segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

45.






Das 1001 receitas infalíveis de amor e embriaguez




Quando estive em Santiago do Chile, no final da primavera de 2009, e depois de pegar informações sobre onde encontrar boas librerías pelo centro da cidade, próximas ao hotel onde me hospedara, fui informado de um “servicio de librería pequeña, pero muy variada y muy buena” – dizia a recepcionista, apontando para a rua que ficava a minha frente, recomendando que eu andasse três quarteirões sempre em frente e, depois, dobrasse à esquerda e seguisse por mais outros dois e, “pronto, o senhor logo vera a placa.”
Era, de fato, uma livrariazinha pequena, mas de aspecto simpático, convidativo e aconchegante. Não havia clientes e, talvez por isso, fui realmente muito bem atendido.
Eu procurava por algum livro de culinária, que deveria ser presenteado ao Rafael – um amigo de Florianópolis, que fazia Direito na UFRGS, e com quem eu dividia um pequenino apartamento na Lima e Silva, em Porto Alegre. A estante de culinária, infelizmente, não era a mais sortida.
Quando eu já não tinha fé de que encontraria algo que realmente quisesse comprar, dei de cara com um livrinho de título chamativo: 1001 recettes amour sans faille et l'ivresse (1001 receitas infalíveis de amor e embriaguez), de autoria do divertidíssimo Henry Lucerne, de quem já havia lido Um dia perfeito para o suicídio (Éd. de Mégare, 1998) e As begônias de Matilda Cortese (Seuil, 2004). Tive de, no mínimo, folheá-lo.
Henry Lucerne, diferentemente de outros pensadores franceses, não afunda os pés no terreno fértil do existencialismo, mas mantêm-se, como nenhum outro, na escola satírica de Voltaire – atualizado, porém, e sem ser refém do mofo histórico-literário. Meu francês, mais afiado que atualmente, logo denunciou o chiste do autor: não havia 1001 receitas, apenas 45, em forma de máximas ou fragmentos curtos, e pequeninos comentários aos mesmos. Estava na prateleira de culinária por engano; tinha de ser. A loja aceitava pagamento em dólar, e o livrinho saiu por apenas $ 7,00.
Mais tarde, no hotel, meus olhos caíram nesta “receita”:

Para bem conservar o amor: guardá-lo na geladeira. 
(LUCERNE, Henry. 1001 recettes amour sans faille et l'ivresse. 2. ed. Paris: Éd. de Mégare, 1987. p. 21).

Dois anos depois, quando eu já havia voltado a morar em João Pessoa, e depois de consultar alguns sebos na Estante Virtual, comprei duas edições diferentes do “1001 receitas...” Na tradução inglesa (Covent Garden Press, 1992), feita por Johane Fischer, a mesma citação aparece assim: “Para conservar o amor, congelá-lo.” E, na tradução portuguesa (Verbo Editorial, 1993) – não consta o nome do tradutor –, é: “Para bem conservar o amor, mantê-lo bem resfriado.”
Lucerne – é ele mesmo quem explica – fala do “amor demais”, do “amor de perdição”: aquele que possui a vítima qual vírus, trazendo-lhe dores, febres e calafrios terríveis. É que o fruto de tal amor, em temperatura ambiente – como é mais comum que seja –, amadurece mais depressa e, também por isso, estraga-se.
Há um diálogo em “Harry & Sally – feitos um para o outro” (When Harry Met Sally... 1989), filme com roteiro de Nora Ephron e direção de Rob Reiner, onde Harry Burns (Billy Crystal) diz à Sally Albright (Meg Ryan): “Quando você percebe que quer passar o resto da sua vida com alguém, você quer que o resto da sua vida comece o mais rápido possível.” Clara confissão do “amor demais”. Há, também no diálogo, a presença daquele gelo que conserva o amor – ao menos da parte de Sally. O trecho, inteiro, é como segue:

Harry: Eu te amo.
Sally: Como você espera que eu responda isso?
Harry: Que tal “que você me ama também?”
Sally: Que tal “eu estou indo embora?”
Harry: O que eu disse não significa nada para você?
Sally: Sinto muito, Harry. Eu sei que é véspera de ano novo. Eu sei que você está se sentindo sozinho, mas você não pode aparecer aqui, dizer que me ama, e esperar que isso faça tudo ficar bem. Não funciona desse jeito.
Harry: Então como funciona?
Sally: Eu não sei, mas não desse jeito.
Harry: Que tal deste jeito? Eu amo que você fica com frio quando está 32 graus lá fora. Eu amo que você demora uma hora e meia para pedir um sanduiche. Eu amo quando você fica com uma ruguinha acima do seu nariz quando você olha para mim, me achando louco. Eu amo quando depois de passar o dia com você, eu ainda sinto seu perfume em minhas roupas. E eu amo que você seja a última pessoa que eu queira ver à noite antes de dormir. E não é porque eu estou sozinho. E não é por que é ano novo. Eu vim aqui esta noite, por que quando você percebe que quer passar o resto da sua vida com alguém, você quer que o resto da sua vida comece o mais rápido possível.
Sally: Você vê? Isso é tão você, Harry. Você diz coisas deste gênero, e fica impossível eu odiar você, e eu odeio você, Harry. Eu realmente te odeio. Odeio você.

O ódio aí, como se verá, esconde (ou disfarça) um amor muito bem guardado: congelado para o futuro. A fala, externa, pode ser reflexo de mil engenhos internos: “O que sua boca fala é o que transborda do seu coração”, são Lucas afirma, em seu evangelho. Pode ser. Mas, sim: é fácil, bem fácil, que a fala esconda um universo de intenções contrárias a si, ao que ela mesma afirma; e, em matéria de amor romântico, a palavra incendiária é a mesmíssima que, do incêndio, traz as cinzas – quando o objeto não é mais.
Henry Lucerne sabe das coisas e, nunca, nunca esteve realmente embriagado ao ponto de não saber que, para o amor romântico, não há receitas infalíveis.



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

44.







Da solidez dos espaços vãos




– E se tudo estiver errado?
– Então será certo, o erro; como é certa, a dúvida.
Não era uma pergunta legítima, a de Rafaela; não era. O sentido das coisas, dos dogmas da fé ou da política latino-americana, para ela, mesmo quando eram bases flutuantes, e se tanto flutuavam, tomavam o céu como base. Ela, sempre me pareceu, não sabia viver sem isto: um fundamento, uma ideologia, uma certeza – mesmo que não soubesse defender intelectualmente o porquê de tal certeza.
– Mas – ela disse –, como é possível saber se é certo, o erro? E se o “tudo” também inclui-lo? Quer dizer: se o erro estiver justamente aí, na dúvida sobre o erro.
– Ainda assim – respondi – a dúvida será certa, como máxima permanente; como fundamento para algo que, se é o caso, exija algum fundamento. E isso desde Agostinho, com seu si fallor, sum.
– Que é isso?
Se me engano, existo. Pois não poderia ter alguma dúvida da minha certeza se isto, a dúvida, já não fosse, em si, alguma certeza.
– É, faz sentido.
– Claro que faz! Agostinho não é famoso por acaso. Mas isso somente garante que sei de mim. Eu: o que duvida, res cogitans. Não há garantias para nada além disso; e principalmente como ele fez, acreditando poder “partir de si”, físico, em direção ao Super-Outro, metafísico; como em uma hierarquia, e mantendo as hierarquias que...  
– Mas isso que você fala, das estruturas clássico-ortodoxo-teológico-fundamentalistas favorecerem a dominação imperialista, et cetera, e que isso, sim, pode ser a legítima obra do Diabo... sei não, viu?
Era, ao menos do modo que eu dizia, “um modo de dizer”. E referia-se ao que, antes, havíamos conversando, com base na leitura de um livrinho de Russell Shedd, A justiça social e a interpretação da Bíblia, de 1984. No referido, há uma crítica à “horizontalidade da Teologia da Libertação”, acusando-a de ligar-se ao marxismo ateu e, nisso, arranjar-se em uma hermenêutica (principalmente a do Velho Testamento) forçada, tendenciosa.     
Daí lembrei de algo que tinha lido em outro livrinho, de Basileia Schlink, Patmos – da der Himmel offen war, de 1976. Era a parte de uma oração em que a santa madre chamava o seu bom Deus de... Satã – não assim, de modo explícito, mas ao colocar a sensualidade como obra desse. Ela dizia: “Acima de tudo, renuncio a todo desejo sensual que surge em mim. Recuso-me a ter alguma coisa a ver com isso ou com Satanás, que está por trás de tudo [isso].” Ah! Que infeliz!, a afirmação. Ah!, o antinaturalismo cego dos fundamentalistas cristãos. Não era preciso concordar com Darwin, Freud ou Schopenhauer para saber que a sensualidade é um dos recursos mais comuns da Vontade (de vida), incitando (e excitando) os indivíduos pelos indivíduos, a fim de que esses gerem outros, conforme sua espécie. E a beleza, em nosso natural inconsciente, é propaganda da saúde do corpo, dizendo-se “bom” para gerar espécies igualmente boas. Mesmo as bestas, que agem por puro instinto, “sensualizam”, para atraírem seus pares. Qualquer teologia, mesmo a mais decadente, deveria entender que o “crescei e multiplicai-vos” não funcionaria sem a ereção de Adão, em resposta à beleza erótica de Eva. E, certamente, e aos menos para tais teologias, isso não deveria ser creditado ao... Diabo.  
– Também acho que a dúvida seja uma coisa boa – Rafaela dizia, sem muita convicção. – Mas, às vezes tenho medo... de duvidar.
– Pois, não deveria.
– Por quê?
– Porque o determinismo é o refúgio dos covardes. Porque a dúvida pode ser uma chave para nossa liberdade, Rafa; nossa liberdade de pensamento acerca de nós mesmos, do mundo e do Outro, e de tudo o que transcenda a isso.
Foi uma conversa longa, e não lembro mais dos detalhes; e não creio que eles tenham alguma relevância para além do que, aqui, já foi dito.  
Quatro anos depois, quando já não éramos colegas no curso de teologia, ela casou, teve dois filhos, continuou idealista, e romântica: na fé religiosa e no amor perfeito. Eu, não; não conseguia mais. Viajei o Brasil quase inteiro, e por alguns países da América Latina, sozinho e a tudo atento – à miscigenação que, por exemplo, é nossa riqueza e... pobreza: material e espiritual. Continuei antidogmático, muito mais que antes. E ainda vejo os fundamentalistas (das religiões ou dos partidos políticos) como cânceres ou gângsteres reacionários, e me afasto deles. Se não nos permitimos à dúvida, prostituímos a liberdade – a nossa. Dogmas, sistemas e certezas, são limites, e limites são prisões. É preciso duvidar de tudo, ainda.



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

43.






Do nosso lugar no mundo, da nossa vida, e do quanto ela vale




Enquanto leio algo d‘O inverno de nossa desesperança, de John Steinbeck, ela me espera, deitada no sofá, ouvindo o rádio tocar uma música qualquer, algo que nem liga, que não ligamos, e que ouvimos assim, sem ouvir... Seus pés balançam fora do compasso.
Compasso. Tempo.  
Qual o nível de precisão de um metrônomo? E quanto ao tempo, sei que o dia está frio e o All Star não aquece bem os nossos pés? Tempo... Um problema sério à filosofia, enquanto definição conceitual, desde Agostinho até Kant, dentre os mais destacados. Mas isso não vem ao caso hoje, 27 de março de 2007, aqui neste apartamento, 7º andar, na Lima e Silva, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, América Latina... Estamos certos de nossas incertezas, vagando por algum lugar deste mundo.
Lugar. Que é um lugar?
Uma vez tentei fazer um poema sobre o tema, porque era a única forma de dizer o que um “lugar” poderia ser – já que o modo poético se permite às subjetividades. “O Mundo, por exemplo”, eu dizia, “não é um lugar. Lugar é definição, ‘coisa’ que diz respeito ao ‘desde quando?’, ‘para quê?’, ‘até quando?’, ‘a partir de onde, sua localização?’... Ora!, quem sabe ‘onde é Mundo’?” Concluía, sem nada concluir.
As listras das meias que ela usa traçam riscos no ar, com o movimento de suas pernas. Mas as linhas, também, não estão condenadas às paralelas. Inexiste a reta que liga os dois pontos, no que seria a menor distância entre ambos; existe, sim, a curva, a geodésica – na geometria curva de George Friedrich Bernhard Riemann, que sobrepujou a curva, de Euclides. E cada vez que seus pés iam e vinham, era uma primeira e única vez, e para cada um, como são todos os movimentos – como o das ondas que morrem na praia, mesmo quando ninguém as observa.
– Pata, tu já viu o remake de 12 angry men, de Sidney Lumet?
– Ah?
Ela rompe com as minhas divagações sobre o nosso lugar no mundo, e sobre as certezas relativas ao tempo e espaço. Ainda leio Steinbeck, e ela me espera, absorta em pensamentos que nem sei...
– A versão de 12 homens e uma sentença, de William Friedkin, de 97.
– Putz! – digo, espantado. – Tu deve gostar mesmo desse filme. Vi não, baby.
Ela ri, para de balançar as pernas, agora paralelas, como as listras em suas meias. Silencia por um instante, como a organizar o que vai dizer, e que diz:
– Há uma fala lá, do Henry Fonda, que, para mim, resume toda a trama. É assim: todos acreditam que o réu é culpado, menos ele. Aí, nessa parte, ele fala do rapaz que é julgado.
– O réu.
– Isso. Ele fala assim, do réu: “Comecei a me colocar no lugar do rapaz. Teria pedido outro advogado. Se fosse minha vida em jogo, ia querer que o meu advogado pusesse todas as testemunhas de acusação na parede. Só há uma pessoa que pode ser considerada testemunha. A outra diz que ouviu e viu o rapaz fugir depois de matar. E há provas circunstanciais. Esses dois são tudo o que a promotoria tem. E se estiverem errados?” Daí outro, do júri, intervém: “Como assim errados? Então, para que testemunhas?” Mas, Fonda lhe pergunta: “Não poderiam estar errados?” E ele: “Como? Estavam sob juramento.” “São pessoas. Pessoas erram. Não poderiam estar errados?” Fonda responde. E o outro diz: “Não, não acho, não.” “Assegura isso?” É Fonda quem pergunta. “Não se pode assegurar isso. Não é uma ciência exata.” Fonda conclui vitorioso, ao menos por hora: “Isso mesmo, não é.” O outro parece entender a complexidade de tais juízos, e parece meio contrariado, inseguro... Tu vê isso, Pata? O veredicto decidiria a vida ou a morte do cara, bem novinho e tal; e eles doze, menos Fonda, estavam dispostos a condená-la, embora não tivessem certeza de que ele era culpado. A pergunta que me fiz, na hora: quanto vale a nossa vida?, e que “certezas” têm aqueles que decidem, todos os dias, se devemos viver ou morrer? Sim, porque há projetos de governos e armas que são capazes de, em um só dia...
“Meu Deus!”, penso, enquanto ela continua falando sem me notar, “que direito eu tenho de fazê-la esperar tanto?”
– Sim!, eu gosto da minha vida – ela diz, enquanto eu marco a página lida, e de onde deveria continuar, depois –, mesmo que ela não seja tudo aquilo que eu queira que ela seja.


domingo, 19 de fevereiro de 2012

42.






Da fé no amor, e suas recompensas



No amor romântico, como na fé religiosa – “‘Fé’ significa não querer saber o que é verdadeiro”, Nietzsche afirma, n’O Anticristo, de 1888 –, a razão é rebaixada, e o realismo, em favor do idealismo, e do carnaval dos sentidos.         
Daniela acreditava firmemente que João Aurélio era o “homem da sua vida”. Confidenciou-me, bêbada e chorosa, ali no Bar do Elvis, próximo à UFPB. Tanto acreditava que, mesmo sabendo das suas traições, afirmava irredutível: “É sexo o que ele faz com as outras, Patativa; comigo, é amor.” “Putz!”, pensei na hora, inconformado de que alguém ainda acreditasse nisso, e fazendo cara de praça em dia de chuva.
De um modo misterioso, e por alguma estranha defesa da sua no amor, ela depositava todas as forças na inabalável convicção de que, “um dia, pode anotar aí, o João há de se corrigir”. Largaria a vida que estava levando, dizia, e se devotaria somente a ela, e seriam felizes, igual no filme de Garry Marshall, Uma linda mulher (Pretty woman, de 1990). Mas ele – sim, ele – é que seria a Julia Roberts da história. “Você vai ver, Patativa. Você vai ver.” Nunca vi.
O amor romântico, para as suas recompensas, requer o salto da fé (Kierkegaard), requer o absurdo. Tal amor, sublimado, é dono das promessas de futuras beatitudes – mesmo quando, no presente, somente tristezas e decepções seja o seu quinhão. O ideal apostólico: “O amor é paciente, é benigno; não se porta inconvenientemente, não busca seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”, referente ao ágape, é espelho para Eros – no equívoco do idealismo, e da propaganda cristã – que deve, por aí, se corrigir, ser corrigido. Ágape é perfeito, Eros, não.
O amor romântico concebe a felicidade dos que se auto completam (corações perfeitos, almas gêmeas, et cetera), ou que pensam poderem-se completar no Outro, no  encontro com o Outro: a metade que lhes falta. Tais ilusões originam-se em nosso inconsciente senso de estética, de simetria. Barbie procura Ken; a princesa da Disney, seu príncipe: bonito, rico, educado, sério e, no fundo, um pouco safado – para que a vida privada dos dois não vire uma privada, sufocada pela monotonia.
Com o declínio da moral ocidental – a cristã, em particular –, o modelo de “bom rapaz, direitinho” (que nem na música do Tom Zé), tornou-se coisa para o cinema, e à literatura fantasiosa. “Bom rapaz, direitinho, desse jeito não tem mais”. E quando tem, é a coisa mais chata do mundo. Tão chata que somente a mãe (ou a avó) aguenta. O inconsciente feminino, grosso modo, vê com melhores olhos o masculino incendiário: James Dean, Jim Morrison, outros. Quando não é assim, é porque ou as amarras culturais – nas quais nasceu e habituou-se – ou a retração própria do medo, referente aos riscos (ou suas consequências), meteram-lhe uns freios. O amor romântico é uma máscara da Vontade de vida, ou do desejo de viver (Wille zum Leben); nossa inconsciente noção de estética e simetria, seus cães farejadores.
A Vontade também precisa de certas estabilidades que garantam o sucesso do empreendimento: daí viria, de modo natural, nosso sentimento de fidelidade, comum aos homens (instinto e razão) e às bestas (instinto) – havendo ou não a infidelidade. No homem, como em uma embalagem (conforme cada cultura), o instinto domado e amordaçado é o selo da moral, ou da virtude, que pode ser religiosa ou autônoma – e nada são senão conceitos. E se todas as histórias de todas as lutas têm em seus enredos mais profundos um script ditado pelo ideal de um amor perfeito, é que ele, em relação à Vontade da vida, tem uma funcionalidade conveniente. Como Schopenhauer escreve na Metafísica do amor – capítulo XLIV dos suplementos ao livro IV de O mundo como vontade e como representação (1818) –: “A natureza só pode atingir o seu objetivo fazendo nascer no indivíduo uma certa ilusão, graças à qual ele considera como uma vantagem pessoal o que na realidade é apenas vantagem para a espécie, do mesmo modo que é para a espécie que ele trabalha quando imagina trabalhar para ele mesmo.” O disfarce é tão perfeito que, esquecendo-se de suas próprias vidas, as pessoas fantasiam o amor para além delas mesmas, e deste mundo.
Desisti de tentar convencer Daniela a procurar outro que, ao menos, lhe respeitasse. Desisti de fazê-la entender que, dignidade, nada tem a ver com egoísmo, no sentido “ruim” do termo. Desisti de repetir que, “se você mesma não se ama, como espera que outros o façam?”   



quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

41.





Dos fantasmas vivos dos amores mortos



Lorayne fazia “poeminhas”, como ela mesma dizia.

Eu tenho flores nas pontas dos dedos,
e um espinho no coração...
o meu diário de tantos segredos,
é um fantasma preso no porão...

Como um Drummond que faz poemas para outro Carlos, falando de si para si, mas como se não fosse – “Ah, Carlos, não se mate!...” –, também Lorayne, e os trazia para que eu avaliasse. Coisa que ela mesma fazia, argumentando:
“Pois quem não tem segredos e não convive com fantasmas de amores findos?” Abria os braços, erguendo os ombros, para dar ênfase. “Quem, em algum momento da vida, já não teve o coração ferido por um espinho, quando, nas mãos, somente flores era o que trazia? E quem, nas dores do amor, não é meio louco, meio poeta, meio Van Gogh, meio Miró?”
“Para o amor, Lorayne”, respondi, nessa ocasião, enquanto ela acendia o cigarro e enchia o pulmão de fumaça, “temos de aprender sobre a resignação, sobre os riscos e, acima de tudo, não termos medo dos seus tantos fantasmas.”
Ferida e magoada, Lorayne estava sozinha. Disse, enquanto dividíamos uma garrafa de Angelica Zapata, que esperava por um amor que lhe chegaria qual canção de Nina Simone, ou de Violeta Parra, na violência sutil do cotidiano. Para esse amor, compunha, já, os poemas que não seriam lidos por mais ninguém.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

40.






Da velhice e da mecânica que continua as gerações



Os velhos veem com os olhos da eternidade. É caso de se pensar: não nos foi dada, a juventude, como lição para que, bem aprendida, saibamos aceitar com tranquilidade o que vem depois? Se a filosofia, como Sócrates ensinava, é uma meditação para a morte, por que não seria, a juventude, sua escola? Quando escreveu o Diálogo sobre a velhice (Cato Maior ou De senectute), que dedica ao seu bom amigo Ático, Cícero estava com 63 anos; e, Ático, 66. Estavam velhos, e a morte já os cortejava. Por boca de Catão – que faz seu personagem principal, por admiração e respeito –, Cícero afirma: “Toda idade é pesada àqueles aos quais nada há neles mesmos para viverem bem e felizmente; ao contrário, nada que a necessidade da natureza traz pode parecer um mal a esses que tiram todos os bens de si mesmos. A velhice é, em primeiro lugar, dessas coisas que todos desejam atingir, e, uma vez conseguida, acusam-na: tão grande é a inconstância e a perversidade da estupidez!” Nada nos garante, como queria a Adélia, que algum amor da nossa mocidade torne-se a ventura de uma velhice feliz:

Me dá alegria, Pai, eu só quero a alegria,
os olhos do moço em mim.
Me cansarei, redonda, casável,
capitulada entre massas e molhos,
sentirei fome e prazer,
ficarei velha e feliz.
  
Ah!, a poesia (também a teologia). Nela, os milagres e as visões delirantes são possíveis, permissíveis, louváveis e, mesmo, sagradas: o êxtase místico (São João da Cruz, Santa Teresa D'Ávila, et cetera), a cura do câncer, a paz mundial... A realidade da vida que se impõe, porém, é profana: não há fim último senão ser, e continuar sendo, até o fim do Eu consciente. Tal realidade profana o santo lugar da beatífica visão do paraíso derradeiro, porvir, que os velhos – ao menos os que conservam a fé religioso-escatológica – veem com os seus olhos de eternidade.

* * * * *

O velho, amolador de facas, viu quando o casal se aproximou. Não deu atenção. É que muitos passavam assim: olhando-o de longe, olhando-o por olhar, por curiosidade (quase não há mais amoladores de faca pelas cidades grandes); depois iam embora, silenciosos, anônimos. Tinha os olhos fixos na roda que, presa à correia de couro e ao pedal, girava conforme impulsionada pelo seu pé direito. Algumas faíscas saltavam de uma pequenina tesoura que era amolada. Somente permitiu-se interromper quando precisou responder ao rapaz que se acompanhava de uma moça bonita. Esse, alegre e amistoso, perguntara-lhe:
– O senhor não é o seu João?
Levantou o rosto lentamente. Semicerrou os olhos, para ver melhor quem era aquele por quem era abordado.   
– Sim! E a sua graça?
Ninguém mais falava assim, perguntando por um nome. E como o moço lhe pareceu confuso, tratou logo de acudi-lo, também gentil e sorridente:
– O senhor me conhece de onde?
– Pois então, seu João, sou filho do Carlos. Carlos Gomes. Acho que o senhor o conhece, não é?
– Sim, sim, meu rapaz! E como eu haveria de esquecer do velho Gomes? Inda mais com um nome desses. Motivo de gracejo entre nós, por causa do compositor e... Eu e seu pai fomos colegas na mesma turma de escola. Somente bem depois, quando ficamos adultos, e com os nossos filhos já nascidos, foi que nossos caminhos tomaram rumos diferentes.
O velho olhou o moço mais cuidadosamente, examinando-o.
– Então você é aquele gurizinho que eu vi, assim, tanticozinho assim? Mas, vejam só!
Fazia medidas no ar, colocando um pequeno espaço entre o indicador e o polegar da mão direita. Perguntou, em seguida:
– Mas, venha cá, me conte: e como é que anda o Gomes?
– Ah!, vai bem. Não sei se o senhor sabe, mas ele abriu mais uma loja, ali perto da Lagoa. Tá pensando em abrir mais outra, fora da cidade, talvez em Campina Grande; e quer botar mais uma no Tambiá.
– Gomes sempre teve um espírito muito empreendedor. Dava para notar, desde muito cedo. Mais uma loja no Tambiá, hem? Vejam só!
– Pois é! E o senhor, seu João, como vai? Tenho certeza que ele vai me perguntar isso, quando eu disser que o encontrei.
– É, vai mesmo. Bom, como você pode ver, não tive a mesma sorte que seu pai. Trabalhei aqui e ali, sempre para os outros; fiquei sem emprego. E agora que sou velho, não para trabalhar, mas para arrumar novo trabalho, ganho a vida fazendo uns bicos aqui, outros ali, amolando facas, tesouras, e essas coisas.
– Sei como é. Tenho certeza que o pai vai querer lhe ajudar, pelos velhos tempos.
– Ah!, fico agradecido por isso. Mas, independente de qualquer coisa, diga-lhe que mando lembranças, e que guardo boas recordações de nossa mocidade. Pergunte sobre o franguinho do Fernando. Ele vai dar umas boas risadas quando você disser isso.
E o velho riu, gostosamente. O rapaz não sabia do que se trataria o tal “franguinho do Fernando”. Seu pai certamente lhe haveria de contar essa história, elucidando os motivos dos risos do seu João. Por isso, não perguntou nada. Riu também, e sem saber por que ria.
– Mas, vejo que você vai se casar – o velho disse, notando a maneira carinhosa com a qual ele cuidava da moça, e vendo as grossas alianças que ambos usavam.
A moça de olhos brilhantes riu. Parecia feliz.
– Pois é – o moço confirmou. – Já plantei uma árvore; mas de uma, na verdade. Talvez nunca venha a escrever um livro; não creio que tenha algo realmente de valor para sua composição. Estamos esperando um filho – disse, apertando a mão da moça. – Já já ele estará chegando.
– Plantar uma árvore tem a ver com a permanência da vida sobre a terra, e o ambiente propício às gerações seguintes; escrever um livro diz respeito à transferência do saber adquirido, para o progresso em todos os sentidos; e um filho representa a nossa própria continuidade. Por eles, ou através deles, nós mesmos nos mantemos vivos, nosso inconsciente nos diz. Filhos são retratos dos pais.
– Eu não havia pensado o ditado por essa perspectiva.
O velho esboçou novo sorriso, lembrando-se de algo que havia lido em Camus: “Começar a pensar é começar a ser atormentado.” E lembrou-se de coisas mais cruas e realistas, ditas pelo existencialista franco-argelino. Mas não disse nada. Não!, não diria. Aquela felicidade deveria permanecer, até o fim, que às vezes chega depressa demais. O próprio Camus, tão novo, 47. Ele sabia do amor romântico: do tanto de absurdos sobre os quais ele costuma ser edificado, e a somatória de mentiras que asseguram a duradoura ventura. A descoberta da mecânica do arco-íris não o tornou menos bonito; mas a sua magia se foi, àqueles que não têm os olhos na magia. Não, não diria nada. A ignorância, em dados casos, é o melhor dos prêmios, e o único paraíso... que somente pode ser se se ignora-se. “Começar a pensar é começar a ser atormentado.” Ah!, que grandes e fascinantes são estes absurdos: ser, amar!
Depois de se despedir, o casal saiu abraçado, conversando alegremente sobre alguma coisa. E tudo voltou a ser como era, mas modificado.
         

sábado, 11 de fevereiro de 2012

39.





Da noção poética



Na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, Drummond conversa com Quintana:
– E agora, José? – Diz o mineiro de Itabira do Mato Dentro, referindo-se a não eleição do gaúcho de Alegrete à Academia Brasileira de Letras.
– Todos esses que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão... eu passarinho! – Responde Quintana, jocoso.
Nisso, ironia das ironias, vem uma pomba – dessas que ficam aí pelas praças, comendo o milho das prefeituras e cagando sobre os transeuntes do passeio público e sobre as estátuas que, estatuadas, nada podem senão aguentar a sorte que lhes coube – e faz sua obra bem no ombro do poeta de Sapato florido, que dispara, praguejando a vivente:
– Maltratar os poetas é indício de mau caráter; ora bolas! – E, rindo-se de si mesmo, acrescenta: – Deveria haver, como queria Bandeira, um céu para os passarinhos, e uma Sacha que os cuidasse.
Drummond, que ama as aves e sabe bem do inexiste senso moral das mesmas, fica de pé e oferece um lenço bordado de vagonite ao amigo, dizendo-lhe:
– Mas o pardalzinho morreu, não foi? Não lhe bastou ter o amor da menina. O Amor... – teologizou  O amor nunca se basta. Amor com amor não se paga; amor é estado de graça.
– O meu amor é belo como um barco! – Responde Quintana, voltando a estatuar-se.
Estão assim até hoje, em um papo que somente os dois compreendem.




quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

38.





Das estações do amor, e das canções que fazem a trilha



Sempre que comprava um CD novo, Alex nos convidava a escutá-lo, em sua casa. Eram pretextos para reunir os amigos. Conversávamos sobre bandas, e bebíamos, e jogávamos ludo, war e, acima de tudo, conversa fora. Eu já morava sozinho, desde aquela época, e adorava esses encontros. Estava com 18 anos, e Alex com 17. A maioria dos nossos amigos e amigas era por aí, mais ou menos próximos da faixa etária.
Uma vez fomos ouvir o álbum novo da Legião Urbana, recentemente lançado, O descobrimento do Brasil. Era uma tarde quente de 1993. O ar que respirávamos, comecinho da década de 1990, ainda vinha dos anos 80. Foi um tempo bom, aquele. Vejo Alex dizendo que a música que mais gosta n’O descobrimento é “essa que é o nome do disco”, e cantando junto com o Renato, imitando sua voz grave e bonita:

Ela me disse que trabalha no Correio
E que namora um menino eletricista
– Estou pensando em casamento,
Mas não quero me casar...

Cada um tinha a sua preferida. De todas, nunca decidi entre “Vamos fazer um filme” e “Giz”. Adorei as duas, de cara. Comprei o CD, o mesmo que tenho ainda hoje, tão logo pude.
Perto da casa de Alex havia uma igreja. Não lembro mais a que santo era dedicada. Ao lado dessa havia um terreno baldio, onde armávamos uma rede de vôlei e disputávamos umas partidas. E o fazíamos ao menos uma vez por semana, no final de algum dia.
Eu era apaixonado por Joquebede, filha de um pastor da Igreja Batista Regular de Crato. Ela sabia da minha paixão, e até chegamos a trocar uns beijos. Ela também gostava de mim, mas pedia que eu esperasse que ela decidisse isso tudo melhor. Eu não sabia bem o que havia de “esperar”, mas esperava.
Nas partidas de vôlei, ela sempre estava lá, me vendo jogar. Eu, como qualquer cara de 18, me esforçava ao máximo para ser o melhor, para impressioná-la, para que ela gostasse de mim. Parece que não houve tempo para a gente, porque tive de me mudar.   
Dois anos depois, quando eu já morava em João Pessoa, fiquei sabendo que Alex, certa noite, enquanto estava de guarda no Tiro de Guerra (TG 10-004), brincando de roleta russa com outros, disparou uma bala de 38 contra a própria cabeça. Tiro fatal. Nunca consegui perdoá-lo pela estupidez. Como pode fazer isso? Por que foi tão egoísta? Por que não pensou no tanto de sofrimento que poderia trazer à família, e aos amigos, e às meninas? No enterro, também me disseram, duas garotas choravam dizendo que eram suas namoradas.
Quando penso nos velhos e bons amigos, dentre outros, lembro-me do Alex, e parece que vejo as meninas chorando por aquele “amor” perdido. Para tais lembranças, “O descobrimento” tornou-se a trilha inevitável: amores findos, gente morta dizendo adeus, outro Eu que não existe mais.
Hoje, exatos doze anos distam do ocorrido. Por isso, e agora, ouvirei mais uma vez “O descobrimento...” Será minha homenagem solitária ao Alex que... Ah!, “vai com os anjos!, vai em paz...”




terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

37.





De quando uma alegria traz os seus contrários



Márcio finalmente completara os seus tão sonhados 18 anos. Sonhados porque seu pai, satisfeito que era com ele, moço muito bom e obediente, prometeu-lhe dar uma moto Honda, 250 cilindradas, “mas somente quando você chegar aos dezoito!” Chegou aos dezoito. E assim foi. A moto era linda: novinha, vermelhinha, do jeitinho que ele queria. Um sonho realizado. Mas havia outro.
Depois de ouvir as mil e tantas recomendações da mãe, Márcio ligou para Juliana, convidando-a a ir com ele, em sua nova moto, ao forte de Cabedelo, ou à Ponta do Seixas, ou aonde ela quisesse ir. Não ficaria nada mal impressionar a garota que, em sua garupa, ele pensava, lhe abarcaria pela cintura, espremendo-se no abraço. “Juliana é a menina mais linda desta cidade, Patativa”, ele me dizia, “e do universo todinho”. Que maravilha! A vida era boa. E todas as vias eram veias que apontavam para o paraíso. Era somente seguir... vivendo.  
Marcaram de sair no domingo, quando o sol não estivesse em um para cada habitante da cidade.
O ar que entrava pelos lados da viseira do capacete, acariciando gentilmente o seu rosto, dava-lhe uma agradável sensação de aventura, de liberdade, e de poder. Nas mudanças de marcha, que provocavam pequeninos solavancos, Juliana lhe abraçava, rosto colado à sua nuca. Dava até para sentir sua respiração, e seu perfume. Tudo como ele havia sonhado. Tudo como ele queria. Seus sonhos, finalmente, estavam se realizando. Só faltava agora, para que tudo fosse realmente perfeito, ela dizer que “sim”, que “quero ser tua garota pelos séculos dos séculos, amém.” Sim, faltava isso; mas não parecia mais uma coisa tão longe de acontecer. E ele ainda não entendia o porquê de ela ser assim tão, tão arredia; tão desconfiada dos próprios sentimentos.
Márcio pensava nessas coisas quando, na ladeira, no começo da descida que dá para a praia de Cabo Branco, viu um vira-lata correr para atravessar a pista. Não tinha como frear. Atropelou o animal e, ao mesmo tempo, perdeu o controle sobre a moto. Ele e Juliana foram arremessados contra o meio-fio, caindo bruscamente sobre algumas pedras que estavam no encostamento. Ela teve o rosto dilacerado e algumas fraturas expostas, no joelho direito e nos braços. Morreu na hora. Márcio, conforme laudo da polícia técnica, além de várias escoriações pelo corpo, quebrara o braço direito e a cabeça. Esta, aberta que estava, fizera com que ele perdesse bastante massa encefálica. Morreu ali mesmo, deitado de bruços, enquanto o cão traçava círculos na pista, rodando para os lados, ganindo, tentando levantar-se, com a língua para fora e o sangue escorrendo pelos cantos da boca.
Nos dias seguintes, o povo da rua não falava de outra coisa, admirados de como o destino pode ser tão negro e impiedoso.
Os pais de Márcio, numa das visitas que lhes fiz, deram-me de presente o disco que ele ouvia antes de sair para encontrar-se com Juliana. Disseram-me que não conseguiriam guardar “aquilo”, e que o Márcio gostava muito de mim, e certamente iria querer que eu ficasse com ele, porque eu gostava muito daquela banda e então... Era o álbum Ouça o que eu digo, não ouça ninguém, de 1988, dos Engenheiros do Hawaii.
Márcio tinha uma irmã com quem tive um brevíssimo romance, Mayra. Quando eu já estava de saída, na calçada, ela contou-me que o irmão tinha mania de sair e deixar o som ligado. “Nesta última vez”, disse-me, chorando, “quando fui desligar, tava lá tocando aquela música: ‘É muito engraçado que todos tenham os mesmos sonhos e que o sonho nunca vire realidade’”. Precisei abraçá-la, tentando dar algum consolo. E aí ela disse que lembrava bem disso porque a frase tinha ficado martelando em sua cabeça, como se houvesse alguma relação entre o que ouvia e o trágico ocorrido. “Como é triste que as pessoas morram tão cedo, não é?” Confirmei com a cabeça, ainda abraçado a ela, que completou: “Maldita Honda dos infernos! São as nossas maiores alegrias que também podem trazer as nossas maiores tristezas. Mas não temos nunca como saber, e precisamos nos permitir aos seus riscos.” Concordei novamente.  
Hoje fui ao cemitério do Cristo Redentor. Levei algumas flores para Márcio e Juliana, que lá estão sepultados. Sei, claro, que isso não faz diferença nenhuma para os dois; mas, para mim, sim.   


domingo, 5 de fevereiro de 2012

36.




Da indecisão quanto ao querer  



Zaratustra observou uma mulher que carregava um enorme vaso d’água nos ombros. Os homens que o escutavam notaram que ele, com os olhos, a acompanhava em seu pequenino trajeto: do poço à taberna, que distava pouco mais de vinte metros da praça. A mulher, talvez pelo excesso de peso, e na metade do percurso, esvaziou parte do conteúdo. Ao fazê-lo, porém, parece que esvaziou demais, pois fez uma cara engraçada, de frustração e descontentamento. Mas seguiu adiante.
Todos esperavam que Zaratustra fizesse algum comentário àquela cena, mas ele não disse nada. Sua atenção, agora, estava no menino que brincava com um velho e esquelético cão.
 – Não nos dirá nada sobre a mulher e sobre o ocorrido? – Alguém perguntou, incitando-o. Outros riram, esperando que o eremita se pronunciasse.
– Acaso Zaratustra é um tagarela do teatro cômico? Porque falaria de tudo, como se as palavras fossem a erva que nasce pelos campos? Por que teria um discurso pronto sobre tudo, e disposição para derramá-lo sobre os idiotas? Nada tenho a vos dizer. – Declarou, indolente.
Todos ficaram contrariados. Zaratustra parecia não corresponder, de uma ou de outra forma, ao tipo de sábio que eles desejavam. E foi aí, enquanto trocavam olhares incógnitos, que ele lhes disse, repentinamente:
– Por que necessitais de um doutrinador? Zaratustra é, acaso, um doutrinador? Precisa de discípulos sobre os quais esvazie a sua doutrina? Não é Zaratustra uma planta antes da semente? Não são as suas palavras podadeiras antes dos galhos? Quem, além dos sábios, necessita de alguma sabedoria? Pode a água derramada retornar ao vaso?
Os homens, ao que parece, irritaram-se com Isso. Pois foram embora, praguejando baixinho, e sem saberem exatamente do que o velho eremita estava falando. “Pode a água derramada retornar ao vaso?”, rum!
Encontrando-se sozinho, Zaratustra virou-se para um asno que pastava por ali, depressivo, ruminando.
– Esses homens – disse ao animal, que lhe ignorava por completo – são como aquela mulher que conduzia o vaso, e como todas as mulheres, e como todos os homens: não têm o que querem e, quando têm, não têm certeza se é isso mesmo o que querem. E quando têm certeza de que, sim, é o que desejam, já não sabem mais o que fazer com isso.
O asno, naturalmente, nada lhe disse.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

35.




Dos espaços vazios


A cada nova conquista, Rafael se sentia mais vazio, mais sozinho e mais alheio ao mundo. Ele mesmo dizia assim. E dizia que não lhe adiantava o “pegar” tantas garotas, que elas não o satisfaziam por muito tempo. Cada rosto diferente que aparecia era uma promessa de novidade a manter-se, na expectativa de algo mais feliz e duradouro que uma semana, e umas trepadas, e et cetera. No pouco tempo comum dos dois, porém, o enigma de antes, e o brilho e a graça da beleza feminina daquela, transmudavam-se, transmudavam-na, mergulhando-a na imensa galeria dos lugares comuns que são todos e todas.
“É que eu me acostumo rápido demais com a beleza”, dizia, dando a entender que a menina, por mais linda que fosse, perderia a graça, e fatalmente morreria para os seus sentidos de caçador, e para a sua reação positiva ao seu sexo.
“Vai ver que tu é gay, Rafa? Já pensou na possibilidade?”
Era uma provocação que eu e o Márcio Barcelos fazíamos, nalgumas das várias noites em que conversávamos e bebíamos, atravessando as madrugadas geladas do inverno porto-alegrense.
“Sou não, Patativa. Tenho certeza.”
“Então tu é só mais um descarado sem vergonha”, eu aproveitava, rindo.
“Isso aí mais parece autoafirmação: o cara querendo se convencer de que é o fodão, de que pode conquistar esta ou aquela e exibi-la como um troféu, para mostrar que é...”
“Viado.” Eu não ia perder a piada, não é?
Sim, era uma coisa boba, e restrita ao nosso pequenino círculo. Não representava, realmente, uma opinião sexista fundamentada, e menos ainda preconceituosa.
Certo é que, a cada “adeus, a gente se vê por aí”, Rafael sentia como se algo dentro de si também partisse, como o gás de um balão que vai murchando. O gás, na comparação, seria o seu sentimento, e ele, a bexiga. Era assim: uma parte sua partia com a menina que, uma vez, houvesse entrado em sua vida.
Era preciso encontrar alguém que, mesmo não sendo perfeita, por algum mecanismo sentimental, permanecesse. Senão, ele dizia, “daqui a pouco eu mesmo não me encontro, despedaçado em mil pedaços”. Creio que entendia o seu sentimento. Uma vez, e pelas semelhanças, evidentemente, fiz com que ele ouvisse o poema “Propiciação”, de Oswald de Andrade, do Serafim Ponte Grande - publicado pela primeira vez em 1933. No espírito do Oswald, eu mesmo li, com a voz grave e impostada:

Eu fui o maior onanista de meu tempo
Todas as mulheres
Dormiram em minha cama
Principalmente cozinheira
E cançonetista inglesa
Hoje cresci
As mulheres fugiram
Mas tu vieste
Trazendo-me todas no teu corpo.

Comentaria, ao final da leitura: “Rapaz, acho que uma hora dessas vai aparecer uma garota assim, mandada pelo Capeta, com cara de anjo e corpo de puta de luxo, te fazendo esquecer de todas as outras. E ela vai te bastar, embora a gente saiba que nunca basta. Enquanto isso não acontece, viadinho, não vá se perder por aí; e tente gostar mais de você mesmo.” Vai que o Márcio tinha razão. Sim, bem que poderia ter. Vai saber. A criança que mora em nós nunca cresce. O que cresce, realmente, são os objetos dos seus desejos.


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