântico, no que se imagina de perfeição (exemplificado em Regine), é um pálido reflexo do amor ideal, que aponta para o paradoxo da fé, do movimento da fé – à qual o homem da fé (exemplificado em Abraão) se lança, se acredita, perfeitamente. Kierkegaard, porém, não tem uma resposta positiva à tão grande exigência: “Não posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no absurdo.” Atingir o Eu autêntico é empresa por demais impiedosa, e fadada à solidão: absurda e consciente.   
Eu comparava esses textos todos, e fazia anotações sobre o décimo discurso da segunda série sobre As obras do amor, quando Rafael chegou em casa, afobado que “já estou atrasado para um encontro aí”. Correu para o banheiro e ligou o chuveiro. De lá, ficou de conversa comigo, falando bem alto:
– Não vai sair hoje, viadinho?
– Vou não. Luciana vem p’ra cá, logo mais.
– Hummm...
– Hahaha...
“Merda!” Lembrei na hora. Na manhã do dia seguinte haveria uma aula de latim, e eu não havia terminado o exercício enorme que o professor Ullmann (Reinholdo Aloysio Ullmann) havia passado, na semana anterior. O velho Ullmann, jusuitíssimo, era igualmente exigente, e já havia reclamado mais de uma vez sobre a minha tendência à “vadiagem” – como ele dizia, meio que brincando, meio que falando sério.
– Talvez a guria venha dormir aqui hoje, beleza?
Havíamos combinado de, sempre que levássemos alguém para dormir por lá, em nosso apartamento, quem quer que fosse, avisaríamos. Assim, pensávamos, evitaríamos chateações e aborrecimentos.
– Por mim... – concordei. E voltei a pensar sobre alguns bons encontros que tive com professores e autores que são grandes estudiosos do pensamento de Kierkegaard, no Brasil. Um deles foi o Álvaro Valls, com quem havia conversado bastante sobre Agostinho e sobre o dinamarquês; o outro era o Ricardo Gouvêa, que me presenteou com um exemplar de A palavra e o silêncio (Custom / Afarrábio), livro que havia lançado em 2002.
– Tu tá gostando do livro?
– Quê?
– Tá gostando do livro?
– Ah! Não tem como não gostar do Kierkegaard! Principalmente por causa da sua rejeição aos sistemas. Qualquer autor que faça isso, já ganha pontos comigo.
– Quê?
– Nada, não! Nada.
Kierkegaard não somente se opunha aos sistemas – da teologia ou da filosofia –, era também perturbadoramente lúcido e provocante, mesclando o seu pensamento à sua vida, e vice-versa. O elogio de Camus não era, em nada, gratuito. Kierkegaard “rejeita os consolos, a moral, os princípios de todo repouso. Não pretende acalmar a dor do espinho que sente cravado no coração. Pelo contrário, ele a desperta e, com a alegria desesperada de um crucificado contente de sê-lo, constrói, peça por peça, lucidez, rejeição, comédia, uma categoria do demoníaco. Esse rosto ao mesmo tempo terno e zombeteiro, essas piruetas seguidas de um frito surgido do fundo da alma, eis o próprio espírito absurdo às voltas com uma realidade que o ultrapassa.” Eu assinava embaixo de tudo isso, naturalmente.
Rafael saiu do banheiro, já vestido. Foi até a sua escrivaninha, despejou um litro de perfume entre o pescoço e o colarinho, pegou algum dinheiro e saiu voando porta-a-fora, falando “te cuida, cabeção!”, apressado, sem olhar para trás.
Eu estava sozinho novamente.
Voltei ao texto d’a obra do amor que consiste em fazer o elogio do amor. Aí, novamente, Kierkegaard mantém o conceito de abnegação, contra o egoísmo, já criticado no texto anterior (A obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida). Neste, o elogio do amor deve realizar-se exteriormente (udefter: “para fora”, “em direção ao exterior”), também no desapego abnegado (i opoffrende Uegennyttighed), e na atitude do que se sacrifica sem buscar utilidades para si.
Eu, realmente, não podia mais concordar com isso.
Ele dizia mais. Dizia que o amor, sendo algo que todos podem fazer (ou conhecer), é diferente do elogio do amor. Esse, embora todas também possam fazê-lo, pode não ser verdadeiro – e quem o saberia? –, sendo coisa vã, de proveito duvidoso. A observação: “A arte não está em dizê-lo, mas em fazê-lo”, que ele usa como ponto de partido para todo o discurso, aponta – em um orador, por exemplo – para a palavra e para a coisa que essa pretende nomear. E ninguém duvidaria de que a coisa deva ser mais que a palavra. A palavra, inclusive, pode variar em sua descrição, falsificando o entendimento acerca do “seu” objeto, et cetera.
Nesse ponto, entre concordâncias e discordâncias, parei de ler. Procurei o caderno de exercícios de latim e, “meu Deus tô ferrado!”, pensei. Somente havia resolvido a primeira questão: uma declinação bobinha do substantivo singular “dor”: dolor, dolor, dolorem, doloris, dolori, dolore. “Buenas”, respirei fundo, “vamos ao plural”. Mal acabei de pensar isso e alguém bateu à porta. Fui abrir. Era Luciana, a linda Luciana, com seus cabelos encaracolados e soltos, de olhos verdes e brilhantes, e um sorriso enorme para mim.
– Oi, Pato! – Me abraçou, falando baixinho em meu ouvido:
– Mais alguém aqui?
– Não.
Olhou para mim, se convidando a entrar. Afastei-me para que ela passasse. Fechei a porta e a segui até o sofá, do qual retirei algumas apostilas e umas poucas peças de roupa que Rafael havia deixado por lá, sujas e largadas. Na hora eu não soube bem como conduzir as coisas. Mas ela, sim. 
– Nossa! – disse, me examinando, enquanto abria a pequenina bolsa vermelha que troussera. – Tu fica lindo assim: de barba mal feita e cabelo despenteado.
Sorri encabulado.
– Tu tá ocupado, guri? – perguntou.
– Eu? Ocupado? Imagina!



quinta-feira, 1 de março de 2012

46.





Da obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida




– Olha isso, Patativa! “Então”, é Kierkegaard, “entre as obras do amor, não esqueçamos desta, não esqueçamos de considerar: a obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida. A obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida é uma obra do amor mais desinteressado. Se quisermos garantir que o amor é completamente desinteressado, podemos então afastar toda possibilidade de retribuição. Mas é isto justamente o que está excluído na relação com uma pessoa falecida. Se então o amor permanece, é que ele é verdadeiramente desprendido.” E então? Que é que tu me fala sobre isso?
Rafael segurava um exemplar de As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos (Ed. Vozes, 2005), de Sören Kierkegaard, aberto quase pelo final. Dizia assim, como a desafiar os meus argumentos contumazes sobre o inevitável amour de soi, que nos domina do começo ao fim. Tratava-se, no entanto, de uma pergunta muito fácil de ser respondida.
– Digo, em primeiro lugar - respondi -, que nenhum autor é canônico; por mais querido e elogiado que seja. Nihil sacrum est, se é realmente livre o nosso pensamento. Ademais, o pensamento sobre o morto ou a morta é, deveras, um meio de, o vivo, ainda amar a si mesmo: na alegria ou na tristeza que tal pensamento traz. A lembrança do defunto é como “uma ponte” – desenhei aspas no ar, com as pontas dos dedos – que nos liga a ele: no choro da saudade ou, talvez, no riso bom pela lembrança do que, em vida, com ele, se viveu. Quando Chico escreve a letra de “Pedaço de mim”, em 1978, fala de dois amores: por uma mulher, viva; e por um filho, morto. Ele não faz diferença, mas há: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade exilada de mim / Leva os teus sinais / Que a saudade dói como um barco / Que aos poucos descreve um arco / E evita atracar no cais.” É como está no final da primeira estrofe. É de um amor não correspondido, ou correspondido, mas que teve de partir, que se trata. Daí, e para descrever o nível dessa dor, a estrofe seguinte, que é metáfora às duas primeiras: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade arrancada de mim / Leva o vulto teu / Que a saudade é o revés de um parto / A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu.” Nenhum pai ou mãe, por mais perversos que fossem, do filho morto, desejariam ter a memória apagada. Vê? São duas as situações. Numa ou noutra, é a memória, mesmo dolorida, que une o vivo ao morto – nunca ao contrário. É como Comte diz: “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.” Pois o que não tem memória não sabe o que é governo. No final de tudo, e mesmo na suposta recordação desinteressada sobre a pessoa amada e falecida, há o interesse, sim; e o Eu que recorda, evidentemente.
Rafael fechou o livro sobre a escrivaninha, levantou, coçou o queixo, olhando-se no espelho. Virou-se para mim, devagar, levantou o dedo indicador como quem vai dizer algo muito sério ou profundo; mas somente disse, quase sorrindo:
– Vá se lascar!



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