sábado, 31 de julho de 2010

4.

No Brasil, a figura de Arthur Bispo do Rosário é exemplar. Transferido do Hospício Pedro II, Rio de janeiro – onde fora internado em 1938 –, chega à Colônia Juliano Moreira, Jacarepaguá, em 1939; aí permanecerá pelo resto da sua vida (cerca de cinquenta anos). É na Juliano Moreira que ele começa a produzir seus primeiros trabalhos artísticos, aproveitando-se do lixo e da sucata disponíveis. Descoberto por acaso, no início da década de 80, classificam-no como vanguardista, e suas obras foram comparadas às do franco-americano Marcel Duchamp. Os aspectos da indústria cultural – ou da sociedade de consumo – são assimilados de modo crítico na produção artística de Bispo do Rosário, no mesmo sentido em que o pintor e cineasta norte-americano Andy Warhol, com as latas de sopa Campbell ou as garrafas de Coca-Cola, emprega para reinventar e inventar a pop art, em que as imagens empregadas no processo criativo já se encontravam amplamente difundidas, mas sem a função artística ou, melhor, sem o olhar do artista.



Sopa de letrinhas, Andy Warhol, 1960


Os temas marinhos, recorrentes, apontam, conforme os psicanalistas, para a sua juventude na Marinha. Destacam-se, depois, os objetos mumificados, as assemblagens (ou vitrines, como dizia Bispo), as faixas de mísseis e os estandartes em que as palavras, empregadas como signos pulsantes numa ordem predeterminada, produzem, mais que a mensagem discursiva, o visual imediato/imediático, a obra-mesma – a palavra só tem a sua função como o todo da representação. Exemplo disso é a ilustração que faz para a capa, contracapa e encarte do álbum Severino (1997), dos Paralamas do sucesso. Ademais, as ligações comparativas da arte do Bispo com o Dadaísmo ou a read made de Duchamp não são infundadas. Isso o inclui, sem qualquer demérito, entre os artistas da Arte Moderna Mundial.


Ordenar o caos, reconstruir o mundo... Bispo do Rosário, Sapatos femininos, s.d.

5.

A obra mais representativa do Bispo, de acordo com os seus críticos, é o Manto da Apresentação. O Manto, segundo ele, fora feito seguindo uma ordem divina – como toda a sua obra –, e deveria ser usado por ele mesmo no dia do Juízo Final, marcando a passagem de Deus pela terra, de quem ele era o enviado com a missão de recriar o mundo. “O que eu faço: faço para Deus. Por que Ele me pediu, para eu recriar o mundo Dele. Não adianta gostar, por que eu não faço para homem algum.” O Bispo dizia, quando perguntado sobre a sua obra.

6.

Até que ponto o Bispo do Rosário era louco? Ele sabia, maior parte do tempo, da sua condição psiquiátrica, chegando a evitar o tratamento médico e os remédios recebidos pelos “verdadeiros” loucos. Até que ponto era gênio? Referenciálo como modelo da Arte Contemporânea brasileira é lícito? Se não, porquê? Tais perguntas, evidentemente, escapam ao meu interesse mais imediato aqui. Há, todavia, no Brasil, uma série de livros (veja as referências a este capítulo) que respondem – ou tentam responder – tais perguntas, diretamente ligados ao Bispo.

Interessa-nos, portanto, afirmar (sem cocluir nada, no entanto) que a relação entre arte e loucura, do ponto de vista dos especialistas em obras de arte – que são aqueles que, em última instância, respondem aos curadores sobre a validade e o critério para as exposições em museus, galerias, etc. –, não está assim tão clara e não é, por isso mesmo, concludente. O que nos faz retornar ao tema inicial, ou, mais enfaticamente, ao subtítulo que problematiza a arte, a linguagem e o problema do fundamento. Até que ponto isso tudo nos autoriza a dizer: Sorry, no art today? Até que ponto não nos autoriza?


Fim do Capítulo 1

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Arte, loucura e genialidade

1.

Há, por fim – mas isso apenas por conveniência –, outro tema que, relativo à arte, deve ser tratado, mesmo que de modo breve: o da genialidade e da loucura, ou da fronteira que separa a arte genial da loucura do louco. O tema, de fato, não é novo, podendo ser visto na genealogia que caracteriza a obra de Michel Foucault, a exemplo dos seus cinco primeiros trabalhos: História da loucura na Idade Clássica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966), A arqueologia do saber (1969) e Vigiar e punir (1975). O tema da loucura e da punição social voltará, anos depois, em: A sociedade punitiva (1973), O poder psiquiátrico (1974) e Os anormais (1975). Provavelmente nehum outro autor tenha dedicado tanto tempo e nem levado tão a sério a temática da loucura e a relação do louco com a sociedade. Desde Foucault, e talvez ele tenha contribuído muito para isso - dada a influência que exerceria na psicanálise moderna e o no meio acadêmico - muita coisa mudou em “nossa maneira de ver a loucura.

2.

Passado é o tempo em que a afirmação “fulano é louco, pela arte – entenda a palavra, aqui, do modo mais abrangente possível – que produzia, era recebida como agressão verbal, ou moral. Hoje, tal acusação está mais para elogio da virtude, subentendida; e dada a situação, diz que vê o artista flertar (ou flertando) com a genialidade. Mas isso nem sempre foi assim. O lugar dos loucos, antes de ocuparem as galerias, os palcos, et cetera, era o asilo, o isolamento social. Os asilos escondiam os corpos dos loucos, os “associais e desprovidos de cidadania”, excluídos do mundo dos mentalmente sãos. O asilo era “para o próprio bem estar do louco”. E embora Freud tenha apontado para a existência de uma neurose humano-coletiva – coisa que é levada ao extremo por Machado de Assis no seu O alienista (de 1882) -, há, mesmo hoje, uma separação prática entre o louco e o não-louco, ou o louco comum e o artista que, pela via da arte, pode ser um louco com permissão, um louco-livre... e até aplaudido por sua virtuosa loucura.



Você também não seria um? O louco, de Pamela Colman Smith, para o livro Pictorial Key to the Tarot (de 1909), de Arthur Edward Waite


3.

O brilhante matemático estadunidense John Forbes Nash Jr. – representado no cinema por Russell Crowe no filme Uma mente brilhante (A beautiful mind, 2001), dirigido por Ron Howard e Brian Grazer –, quando tinha a sua loucura controlada por remédios, não conseguia produzir, porque também não conseguia pensar direito – um paradoxo da razão. Teve que aprender a conviver com a esquizofrenia paranóica acompanhada de depressão e baixo auto-estima, conforme o diagnóstico oficial, para continuar produzindo; o que lhe rendeu o Nobel de Economia em 1994. Quatro anos antes, em Londres, fora realizada pela primeira vez uma exposição com as obras de alguns doentes mentais no Bethlem Royal Hospital. Na década de 20, por fim, artistas como Max Ernst e Paul Klee manifestaram sua admiração ante a estranheza e a espontaneidade dessas criações que eles próprios procuravam atingir, muitas vezes, por meios artificiais. Tais relações de valor entre arte e loucura, ou entre o gênio e a maluquice, não eram mais novidade. Em 1945, o pintor francês Jean Dubuffet já lançara a idéia de uma art brut, valendo-se de algumas obras produzidas por indivíduos psiquiatrizados; o conceito procurava qualificar tais obras artisticamente, inserindo-as dentro de um processo criativo natural. E embora fossem “criações de não-profissionais” – mesmo porque era preciso definir o que era um “profissional da arte” – tais obras começaram a ser encaradas sob a nova perspectiva.

Em outras palavras, Dubuffet começou a problematizar o que depois chamaria de “arte culta”, privilegiando assim um tipo de produção marginal cujos temas, materiais, técnicas e sistemas de figuração apresentavam pouca ou nenhuma relação com a tradição ocidental ou com tendências da moda, nenhum compromisso com o Mercado ou com os destinatários da produção artística. Seria uma arte-pela-arte, primitiva, crua, a Arte bruta em sua raiz essente – um modo de produção extraído por seus autores do fundo de seu próprio ser, e que plasticamente transgredia “as imagens do mundo apresentadas pela cultura”; isso era mais do que Dalí e o oniricismo surrealista, mais do que a produção abstrato-artificial do são que, mediante o uso de alguma substância química ou psicotrópica, viajam para dimensões que transcendem o “real”. Sim, da art brut não se espera que seja “normal”, mas que seja, por outro lado, “o mais possível inédita e imprevista, isto é, extremamente imaginativa” e real na sua irrealidade – fruto do real sofrimento e daquela solidão pura que faz emergir o autêntico impulso criativo. Tais artes são, segundo Dubuffet, mais preciosas e verdadeiras do que as produções dos profissionais. “Após uma certa familiaridade com essas florações altamente febris”, diz ele, “tão total e intensamente vividas por seus autores, não podemos subtrair-nos à sensação de que a arte cultural, ao lado delas, parece, em seu conjunto, fútil jogo de sociedade, falaciosa ostentação”.

Continua...

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Discurso, ideologia e subjetividade


1.

Dizer simplesmente que a arte é um reconhecimento subjetivo, pessoal, atribuição que cabe única e exclusivamente ao artista ou ao espectador, é engrossar o coro do sorry, no art today. Longe de negar o valor das extravagâncias intuitivas do artista, penso aqui na separação benéfica que é, até onde posso entender, relevante à existência e preservação da verdadeira arte – para o caso de haver uma verdadeira arte. Ou então, se assim não for (falo assim para que eu não estabeleça, com base em preconceitos, um “princípio ideal” que seja referência àquela “verdadeira arte” que supus existir), a valoração da boa arte, do bom artista. Mas, Que digo?! Dizer que essa arte é boa e que aquela outra não é, é, por outro caminho, fazer o mesmo jogo do preconceito antes “evitado”. Como você percebe, somos nós que determinamos (ou pensamos poder determinar) o que é ou não é arte – às vezes, é verdade, induzidos pela Indústria Cultural –, ou o que é ou não é boa arte. Por um ou outro caminho, esbarramos em padrões estéticos que já estão em nós ou estão sendo, por nós, incorporados. As perguntas que precisamos fazer agora são: como é que assimilamos tais “padrões” estéticos? Por que prevalecem certas artes em detrimento de outras?

2.

Diante de tudo isso, convém voltar à questão do modelo ideológico do Mercado, ou da cultura dominante. É ele (ou ela, como você quiser) que diz, através dos comerciais, das músicas, dos filmes, dos livros, ou de tudo isso junto: “use isto”, “compre aquilo”, “faça assim”... Talvez você lembre daquela famosa passagem sobre a “dialética do senhorio e da servidão”, de Hegel, na Fenomenologia do espírito (1807). O meu desejo nunca é, realmente, o meu desejo, ou o simplesmente ter o objeto do meu desejo; o meu desejo é, antes, o desejo do Outro, e o objeto do meu desejo tem de ser, por isso, o objeto do desejo do Outro. Mais do que o Outro ou o objeto do seu/meu desejo, eu desejo a aceitação do Outro – que deve se identificar comigo por querermos (ou usarmos) os mesmos objetos, sermos idênticos na aceitação desses desejos (ou valores) comuns.

3.

Embora o discurso do Mercado diga que as pessoas são únicas, ele, na prática, às trata como iguais. Tanto é assim que as roupas feitas nas fábricas, por exemplo, não seguem a individualidade (os acidentes), mas o padrão (a unidade simples, una). Alguém, aqui, talvez possa objetar: “Ah, mas o que determina a individualidade é o gosto de cada pessoa. Quer dizer: ela compra aquilo que mais lhe agrada e, assim, mostra o seu gosto, diz o que é”. Sim; é verdade. Nós dizemos muito do que somos por meio do que vestimos. Mas, embora eu concorde em partes com aquela afirmação do meu pseudo-objetor, tenho que lembrar que, no grande corpo social – sirvo-me aqui de uma definição durkheiminiana para a sociedade –, embora tenhamos nossas particularidades, nossos gostos estéticos, nossas esquisitices, a roupa que vestimos não é, afinal, para nós mesmos, mas para as pessoas que nos cercam; para que elas possam nos aceitar como pares, um igual, ou, na palavra cristã, semelhante. Theodor W. Adorno nos lembra disso quando, num diálogo com Becker, diz que “há inúmeros adultos que no fundo apenas representam um ser adulto que nunca conseguiram ser totalmente, e assim possivelmente precisam sobre-saltar sua identificação com tais modelos, exagerar, encher o peito, bravejar com voz adulta, só para dar credibilidade frente aos outros ao papel mal-sucedido para eles próprios”.



Não seriam os adultos atores sem palco? O ator Elvércio Guimarães no curta-metragem Ator sem palco, com roteiro e direção de Itabirana Maíra Camargo (2007)


Muito do ser adulto pode ser, conforme Adorno, mera representação (um “papel”) para, diante dos demais adultos, sermos aceitos como tais: igual entre os iguais. Nesse conceito de papel de adulto, não residiria também, em nós, a resignação intelectual que faz com que vejamos uma tela que é uma merda como se fosse coisa sobremodo excelente, de grande inovação estilística, e essas frescuras todas? Afinal, todos dizem diante da “arte” muito louca do artista mais louco ainda: “Oh! Que coisa mais, mais... louca!” Isso não nos lembra Heidegger em sua conceituação à inautenticidade? “Cada um é o outro e ninguém é si-mesmo”. Parece que temos de admitir isso, ou então mudarmos radicalmente de postura ante o mundo e o Outro, ou ante as esquisitices do mundo e as esquisitices do Outro. Admitir a esquisitice como condição humana é uma coisa; admiti-la, sem concessões, como arte, é outra coisa. Sim, dificilmente nos livraremos (se isso é possível) de ser Ser-para-o-outro, embora pensemos, sob certas medidas, apresentar nossas “próprias predileções”. Não por acaso Nietzsche também escreve sobre “como ser o que se é”, enfatizando uma natureza (humana) livre dos valores impostos pela cultura cristã ocidental – uma “moral” sem essa Moral, com valores para além do bem e do mal. E é aqui que nós voltamos à questão anteriormente proposta: o que determina o gosto estético, ou o seu mero valor conceitual?

4.

Veja que há, por trás dos nossos gostos, uma enormidade de fatores culturais – que são, geralmente, impostos pelo Mercado, pela Indústria Cultural, pela ideologia dominante – nos quais estamos submergidos – ou por nosso desejo de status, de aceitação. E é assim que, da forma como nós consumimos essa ou aquela roupa, consumimos a arte, ou as artes; não porque, muitas vezes, nos agrade, mas porque “agrada a todos”, e nós queremos, mais que a arte, a aceitação do outro – a arte não entra na questão como fim (arte-pela-arte), mas como meio. Acontece que, quanto mais a arte é usada como meio, tanto menos ela pode ser considerada como arte. Por fim, parece faltar sempre uma criança que, do meio da multidão que se admira com os trajes novos do imperador, grite sem constrangimento: “O rei está nu!”. Mas nem eu e nem você somos mais assim, tão crianças, e nem tão inocentes quanto aquela do conto de Andersen; infelizmente... Infelizmente?

Continua...


segunda-feira, 19 de julho de 2010

3.

Na exposição de Ephemera (de 1978), do artista plástico mexicano Ulisses Carrión, a propósito, já há, em umas das telas dos inúmeros recortes/colagens, o título: Sorry, no art today


O que os outros não vêem. Uma das lâminas para Ephemera (1978), de Ulisses Carrión

E, olhando-as, me vêm as seguintes questões: o artista fala de si mesmo, da sua arte, ou da arte de outros? Se fala de si mesmo, não estaria ironizando a arte que faz, seja defendendo-o ou questionando-o quanto ao seu valor estético [há um “valor estético”?], numa espécie de valoração pelo desvalor, pela auto-crítica conceitual ou da própria idéia de valor, do conceito de valor? E, se fala dos outros, com que direito o faz?

4.

Penso que nenhuma dessas questões pode ser respondida sem que, antes, respondamos à pergunta: ainda é possível, em nossa cultura dita “pós-moderna”, questionar o que seja ou não seja arte? Convém lembrar que um tal questionamento apela sempre a um princípio que é posto como, dentre outras coisas, modelo, referência, número áureo, etc. E nem quero entrar aqui nos problemas que envolveriam o antiquíssimo binômio referente/referencial. Seja como for, todavia, fica evidente a diferença que há entre uma tela de Rubens e uma de Miró... uma grande diferença; fácil constatação. E, se não é possível fazer essa diferença, como distinguir, na arte, o luxo do lixo? Em Arte atroz, Michael Cox, na parte em que trata da obra de Michael Landy, diz: “Michael Landy (1963-) faz ‘instalações’. Mas ficaria um pouco ofendido se você pedisse para ele instalar seu fogão ou condicionador de ar. Michael é um artista que faz ‘instalações’ criativas de objetos em geladeiras. Apreciadores de arte observam suas obras e dizem coisas como: ‘Essas... err... coisas artísticas são... realmente, err... artísticas, não são?’ Mas faxineiros dizem apenas ‘que monte de sujeira!’ e jogam tudo na lata do lixo. Foi exatamente isso que aconteceu quando os faxineiros se depararam com um dos novos trabalhos de Michael. O que não foi surpresa alguma. A ‘instalação’ era uma lata cheia de lixo – e o pessoal da limpeza só estava fazendo seu trabalho, não é mesmo? Essa não foi a primeira vez que esse tipo de coisa aconteceu. O problema de faxineiros jogando fora arte porque pensaram que era lixo tornou-se tão comum que algumas galerias agora têm que etiquetar as coisas como ‘arte’ ou ‘lixo’. [...] Se você quiser ter certeza de que algo é realmente arte, leia o rótulo!”

5.

Assim, pensando nessa diferença, como dizer, sem o auxílio da etiqueta, o que é arte e o que é lixo? Ou, das obras desses artistas, como dizer qual delas é mais... mais arte? Eu sei que tal pergunta, dentro do atual universo da arte, parece demasiado ingênua. Mas, se assim é, o que determina a variação de valores entre uma tela de Picasso e uma de Tião José, que, aproveitando-se de suas horas de folga, pinta paisagens lúgubres de casinhas solitárias? Alguém poderia dizer: “Ah! O valor deve vir da raridade da obra, ou da fama conquistada pelo artista”. Sim; pode até ser. Mas, o que é que faz a fama do artista; a sua obra ou a sua vida? Ele mesmo, ou nós? A problemática, como se vê, pode ter múltiplos agravantes; e a arte, por esses termos, ou seria um modus vivendi ou uma ars vulgaris. No primeiro sentido, ela se perderia numa análise éticopsicosociológica; no segundo, permaneceria como aquilo que é, ou que parece ser: representação mimética (simulacro) da phýsis que, por sua vez, se voltamos ao idealismo platônico, é mero simulacro do simulacro. Ou seja: cópia da cópia do Real, que não pode ser copiado – logo, coisa de pouca valia. E, ainda, se não sairmos do campo semântico para o ontológico, que critérios teríamos para avaliar os padrões da arte, ou mesmo da vida do artista?

6.

Isso é relevante porque, como se sabe, muitos artistas conquistaram a fama não por meio de suas artes, mas por meio de suas esquisitices – e o “reconhecimento” da arte vindo a reboque. Morte na flor da idade pode ser, ao reconhecimento artístico – pela memória sentimental de “cedo demais” ou do “imagine o que ele(a) ainda poderia fazer!” – a consagração final. Exemplos: Elvis Presley, James Dean, Marilyn Monroe, Kurt Cobain, Van Gogh, Cazuza, Renato Russo, etc. Rubinho Trool e Gilberto Gil, na letra de “A necrofilia da arte” – no álbum Televisão de cachorro (1998), da banda mineira Pato Fu –, também falam disso quando dizem: “Se o Lennon morreu, eu amo ele / Se o Marley se foi, eu me flagelo / [...] Zunfus Trunchus que eu nem conhecia / Virou meu star no outro dia”. Ainda nesse sentido, embora sobre outro prisma, Jean Baudrillard, em Carnaval / Canibal, texto redigido para o ciclo de palestras promovidas pelo COPESUL, intitulado: Metamorfoses da cultura contemporânea, disse (falando sobre a dominação cultural promovida pela ideologia do Mercado – entre outras coisas – e a consequente derrocada desse modelo que não pode se manter ante a nivelação das demais culturas que, macaqueando a cultura dominante, querem ser ela, mas sem deixarem de ser elas mesmas): “Esse grande show coletivo no qual o Ocidente se fantasia não apenas com os despojos de todas as outras culturas, em seus museus, sua moda e sua arte, mas também com os despojos de sua própria cultura.”

É que, segundo Baudrillard, a cultura dominante atinge um nível em que ela mesma, nada mais tendo a canibalizar, canibaliza-se. É assim que, por exemplo, diz ele: “Assistimos a esse show todos os dias [...]: Picasso incorpora o melhor de uma arte ‘primitiva’, e o artista africano hoje copia Picasso no âmbito de uma estética internacional”. E é aí que eu faço, novamente, a pergunta: quem é dá o valor da arte? Por qual (ou quais) parâmetro(s)? E, se não há tal parâmetro, como dizer o que é ou não é arte? Ou será que deveremos nos contentar com o reducionista: sorry, no art today.

Continua...

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Arte e arte contemporânea

1.

Sorry, no art today... O título, a propósito, vem das impressões que tive quando na minha última visita a uma grande exposição da chamada “arte contemporânea”, ou “pós-moderna”. O pós-modernismo, aqui vinculado à arte, é também uma “escola” filosófico-sociológica em que, segundo afirmam alguns “pós-modernos” – a exemplo de Jean-François Lyotard –, se percebe um desencantamento por toda e qualquer estrutura fundante, fundamental. No discurso pós-moderno (ou dos “pós-modernos”), há ainda a presença de uma metanarrativa justaposta, uma meta-história superposta, uma colagem plástica do velho sobre o novo, ou do novo que se serve do velho, revisitando-o em uma linguagem que é, a um só tempo, linguagem de linguagens: nada sólido, definitivo, tudo novo e a inovar-se – mas sem se prender àqueles fundamentos monologais que, num passado não tão remoto, eram procurados com a intenção de que as coisas pudessem ser amarradas, engessadas, paradigmatizadas.

Se, por um lado, é verdade que os velhos fundamentos não desapareceram, por outro, é verdade que eles, hoje, não têm mais o prestígio que um dia tiveram. A história e a linguagem, e mesmo uma verdade às verdades, no discurso do pós-modernismo, caducaram. Não há mais, segundo esse discurso, aquela verdade una, consagrada nas ontologias, nas metafísicas; há, sim, verdades de verdades, mas, mesmo essas, subjetivas, pessoais – como nos sopra Kierkegaard. Na individualidade intersubjetiva do sujeito, a verdade nada mais é do que aquilo que ele precisa que ela seja, segundo os seus momentos e necessidades – e daí a aparição das novas éticas. De modo análogo, não haveria uma arte (a Arte), mas as artes.

2.

É certo que a arte sempre foi múltipla; isso não entra na questão. Mas ela “tinha” – ou buscava ter – um fundamento, visava um fim. Isso, no entanto, não é mais assim – e não digo que tem de ser como era. Talvez isso tudo explique a diversificação das novas artes que, em dados momentos, nos fazem pensar sobre o que é que as caracteriza como “isso” que dizem ser. Acontece que as estruturas ontológicas, antes sólidas, não se mantêm mais na base do novo discurso que assimila o múltiplo. Na arte contemporânea, ou pós-moderna, cumpriu-se aquilo que, por boca de Marx e Engels, no Manifesto comunista (1848), com um outro sentido, é claro, fora vaticinado: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Essa fragmentação dos fundamentos, relativos à arte, é exatamente o que afirma Liev Tolstoi, respondendo à pergunta: “O que é arte?”, e retirando os contornos da metafísica, da ontologia, do idealismo: “A arte é uma atividade humana que consiste nisto: em uma pessoa conscientemente, por intermédio de certos sinais externos, levar a outras pessoas a sentimentos de que teve experiência e que estas sejam contagiadas por tais sentimentos e deles também tenham experiência. A arte não é, como os metafísicos dizem, a manifestação de alguma idéia misteriosa de belo ou de Deus; não é, como os psicólogos estéticos dizem, um jogo que serve para descarregar o excesso de energia acumulada; não é apenas a expressão das emoções de uma pessoa através de sinais externos; não é a produção de objetos que agradem; e acima de tudo, não é prazer; mas é um meio de união entre pessoas, unindo-as nos mesmo sentimentos, indispensável à vida e ao progresso em direção ao bem-estar dos indivíduos e da humanidade.”

Não digo que Tolstoi tenha razão; mas a citação, certamente, serve de exemplo a esse rompimento das idéias mais antigas de uma arte vinculada, fundamentada. Se ela se mantém ligada a alguma “coisa”, aí, e à humanidade humana, e ao sentimento – e não há dúvida de que tais termos e tais condições sejam, ao extremo, subjetivos. E novamente ficamos soltos no ar.

Continua...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Capítulo 1


Sorry, no art today: Arte, Linguagem e o Problema do Fundamento



Nós, os artistas do grande negócio, sabemos que a obra de arte não nos entende. E que viver é missão suicida.
- Clarice Lispector






1.


“Todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, não do seu modelo. O modelo é simplesmente o acidente, a oportunidade. Não é a ele que o pintor revela. Quem se revela sobre a tela colorida é o próprio pintor.” São palavras de Hallward, personagem de O retrato de Dorian Gray (1981), de Oscar Wilde.
O retrato do belo Dorian, pintado por Hallward, era apresentado ao Lorde Henry, amigo seu e ouvinte do comentário aí feito. O retrato, conforme Hallward, não revelava o seu modelo (Dorian), mas, antes, aquele que o fez (o artista). Mesmo o modelo, na enigmática novela, embora não sofresse a ação do tempo, não era o mesmo da representação, e nem poderia sê-lo: o retrato (simulacro) envelhecia em seu lugar, elevando-o – pela dádiva da constante juventude – ao nível do divino, da divindade; mas, conforme o idealismo, mesmo um tão extraordinário retrato, é mero simulacro de simulacro. O real, mesmo, está sempre muito além da representação, qualquer que seja. Representar é falsear, interpretar. E não por acaso a palavra “hipócrita” nomeava a arte dos atores do teatro grego.
O desejo de Dorian é escapar à sua própria representação; mas, como fazê-lo senão fora do tempo? Como fazê-lo senão elevando-se definitivamente à incorruptível divindade? Impossível! Eis aí o tempo. Tragédia das tragédias. Nem mesmo o belo Dorian, no final, pode enfrentá-lo. A obra de Hallward é, mais do que uma representação da “imagem” de Dorian, uma metáfora do tempo: que não passa, não morre; mas faz passar, morrer. Mesmo o retrato, em-si, é coisa-de-si e, logo, si-mesmo mesmo. Já o modelo, em-si, irretratável, é não-si-mesmo – pois preso ao devir e, eo ipso, nunca não-si senão não-não-si. Não se é o que não se é sempre problema fundante/fundamental desde Parmênides.
A condição de Dorian é temporal, de não-ser: sujeito sujeitado ao tempo. Mesmo não envelhecendo, fisicamente, não há como impedir o novo que se impõe: nas lembranças, nas memórias, na consciência do passado no presente... Tempo. E eis aí o seu Eu: sempre outro a cada dia, a cada hora, a cada instante... E eis aí o inferno, o absurdo (o Eu, consciente). O tempo nos comprime e nos dá a ilusão do movimento, que somente a nós pertence, e às coisas. “O tempo não para”; é a grande e repetida mentira do senso mais comum. Mario Quintana, sabedor dos seus mistérios, trata disso assim (como se dissesse a uma amada sua, imaginária): “É preciso a saudade para eu te sentir / como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida... / Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista / que nunca te pareces com o teu retrato... / E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!” É o mesmo Quintana que, no Caderno H (1973), sobre Wilde, por seu Dorian, dizia: “O que eles jamais perdoaram a Oscar Wilde é que ele era profundo sem ser chato.” Mas, nem o escritor inglês e nem o poeta gaúcho, de Alegrete, conseguiram superar o “socratismo-platônico”, ou o idealismo ancestral do Ocidente.    

2.

No poema, o retrato preserva, imóvel, à ilusão de quem olha o “instante da eternidade”, a fração temporal da atemporalidade. Sujeitos da temporalidade (ou a ela sujeitados), nada sabemos com certeza dessa atemporalidade da qual falamos; e falamos tão somente como um atormentado Agostinho discorrendo sobre os mistérios da Trindade ou do tempo: para não silenciarmos, em “licença poética”. Tudo o que aparece como retratado ou retratável, no tempo, é devindo e, justamente por isso, não é senão não-ser. Dorian, embora não faça tais elucubrações – coisa que, na obra de Wilde, caberá ao Lorde Harry –, sabe disso muito bem, mediante o desejo que sente em seu corpo jovem: a satisfação é temporal e, assim, canteiro de insatisfações. Afinal, levando a questão a fundo: quem é que, realmente, poderia matar a sede, ou a fome? Toda a água do mundo não serviria a uma única pessoa. O desejo, satisfeito, esbarra no tédio; como no caso do desejo sexual: Omne animal triste post coitum. A fala de Sócrates, por instrução de Diotima, n’O Banquete, de Platão, ilustra isso muito bem: o desejo, quanto mais plenamente realizado, tanto mais promove o tédio que vem depois. Assim, e para o caso de Dorian, eram muitos os “depois”, e, com eles, e muito mais, o tédio. Mais que o tempo que a tudo destrói, o ânimo de uma vida toda, morto o desejo, também se torna fatal, fatalista. Não é isso que o próprio Dorian sente e lamenta: “Ah! Que instante maldito aquele em que o orgulho e a paixão o haviam levado a implorar que o retrato suportasse o peso dos sues dias, para que ele pudesse conservar o esplendor da eterna juventude! Todas as infelicidade daí provinham?”

3.

De que vale uma mente velha, que sente que já desejou demais, em um corpo jovem que sente o peso da velhice de sua mente? Não é o corpo que deseja, mas a mente – o corpo, que não sou Eu, me obedece; o Eu mesmo, “por trás de nós oculto”, como dizia Emily Dickinson, “é muito mais assustador”. Eu não sou o que apareço aos olhos do outro, mas o que sei de mim mesmo, intimamente. Outra mulher, Adélia Prado, sabe bem sobre os desejos do Eu: “Não quero faca nem queijo. Quero a fome!” Escreve assim, no final de “Tempo”, poema de O coração disparado, livro de 1978. A fome é do corpo, mas o desejo, não; ele, aí, apenas habita. Melhor que o tédio, crepuscular, é o desejo: aurora. O corpo e a mente precisam da sincronia, e quando isso não há, ai ai... Não adianta o queijo sem a vontade do queijo; e a faca... para quê? Não é isso que os retratos nos dizem? Dizem que, do momento vivido – ou o desejo realizado – de pouco vale a lembrança, a não ser que a mesma traga, para o presente, alguma alegria. E foi a falta disso que fez com que o jovem Dorian, olhando para a sua “feiura” estampada no retrato, se deparasse com o seu verdadeiro Eu, “muito mais assustador”, como nas palavras de Emily Dickinson. Assim: “De repente odiou sua própria beleza e, atirando o espelho ao chão, despedaçou-o, pisando em seus pedações prateados com os saltos dos sapatos. Fora a sua beleza que o havia levado à perdição, sua beleza e aquela juventude cuja permanência tanto implorara. Não fossem essas duas coisas, sua vida poderia ter sido imaculada. Sua beleza tinha sido para ele somente uma máscara, e sua juventude uma zombaria. Afinal, que era a juventude? Um período de viço e imaturidade, repleto de impulsos...”
O corpo acompanha a mente, e não o contrário – mesmo quando não pode obedecê-la por motivos próprios –; assim também nós, em relação ao tempo. Daí que, no retrato, nunca somos o que realmente somos, e nem mesmo o que “estivemos sendo” nalgum instante daquele devir indizível, atemporal, desmedido: “No retrato que me faço / – traço a traço – / às vezes me pinto nuvem, / às vezes me pinto árvore” (Mario Quintana). Talvez mais do que as nuvens, e talvez menos do que as árvores, sejamos assim dissolvidos pelo tempo, no tempo. Os nossos retratos para muito pouco servem, porque não podem captar o que somos; apenas o instante de eternidade (do/no nada) que, no presente, representa (símbolo) tão somente a recordação, a memória do que foi feito de nós, e essa memória, quase sempre, dolorosa. Os retratos, mais do que nossos, são retratos do tempo. Nós, sempre devindo, somos irretratáveis.

4.

É nessa perspectiva do devir que podemos fazer uma leitura crítica do tempo retratado, ou retratável: seja na pintura ou na fotografia ou, por extensão, nas demais artes.  Acontece que a arte é comumente aceita como uma linguagem, e linguagem universal. Mas não há, como se sabe, uma hermenêutica da arte – ou, pelo menos, uma hermenêutica para a linguagem da arte. Há, por outro lado, escolas que, vinculadas a este ou àquele período, se inserem num discurso histórico, meta-histórico, ou linguístico, metalinguístico. Mas, quando falam sobre as falas da(s) arte(s), que comunicam? E, no transcurso do tempo, como mantêm ou pensam manter a coesão de tais discursos? Os homens de todas as épocas saberão ouvi-lo sem as distorções da cultura e da história, por exemplo? E a preservação da originalidade desse discurso é, realmente, relevante? Se sim, por quê?
Num programa de TV, Ferreira Gullar dizia, justificando a existência de uma arte coerente: “Embora eu não saiba definir o que é arte, eu sei o que ela é quando eu a vejo”. Qual o valor de tal afirmação? Na Introdução/Prefácio que Frank McConnell faz ao volume 9 (Vidas breves) dos encadernados de Sandman (Ed. Conrad), onde menciona os roteiros de Neil Gaiman como “sagrados”, encontramos: “‘Sagrado’ não é uma palavra que uso à toa. Quando ainda se chamava Leroi Jones, Amiri Baraka escreveu que a arte é qualquer coisa que faça você sentir orgulho de ser humano. É uma grande definição de arte e também do impulso religioso, que, no fim das contas, não passa do desejo de dizer ou ver algo que nos convença de que temos importância, de que nossas vidas breves e confusas têm sentido, direção e vetor definido, apesar de sua confusão e brevidade. Arte não é ‘criar a ordem a partir do caos’: isso é problema de Deus, seja lá quem ele/ela for, arte é o sonho da ordem a partir dos sentidos do caos: a tacada perfeita na bola oito, a pedra talhada que se parece com o deus Apolo, Charlie Parker improvisando em ‘How high the moon’, Fred Astaire simplesmente cruzando uma sala”. O “sentimento”, que é coisa sempre muito pessoal, aí – no receber a arte como tal, e atribuir-lhe beleza ou feiura (e, logo, um valor... ao menos o do juízo estético) – é o que, de imediato, aparece, destaca-se. O Eu, acima de tudo, é afirmado, e nossos juízos, nossa noção de medida. A arte, da qual o artista se faz profeta, fala por si mesma e, irremediavelmente, pelo seu artista. Cada indivíduo, isolado, recebe-a como pode, como sabe receber, como aprendeu a saber saber. O artista, como o profeta, é somente um seu instrumento. Há aí uma linguagem, mas ela é plural, e sob muitos aspectos.
Talvez devamos, mais do que procurar por uma linguagem da(s) arte(s), consentir que a(s) arte(s) é(são) uma linguagem do/no tempo. Isso assim consentido certamente não nos aumentará aquela sensação de estranheza que, na cultura contemporânea, temos quando ouvimos falar em uma morte da arte; pois que ela, vinculada à história – e ao tempo, consequentemente –, falaria tão somente da sua condição fragmentada, pós-estruturada, anti-metafísica, “pós-moderna”... a(s) arte(s), como a palavra falada, se perde, transforma-se, dá-se à maior confusão.
Estaria a arte, hoje, realmente, morta? Se não, como reconhecê-la? E, reconhecendo-a, como entender o que ela tem a nos dizer? – se é que precisa ou quer nos dizer algo.  


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