11.
Da possessividade
O amor de um sempre procurará possuir o amor do outro, que é objeto do seu próprio amor; e não há palavra melhor que esta, para defini-lo: possuir. Era assim que Maria amava Sérgio, que se tornara, ao mesmo tempo, seu doce céu e seu amargo inferno. Se ele estava em casa, mesmo sendo grosso como costumava ser, ela estava bem – pois sabia que ele não poderia estar aí e, ao mesmo tempo, com “aquelas putas” da repartição – embora o marido jamais tenha demonstrado o menor sinal de algum “desvio de conduta”; e nem precisava. Ela ficava louca só de pensar nas possibilidades. Quando Sérgio vestia uma camisa ou mudava qualquer peça de roupa, Maria ficava paranóica, perguntando:
– P’ra onde é que você vai?
– P’ra onde? Ora, Maria!, p’ra onde? P’ro trabalho, uai! Não é o que faço todo santo dia, nessa mesma hora?
– De que horas você volta?
– Depois do trabalho.
– Me promete que não vai beber.
– Tá, Maria!, eu prometo. Além do mais, e você sabe bem, faz tempo que não bebo. Recomendações do médico.
– Você me liga?
– Para quê?
– Ah, só p’ra ligar...
– Ai, meu Deus! Está bem, Maria. Se você quer que eu ligue, eu ligo... “só pra ligar”.
Ele dizia, com um balão de aspas em seu pensamento; com imaginárias pontas de dedos imaginários. E era assim que, quase todos os dias, Sérgio saía de casa, com vontade de não retornar para sua mulher grudenta, ciumenta, chata e gorda. Pensava no tanto de histórias que ouvira, de um ou de outro que, dizendo à mulher: “vou ali comprar cigarros”, sumira de uma vez por todas. O que era a sua vida? No que se transformara? Trabalhava somente para sustentar um estorvo que, não sabia como, trouxe para a sua casa, para o seu mundo. E Maria, como toda mulher, sabia perceber esses sinais de fadiga sentimental: a falta dos beijos, o ausente desejo de sexo, o cotidiano engessado, et cetera. Ela sabia. E também sentia que, uma hora dessas, Sérgio sairia para o trabalho e nunca mais retornaria. A ideia de perdê-lo foi crescendo como uma monstruosa avalancha. Com tais pensamentos, Maria, por noites a fio, não conseguia dormir direito. As noites mal-dormidas deixavam-na ainda mais chata, mais feia, mais gorda e paranoica. Não demoraria a que profundas e escuras olheiras se desenvolvessem. E agora ela notava insinuações vindas de todas as partes. Se alguém ligava e Sérgio atendia, ela queria saber:
– Quem era?
– O Helinho. Queria saber se vou à pelada, no sábado.
– Era o Helinho mesmo?
– Ué!? Claro que era, Maria!
– E você vai p’ra pelada?
– Isso eu ainda não sei. Tô vendo aqui...
– Se você for, me leva contigo.
– Que é que você vai fazer numa pelada onde só tem marmanjos, mulher? Ah!, isso não será possível. Sinto muito.
Não fazer parte da vida de Sérgio em todos os momentos parecia abrir lacunas que caberiam uma galáxia inteira. Ela queria que ele fosse, como disse o padre no dia do casamento, “ossos dos seus ossos, carne da sua carne”. E talvez seja a literalidade de tal interpretação que tenha levado Maria à tenebrosa ideia de manter, de uma vez para sempre, Sérgio junto a si, dentro de si.
Numa abafada noite de outubro, enquanto ele dormia profundamente, depois de um enfadonho dia de trabalho no Centro Administrativo, ela foi até a cozinha e apanhou a faca Ginsu que usava para cortar carnes. Aquela faca era mesmo uma coisa incrível. Cortava igualzinho aparecia no comercial da televisão; com precisão cirúrgica. Os frangos que ela destroçava pareciam feitos de isopor, de manteiga, de gelatina. Valia cada centavo. Serviria, sem dúvida, para a realização final da sua união carnal e definitiva com Sérgio. Nesta noite ele seria, enfim, afinal, seu amor eterno.
Meses depois, diante do juiz, Maria não sabia responder se o Sérgio chegou a acordar quando ela desferiu os primeiros golpes, bem na região onde fica o coração, o seu coração. Mas sabia que, nas semanas seguintes, alimentara-se como uma deusa; com as deliciosas e macias carnes do marido: “Eram como um banquete celeste, um maná dos céus”. Fizera com elas os mais diversos pratos, testando todas as receitas conhecidas e imaginárias – pois não queria desperdiçar nada daquele corpo que, agora, de fato, era seu em sua totalidade. Em sua memória estavam as aulas de filosofia, na Faculdade, quando o professor, citando Feuerbach, dizia: “O homem é aquilo que come”. Os ossos, como num ritual sagrado, foram queimados, triturados e, misturados às farinhas, massas e condimentos, transformados em bolos, salgados, tortas, docinhos, quibes, et cetera.
– Ah!, Maria, Maria... Como você pôde fazer uma loucura dessas?!
Perguntava-lhe o juiz, perplexo ante a narrativa das monstruosidades fundamentadas na filosofia de Feuerbach, na Bíblia Sagrada e nas possessividades do amor. Condenaria Maria a 35 anos de prisão; não dispensando, claro, o acompanhamento psicológico.
.........– Se eu pudesse agarrar a alma do Sérgio, sua Excelência – disse Maria, olhando para o teto –, eu a beberia.