segunda-feira, 18 de junho de 2012


6.






O Eu, por trás de nós oculto


Ourself behind ourself, concealed –
Should startle most.

– Emily Dickinson*


Freud era casado com Martha Bernays, com quem vivia muito bem. A única coisa que Freud detestava era a religião – a judaico-cristã, em particular – e os Estados Unidos. Conhecido como “o pai da psicanálise (Psychoanalyse)” – literalmente: “falar sobre (ou estudar) a alma” –, Freud acreditava que era possível compreender e tratar certas doenças mediante a análise da alma, da mente1. Ateu proclamado, também acreditava que as pessoas eram constituídas de mente e corpo, e ; sendo a mente uma parte do corpo. Isso quer dizer que um problema mental pode, de várias maneiras, atingir o corpo; e o tratamento mais adequado para o tal problema pode não ser aquele que é administrado diretamente ao corpo, mas à mente. Freud comparou o seu trabalho à arqueologia: ele escavava a mente humana em busca de coisas ali enterradas, encobertas, inconscientes2. Foi assim que ele desenvolveu as teorias do inconsciente e do complexo de Édipo, dentre outras.
Numa viagem que fez a Paris, entre 1885 e 86, com a finalidade de observar os trabalhos de Jean-Martin Charcot – que acreditava poder fazer sumir os sintomas dos seus pacientes histéricos, sob os efeitos da hipnose; e também plantar sintomas em pessoas saudáveis –, o jovem Freud se convenceu de que o problema de muitos daqueles pacientes (como a paralisia, por exemplo) não eram físicos, mas mentais. Ele, todavia, não adotaria a hipnose como tratamentoembora tenha se utilizado dela por um curto período. Permitindo que as pessoas simplesmente falassem dos seus problemas, Freud desenvolveu o método da livre associação: por meio do que dizem, as pessoas, inconscientemente, revelam algo sobre a raiz (ou o fundamento) dos seus problemas psíquicos.
Caso famoso, de livre associação, é o do “homem dos ratos3 – que Freud descreveu em suas Notas sobre um caso de neurose obsessiva, texto de 1909. O tal homem, muito gordo, decidiu que tinha de perder peso. Deixou de comer doces, passou a correr ao sol e escalar montes até ficar exaurido. Acontece que a palavragordo”, em alemão, é “dick”; e Dick era o apelido de Richard, um primo seu, americano. O “homem dos ratostinha ciúmes de Dick, que demonstrava demasiado interesse por uma garota que era o amor da sua vida. Assim, livrar-se da gordura significava, para ele, livrar-se de Dick. Por meio de sofridas dietas, ele não castigava a si mesmo, mas a Dick, seu oponente.
Nós também, inconscientemente, fazemos isto o tempo todo: o outro, que nos oprime, nós o punimos em nós mesmos. É assim que, quando você ouve uma canção que lembra um amor perdido, ou chora por um amor que nem chegou a serseu”, você está se auto comiserando, punindo o outro que está em você – seja na saudade dolorida ou na raiva reprimida, recalcado. O mesmo acontece quando alguém bebe ou tem crises de sono. Na embriaguez ou no sono, tenta-se esquecer um problema qualquer, uma dor qualquer. Essa “fuga”, ou punição do outro em nós, acontece de muitas e variadas maneiras – até mesmo no prêmio da boa ação, ou na virtude4. Por cima de tudo está em questão a nossa própria sobrevivência, física e mental.
Isso tudo pode explicar, talvez, o problema da “mulher dos gatos”. Ela amava João, que não a amava, porque somente conseguia pensar em Alice. Quem ficou sabendo dessa sua paixão, e sofreu por isso, porque a amava, foi Augusto. Um dia, numa conversa que a “mulher dos gatos” teve com João, ele retirou-lhe todas as esperanças de um futuro romance. E ela viu o seu horizonte turvar sob um céu encarvoado, de uma opacidade inenarrável. Como doía! O mundo todo, num instante, perdeu a cor. Ela, tempos depois, ainda com as palavras de João voando por sua mente, e sabendo dos sentimentos de Augusto, retirou-lhe todas as esperanças de um futuro romance. E ele viu o seu sol dizer adeus por sobre o horizonte, e a noite fria desabar sobre o seu mundo. O crepúsculo. Ah!, o crepúsculo!, a hora mais triste do dia; metáfora de um adeus.
A “mulher dos gatos”, inconscientemente, condenando Augusto ao desterro, condenava não a ele, exatamente – e nem o fazia por maldade –, mas, de modo indireto, vingava-se de João, punindo-o pelo que fizera a ela. O mando da situação, ao contrário da cena do capítulo anterior, agora lhe pertencia, estava ao seu favor, sob seu controle. Assim, e de algum modo, ela reassumia a sua posição no jogo romântico. Aqui, na arrogância ou na modéstia, é o Eu quem manda, quem mais aparece. A modéstia:

A modéstia – diz Schopenhauer – é uma virtude inventada principalmente para uso dos velhacos, porque exige que cada qual fale de si como se fosse um; isso estabelece uma igualdade de nível admirável e produz a mesma aparência, como se não houvesse, em geral, mais que velhacos.5

É claro que não há uma precisão científica sobre tudo isso, e nem uma regra sobre a ação – o mesmo vale para o homem que bebe, para esquecer um infortúnio amoroso, ou outro (que alguém possa, falsamente, associar a algo que não envolva amor). Muitas das teorias de Freud, como Richard Webster mostra, foram construídas sobre erros e juízos equivocados6. Seja como for, amar ou ser amado faz parte de um jogo que, geralmente, perdemos: ganhamos e, aí, nos perdemos de nós, no outro (que é a inautenticidade); perdemos e, daí, o sofrimento, a dor da rejeição. Ninguém gosta de perder. Mas, no jogo romântico, não há opção. É, novamente, o pêndulo de Schopenhauer.7
Por trás de tudo, emergindo do id, está o nosso Ego, amando ou odiando (punindo) o Outro, nosso objeto. No final, é a nós mesmos que punimos – e tudo por amor. 





* “O ‘eu’, por trás de nós oculto, / É muito mais assustador.” (DICKINSON, Emily. Poemas escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 57. [Col. L&PM Pocket, 436]).
1 “O principal da terminologia técnica da psicanálise”, diz Laplanche e Pontalis, “é obra de Freud.” (LAMPLANCHE, Jean. Prefácio. In: _____. Vocabulário da psicanálise / Laplanche e Pontalis. 4. ed. São Paulo: Martins Fones, 2001. p. VI). “Freud empregou inicialmente os termos análise, análise psíquica, análise psicológica, análise hipnótica, no seu primeiro artigo As psiconeuroses de defesa (Die Abwehr-Neuropsychosen, 1894). Só mais tarde introduziu o termo psycho-analyse num artigo sobre a etiologia das neuroses publicado em francês.” (LAPLANCHE, 2001, p. 385).
2 Mirando o inconsciente (das Unbewwusste, unbewusst), convém diferenciar psicanálise de psicologia. “O nome é as ideias de Sigmund Freud são tão familiares ao público em geral que a psicologia é às vezes identificada com a teoria psicanalítica, denominação genérica para as ideias freudianas a respeito da personalidade, da anormalidade e do tratamento. A teoria psicanalítica é, naturalmente, apenas uma teoria psicológica. [...] Freud nunca tentou influenciar a psicologia acadêmica.” (DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1983. p. 15). “Freud definiu a Psicanálise como um conjunto de ideias sobre o funcionamento psíquico, uma técnica de tratamento e um meio de investigar o inconsciente. Nesta definição englobou tanto a pesquisa quanto a terapêutica. No entanto, ele próprio afirmou que tais aspectos não são necessariamente coincidentes e que os objetivos de pesquisar e de tratar podem ser separados. [...] Ele abriu [...] avenidas para todos aqueles que quisessem utilizar-se de suas descobertas e aplica-las de modos diferentes dos seus.” (MOREIRA FILHO, Alonso Augusto. Prefácio. In: _____. Psicoterapias de inspiração psicanalítica. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. p. 7). A psicanálise, como a psicologia, “não é um corpo de conhecimentos nem unificado, nem completo”. (DAVIDOFF, 1983, p. 5). Isso é evidente, em meu texto.
3 FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: STRACHEY, J. (Org.). Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda. 1975. p. 159-325. v. 10. 24 v.
4 Como no verso do Hamlet, de Shakespeare, citado por Schopenhauer: “Acima de tudo sê fiel a ti mesmo: / Disso se segue, como a noite ao dia, / Que não podes ser falso com ninguém.” (SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de conhecer a si mesmo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 16). Não há como não ser fiel a si mesmo, por um ou outro viés.
5 SCHOPENHAUER, Arthur. Arte del buen vivir. Madrid: EDAF. p. 101. (Col. Biblioteca EDAF de Bolsillo, 47).
6 “Ainda que a relação de Freud com o conhecimento se ‘assemelhe’ à de um profeta messiânico, ele mesmo reivindicou, de maneira triunfal, o título de ‘cientista’. A psicanálise, ele escreveu, ‘colocou-nos em posição de dotar a psicologia de fundamentos similares aos de qualquer outra ciência, tal como a física’. A crença de Freud de que estava construindo uma ciência genuína é crucial para qualquer entendimento da maneira pela qual a psicanálise se desenvolveu. Foi seu implacável e redutor cientificismo que, somado à sua compulsiva necessidade por fama, levou Freud cada vez mais longe em um labirinto de erros.” (WEBSTER, Richard. Freud. São Paulo: Editora UNESP, 2006. p. 53. (Col. Grandes Filósofos).
7 A nossa “vida [...] oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio”. (SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 402. [IV, 57]).


segunda-feira, 11 de junho de 2012


5.





Do Amor, que é um demônio



Katherine Mansfield foi contemporânea de Lou Salomé, vivendo praticamente no mesmo período. Ela, de 1888 a 1923; Lou, de 1861 a 1937. Katherine nasceu na Nova Zelândia, e quase toda a sua educação foi feita em Londres, onde conviveu com autores como D. H. Lawrence, Virginia Woolf e Aldous Huxley, participando ativamente de tal círculo intelectual. Lou nasceu na Rússia, educou-se na Itália, Alemanha e Zurique, e teve Freud e Nietzsche entre os seus mais destacados mestres. Foi casada com Carl Andreas, mas relacionou-se afetivamente com Paul Rée e René-Marie Rilke, cujas influências – incluindo Freud e Nietzsche – fizeram surgir algumas das suas obras fundamentais, a exemplo de A humanidade da mulher (1899), Reflexões sobre o problema do amor (1900) e O erotismo (1911).
A vida amorosa de Katherine, embora pareça mais movimentada1, é menos glamorosa – pela menor importância dos seus homens. Quem, em tal quesito, até hoje, esteve à altura de Lou? Por qual mulher homens como Rée e Rilke – o mais importante poeta da Alemanha, em sua época – enlouqueceram e, talvez em um momento de lucidez ou de loucura piorada, deram cabo de suas próprias vidas, em resposta a um amor não correspondido? Por ela, Nietzsche amargou horrores... resignado e infeliz. Rilke enlouquece e, no fragmento de um poema, de 1913, pergunta-lhe:

Porque não és tu, Amada,
uma estrela entre as estrelas?
[...]
Que eu, degenerado para a minha morte,
por fim como uma luz me apague
num interstício do teu coração.........2

São grandezas cósmicas e cômicas, que fazem rir o espectador que vê de longe.
Werther3, em companhia de Charlotte S., a mulher amada (e proibida4), contempla-a, respondendo-lhe abobado – após a pergunta: “Não queres também dormir?”–: “Enquanto vir esses teus olhos abertos”, ele diz, “não há perigo de eu fechar os meus.5” E, no dia seguinte: “O sol, a lua e as estrelas podem fazer os seus movimentos como bem entenderem, já não sei mais quando é dia ou noite, e o mundo inteiro se dilui à minha volta.6” Outro dia, de quando dançou com ela, escreve ao amigo Wilhelm: “Eu já não era humano. Ter nos braços a mais adorável das criaturas, voar com ela como o vento, vendo tudo se dissolver ao redor...7” É aquele amor que cega, faz cegar. 
Dois amores dados à grandeza, e ao limite do suportável, e vencidos. Fora de tais limites, ambos partem para os remédios que lhes parecem únicos, contra a grande doença8. Rilke morreu de leucemia, em Valmont, na Suíça, em dezembro de 1926. Segundo alguns, teria se ferido em um espinho de rosa, enquanto estava no jardim do castelo Muzot. Leucêmico, viu a ferida agravar-se ao ponto de, em pouco tempo, ter os braços muito inchados, envenenados. Werther, que já mostrara sinais claros do pensava fazer – “Não vejo nenhuma outra imagem a não ser a dela e tudo o que vejo no mundo à minha volta, relaciono com ela. [...] Adeus! Não vejo outro fim para esta miséria, a não ser o túmulo” (Carta a Wilhelm; 30 de agosto de 1771)9 –, concretiza o intento em dezembro do mesmo ano, deixando uma enorme carta à amada. Um trecho:

Que importa que Albert seja o seu marido? Marido! Seria apenas neste mundo... e neste mundo seria um pecado amá-la, querer arrancá-la dos braços dele? Pecado? Está bem, e vou punir-me por isso; saboreei esse pecado em toda a sua volúpia celestial, o meu coração sorveu a força e o bálsamo da vida. Desde esse momento você é minha! Minha, ó Lotte! Vou na frente! Vou ter com o meu Pai, com o seu pai. Quero me queixar com ele e, até você chegar, ele irá me consolar, voarei ao seu encontro para agarrá-la e ficarei ao seu lado na presença do infinito, num eterno abraço.10
     
Um homem real, desiludido e angustiado; um personagem de ficção, atormentado, decidido e obstinado. O amor romântico é uma coisa perigosa, aos homes (Werther, Romeu, Tristão, Rée, outros) e às mulheres. Para elas, se não traz a morte física, por seus infortúnios muito naturais, traz um tipo de morte social – como se mostrará.
Nas cartas e diários de Katherine – e principalmente: porque é a realidade da sua vida, e não uma novela, obra de ficção11 –, o desejo de autonomia, numa época em que o feminismo ainda estava por nascer, aproxima-a de Lou. No final da carta de 23 de março de 1915, endereçado ao marido J. M. Murry, depois de haver largado o amante (Francis Carco), com que estivera por um tempo, Katherine afirma:

Não sou mais uma menina – sou uma mulher. Eu quero coisas. Será que algum dia as terei? Escrever a manhã inteira, almoçar rapidamente, voltar a escrever à tarde e então jantar, fumar um cigarro e depois ficar sozinha de novo, até a hora de dormir – e todo este amor e esta alegria que lutam para escapar – e toda esta vida secando como o leite num seio idoso. Oh, eu quero vida. Quero amigos, gente à minha volta – uma casa. Quero dar e receber.12

Sua condição de mulher (dona de casa) e de escritora, às vezes entra em choque; como aparece noutra carta enviada ao marido, no verão de 1913, respondendo às suas reclamações:

Eu sou mesmo uma tirana, Jack querido! Ou você diz isso para me provocar? Acho que sou uma administradora ruim; e a casa parece tomar tanto tempo se não for cuidada com algum método... Quando tenho de limpar o dobro de vezes, ou de lavar coisas desnecessárias, sinto horrível impaciência e desejo de estar escrevendo. Tantas vezes nesta semana ouvi você e Gordon conversando, enquanto eu lavava louça! Bem, alguém tem que lavar a louça e preparar a comida. Do contrário, “não há nada nesta casa para se comer a não ser ovos”. Sim, eu odeio, odeio, odeio fazer essas coisas, que você espera de sua mulher, da mesma maneira como os outros homens aceitam. [...] Estou me detestando, hoje. Detesto esta mulher que ‘cuida’ de você, corre de um lado para outro batendo portas, entornando água – toda desarrumada, com a blusa para fora e as unhas sujas.13
    
Não é estranho quando, em seu Diário, nas anotações sobre um domingo em Paris (16 de maio de 1915), depois de haver passado por algumas relações amorosas e experimentado um pouco da tão sonhada liberdade, ela anote: “A vida com as outras pessoas me parece um borrão, uma mancha: é o que acontece quando estou com J. [O marido]. Quando estou sozinha, acho tudo maravilhoso: a vida em todos os seus detalhes, a vida.14” Antes disso, ainda em maio de 1908, e depois da leitura que fizera do livro de Elisabeth Robins, Come and find me (Venha e me encontre)15, lançado nesse mesmo ano, ela faz anotações sobre a emancipação feminina:

Sinto que agora realmente posso imaginar do que as mulheres serão capazes, no futuro. Até agora não tiveram oportunidade. Falar de nossos dias iluminados, de nosso país emancipado – pura tolice! Estamos firmemente presas a grilhões de escravidão que nós mesmas modelamos. Sim, agora percebo que nós os fizemos e temos de tirá-los.16

O amor romântico, até então, é uma armadilha contra a liberdade das mulheres – aos lhes conceder filhos e a responsabilidade de criá-los –, por mantê-las presas a uma vida doméstica, roubando-lhes o tempo, a ação refletida e a possibilidade de emancipação. Era preciso – Katherine soube-o cedo – não amar tal amor, pelos seus resultados. A “nova mulher” haveria de saber lidar contra ele, que é parte dos “grilhões de escravidão que nós mesmas modelamos”. O ideal do amor romântico, assomado a algumas doutrinas políticas e religiosas, com sua moral masculino-milenar, era mesmo muito útil à manutenção de tal domínio de um sexo (o masculino) sobre o outro. Tais ajustes, em conluio, formavam “a doutrina desesperadamente insípida, segundo a qual o amor é a única coisa no mundo que é ensinada e posta dentro das mulheres, de geração em geração, e que nos detém de um modo tão cruel.17” Assim, ela conclui de modo panfletário e militante: “Devemos nos livrar desse demônio – e então virá a oportunidade de felicidade e libertação.”18





1 Pelo número de amantes que teve, e pelas idas e vindas com o marido, o escritor inglês e crítico de literatura John Middleton Murry (1889-1957). Murry publicou mais de 60 livros, inúmeros ensaios e resenhas sobre literatura, questões sociais, política e religião. Depois da morte de Mansfield, Murry editou toda a sua obra.
2 De dois fragmentos, em: RILKE, Rainer Maria; ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Correspondência. Rio de Janeiro: Editora Anima Produções Artísticas e Culturais Ltda. [s.d.]. p. 63-4. No famoso livro de Irvin D. Yalom, Lou é apresentada qual uma deusa: “Ali estava ela! [...] Aquela bela mulher, alta e esguia, envolta num casco de peles, marchando altivamente em sua direção. [...] Era uma mulher de extraordinária beleza: testa altiva, queixo forte e bem esculpido, olhos azuis brilhantes, lábios cheios e sensuais, e seus cabelos louro-prateados, negligentemente penteados, se reuniam em um coque alto, expondo-lhe as orelhas e o pescoço longo e gracioso.” (YALOM, Irvin D. Quando Nietzsche chorou. 28 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. p. 11).  
3 O personagem, fictício, é tratado como real, para efeito de análise psicológica. 
4 Pois é noiva de Albert, “um homem muito distinto que, por causa da morte do pai, saiu de viagem para colocar os seus negócios em ordem e se candidatar a um cargo muito importante”, alguém lhe diz (GOETHE, Johann Wolfgang von. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. p. 27). “Albert é um homem honrado e estou praticamente noiva dele”; agora é a própria Charlotte que o confessa (GOETHE, 1999, p. 33).
5 GOETHE, 1999, p. 35.
6 GOETHE, 1999, p. 36.
7 GOETHE, 1999, p. 32. Lançado em 1774, Werther é uma das primeiras obras de Goethe, e altamente autobiográfica – mesmo que o seu autor tenha tido o cuidado de trocar os nomes e os lugares mencionados, e acrescentado relatos fictícios, como o suicídio de Werther, no final.
8 No Werther, “tudo acaba convergindo para uma declaração sobre o estado do mundo e um sintoma de enfermidade. Onde Goethe [...] analisou sua própria paixão como histórico de uma doença”. (MEYER, Hans. Goethes Werther nach zweihundert Jahren. In: Frankfurter Allgemeine Zeitung [FAZ], 9/11/1974).
9 GOETHE, 1999, p. 66-7.
10 GOETHE, 1999, p. 142.
11 Nas palavras de Vânia Falcão: “A leitura das cartas que escreveu ao marido John Middleton Murry, no período de 1913 a 1922, publicadas em 1951, podem complementar admiravelmente a compreensão dessa escritora e de suas visões do mundo literário e artístico do qual fez parte.” (FALCÃO, Vânia L. S. de Barros. Katherine Mansfield. In: MASINA, Léa. [Org.]. Guia de leitura: 100 autores que você precisa ler. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 168. [Col. L&PM Pocket, 636]).
12 MANSFIELD, Katherine. Diários e Cartas. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 53-4.
13 MANSFIELD, 1996, p. 37-8.
14 MANSFIELD, 1996, p. 56.
15 Elizabeth Robins Pennell (1855-1936). Come and find me é uma sequencia de The magnetic north, publicado quarto anos antes, em 1904. Atriz, dramaturga, romancista e sufragista, Elizabeth Robins é uma das precursoras do feminismo.
16 MANSFIELD, 1996, p. 30-1.
17 MANSFIELD, 1996, p. 31.
18 MANSFIELD, 1996, p. 31.


sexta-feira, 8 de junho de 2012


4. 





Da Vontade objetiva de todo amor, de todo amar




“O bebê que toma o peito, você tira o peito, ele chora, está infeliz. Você lhe devolve o peito, ele se acalma. Há anos uns e outros buscaram nosso peito. Queríamos um ‘bom objeto’, como dizem os psicanalistas, que pudéssemos possuir, que nos saciasse, que fizesse que nada nos faltasse... Que azar: somos desmamados, essa história acabou, ponto final.” São palavras tristes, mas verdadeiras, de André Comte-Sponville.1
Por que os homens gostam tanto dos peitos das mulheres? Porque eles procuram, aí, aquilo que não podem mais ter em suas mães. E as mulheres? O que elas mais procuram, nos homens, é a segurança; e há, nisso, muito bem sedimentado, toda uma história de dominação: psicobiológica, política, social, et cetera. Um homem rico, mesmo carente de atributos estéticos favoráveis, é, por tal fortuna, externa, propaganda de uma segurança que o “ouro” pode dar. Claro que isso pode parecer machista e feio, pela objetividade; não é, porém, superficial. No final das contas, não e nem esse homem feio (o mesmo vale para o bonito) e nem o seu dinheiro que ela quer, mas a segurança. Como se vê, há mais: por trás das intenções, das afecções, disso e daquilo que movem as nossas vontades e decisões.  
Os homens querem “voltar” às barrigas das suas mães, aos seus peitos (primeira fonte de alimento e segurança); as mulheres, quando não desejam isso em seus pares (lesbianismo), miram recursos externos, artificiais, psicologicamente adequados ao seu conforto e segurança – mesmo que não saibam, não pensem sobre isso. Por outro lado, e como antítese dinâmico-existencial, há a Vontade de vida2, e o instinto animal que, em favor da espécie, deseja mais que a segurança. Não há nenhum amor aí, em nenhum dos casos – ao menos o romântico, isto é: idiotizado, maquiado, sublimado. Por outro lado, e como é mais comum e natural, há o amour de soi. E como não haveria de haver? É somente o que há; é tudo o que há. 
Quando, em 1910, Freud tratou sobre o Complexo de Édipo, descreveu-o como o desejo secreto e inconsciente que a criança tem de “matar o pai”3. É que o pai do menino, de três a cinco anos, é um seu rival em relação ao peito materno. A fase seguinte – que viria depois desta, a fálica – marcaria para sempre a vida (psicológica) do indivíduo macho, “devidamente são”: desapegar-se da mãe, reconciliar-se com o pai, encontrar, para amar, uma que seja idêntica à mãe, e não a própria. “Essas tarefas”, Freud escreve, “cabem a todos, e é notável a pouca frequência com que lidamos com elas de maneira ideal”4. Sua mãe lhe despeja no mundo, e agora é você que está, por toda a vida, grávido dela. 
Outro dia um amigo me disse, jocoso, olhando a mãe novinha que passava: “Se eu tivesse uma mãe dessas, até hoje estaria mamando”. “Mas”, eu lhe disse, “dependendo de outro gosto, outro cara pode dizer a mesma coisa da tua mãe.” “Eiii, rapaz!”, ele disse, me esmurrando de mentirinha; e ficou nisso.
Os bons leitores de John Fante sabem que seus livros são altamente biográficos. Em um deles, de 1938 – seu primeiro romance publicado –, seu nome é Bandini, Arturo Bandini; um menino de doze anos:

Era Arturo e adorava o pai, mas vivia no temor do dia em que cresceria e seria capaz de bater nele. Venerava o pai, mas achava que a mãe era fraca e tola.
Por que sua mãe era diferente das outras mães? [...] Tinha doze anos e tomar consciência de que sua mãe não o excitava fez com que a detestasse secretamente. Sempre observava a mãe com o rabo do olho. Amava a mãe, mas a odiava.5

Pobre e desmamado Arturo, sem o peito da mãe, sem o seu sexo. Era preciso buscar outros peitos, outras fontes lícitas de excitação. Talvez a mãe Jack Hawley, ou a de Jim Toland, ou a de Carl Molla6, ou talvez... Rosa7. Mas, ah! Não é a beleza que buscamos, afinal. A beleza é tão somente o atrativo, a propaganda. Buscamos é a vida, atiçados pela Vontade que, nos animais – e principalmente nos que não pensam sobre essas coisas – é cega, faz cegar. Já ouviu aquilo de “o amor é cego?, é por aí.
Por trás do desejo erótico-estético está o desejo de segurança, da saciedade daquela fome mais primitiva – que está acompanhada de todos os nossos vícios e paixões, domados ou não8. No fim de tudo, reverbera silenciosa a voz do nosso instinto mais básico, comum a todos os bichos: autopreservação. Aquilo que ocorre ao bebê, ocorre também conosco: não ter um peito deixa-nos infeliz... é a tristeza. Quando o peito não nos falta, a vida está assegurada... somente o tédio, agora, nos assedia. Em De rerum natura, Lucrécio faz uma afirmação dolorosa: “Giramos sempre no mesmo círculo sem nunca poder sair... Enquanto o objeto de nossos desejos permanece distante, ele nos parece superior a todo o resto; se ele é nosso, passamos a desejar outra coisa, e a mesma sede da vida nos mantém em permanente tensão...9” E daí Schopenhauer, valendo-se de Lucrécio, dizer que a “vida [do homem], [...] oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio”10. E Sartre, n’O Ser e o Nada: “O prazer é a morte e o fracasso do desejo”11, e é por isso que “o desejo está fadado ao fracasso.12” Nessa historia toda, parece que não temos muitas escolhas, ou escolha.
A razão, por esse viés, nunca é suficiente, libertadora. Acima de tudo, da própria razão, da própria autopreservação, ela: a Vontade. A única liberdade estaria no suicídio, mas isso seria uma vontade contra a Vontade e, logo, um reflexo da própria. 





1 COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 114-5.
2 “O querer tende à vida (olho que se abre para a luz), desde as mais elementares formações até as mais complexas. Onde houver Vontade, haverá vida. Por conseguinte, para o autor [Schopenhauer], a expressão ‘Vontade de vida’ é um pleonasmo, e nada melhor a simboliza, em seu ímpeto tempestuoso, do que os órgãos genitais. Esses são o seu ‘foco’. A vida quer viver, nem que para isso o particular tenha de ser sacrificado em favor do universal (como muitas vezes, pensa-se, ocorre nos casos de paixão amorosa, ou dos animais em luta pela fêmea, e ainda de parceiros mortos após a cópula).” (BARBOSA, Jair. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 34. [Col. Passo-a-Passo, 16]).
3 “Quando um garoto (com idade de dois ou três anos) entra na fase fálica de seu desenvolvimento libidinal, ele tem sensações prazerosas em seu órgão sexual, aprende a obter prazer pela estimulação manual e vê-se como amante de sua mãe. Ele deseja possuí-la fisicamente das maneiras que imaginou por suas observações e intuições sobre a vida sexual, e procura então seduzi-la mostrando o seu órgão masculino com orgulho. Em poucas palavras, com o despertar da masculinidade, ele procura ocupar o lugar de seu pai diante de sua mãe. [...] Seu pai transforma-se então em um rival que atrapalha seu caminho e do qual ele gostaria de se livrar.” (FREUD, Sigmund. In: STRCHEY, James [Ed.]. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. Hogarth Press / Institute of Psychoanalysis, 1953-74. p. 189, 423-4. vols. 23, 15).   
4 FREUD, apud RAEPER, William; SMITH, Linda. Introdução ao estudo das idéias: religião e filosofia no passado e no presente. São Paulo: Edições Loyola, 1997. p. 91.
5 FANTE, John. Espere a primavera, Bandini. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. p. 26-7.
6 “A mãe de Jack Hawley o excitava: tinha um jeito de lhe dar bolinhos que fazia seu coração ronronar. A mãe de Jim Toland tinha pernas sensacionais. A mãe de Carl Molla nunca usava nada além de um vestido riscadinho; quando varria o chão da cozinha ele ficava na varanda dos fundos em êxtase, vendo a sra. Molla varrer, os olhos ávidos engolindo o movimento dos seus quadris.” (FANTE, 2003, p. 26-7).
7 A colega de classe, no colégio, por quem ele delirava: “Uma voz como um violino suave, emitindo vibrações através de sua carne. Lá estava ela, diante dele – sua bela Rosa Pinelli, seu amor, sua garota. [...] Oh, Rosa, como você é maravilhosa. Eu te amo, Rosa, te amo, te amo, te amo! [...] Oh, olhem para os seus cabelos! Olhem para os seus ombros! Olhem para aquele bonito vestido verde! Ouçam aquela voz! Oh, você rosa!” (FANTE, 2003, p. 38).
8 E como afirma Frank Cioffi, nas anotações que faz ao manuscrito do livro de Richard Webster – Freud, escrito para a The Great Philosophers Series, editada por Ray Monk e Frederic Raphael, e publicada pela inglesa Taylor & Francis Group, em 2003 –, mencionado pelo próprio: “[Freud tem o mérito de ter tido] a coragem de desenterrar o subconsciente, solo de todo egoísmo, cobiça, luxúria, destrutividade, covardia, preguiça, ódio e inveja que cada um de nós carrega como herança do mundo animal.” (CIOFFI, apud WEBSTER, Richard. Freud. São Paulo: Editora UNESP, 2006. p. 8 [Col. Grandes Filósofos])
9 LUCRÉCIO. De rerum natura, III, 1080-1084; citado em: COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 29.
10 SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 402. (IV, 57).
11 SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1969. p. 467.
12 SARTRE, 1969, p. 466.


domingo, 3 de junho de 2012


3.






Glória, vergonha e desejo de status



A glória, a vergonha e o uso que fazemos dessas paixões, são os temas dos artigos 204, 205 e 206 da terceira parte d’As paixões da alma (“Das paixões particulares”), de René Descartes, escrito e publicado em 1649.

O que recebe aqui o nome de glória”, ele diz, “é uma espécie de alegria fundada no amor que se tem por si próprio e que provém da opinião ou da esperança de sermos louvados por alguns outros.1

Ah!, que esplêndidos são os franceses nessas análises da alma humana: Descartes, Stendhal, Montaigne, Camus, Sartre, Comte-Sponville, et cetera. Nosso desejo da glória, como nosso desejo de status (Alain De Botton), é o desejo de sermos amados, notados por alguma posição superior que ocupemos, nos elevando acima do nível comum dos simples mortais2. A vergonha, é o contrário: o fracasso diante do intento falho, da conquista frustrada, do plano falido; o olhar recriminatório por uma ação malfada. É, nas palavras de Descartes, “uma espécie de tristeza também fundada no amor a si próprio e que provém da opinião ou do temos de sermos censurados”.3 Pascal diz algo muito semelhante, também ligado à finalidade do status: “Somos tão presunçosos que desejaríamos ser conhecidos por toda a terra, e até pelas pessoas que vierem quando nela não estivermos mais, e somos tão vãos que a estima de cinco ou seis pessoas que nos cercam nos diverte e nos contenta.”4
No início e no começo de tudo, está o Eu (consciente). É daí que nos lançamos de encontro ao Outro e ao Mundo, nossos objetos – para o bem ou para o mal, e para o nosso bem, de um jeito ou de outro5. Nenhuma ação nossa – incluindo a autopunição, a comiseração ou mesmo o suicídio (como outro francês, Pascal, dizia6) – visa à infelicidade, mas somente o nosso bem, a nossa felicidade (Platão)7, finalidade de todas as nossas ações (Aristóteles)8.
Descartes acerta quando diz que ambas as paixões – glória e vergonha – têm o mesmo uso (do modo que falamos); erra, porém, quando afirma que esse mesmo uso está no fato de ambas “nos incitarem à virtude, uma pela esperança, outra pelo temor”9. A virtude, aí, ainda é aquela que o bom filósofo – segundo Aristóteles – mira como prêmio, confundindo-a com a própria sabedoria10. Estamos no século XVII, e a Modernidade nascente é filha, filha e dependente, da Antiguidade e Antiguidade Clássica. Não é fácil ser original e revolucionário.   
Acontece que Descartes, também, não conseguiu fugir do socratismo-platônico, e nem da influência moral da cristandade-ocidental. Esse é o grande erro de quase todos os grandes escritores que são a favor ou contra o cristianismo; é o erro vulgar dos que mantém concepções dualistas sobre o certo e o errado, o bem e o mal, et cetera. Nietzsche foi o autor que mais se aproximou de tal proposta, lançando-se para Além do bem e do mal, anunciando uma filosofia para o futuro11; com que sucesso?
É preciso criar uma nova maneira de tratar sobre as paixões, contemplando o Eu não como coisa nociva à alguma virtude moral, ou contrário a ela, mas como inevitabilidade dinâmico-natural do humano – e condição unívoca: além do bem e do mal. O amor romântico, nisso tudo, é apenas uma interface da coisa toda. E quando falo de amor, não é nenhuma outra coisa que não a Vontade, mascarada pelo idealismo romântico como coisa supralunar, transcendente, etc.
Novamente a afirmação, essencial: ideias fazem amor, pessoas fazem sexo. Viver na mentira é uma opção, mas não é a melhor – por mais que os apelos de todos os lados digam o contrário.





1 DESCARTES, Les Passions de l’Âme (§ 204). Na tradução que utilizo (de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior): DESCARTES, René. As paixões da alma. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 236. (Col. Os Pensadores). 
2 “Nossa posição na escala social é o cerne desse desejo”, Botton afirma, e completa: “porque a concepção que temos de nós mesmos depende muito do que os outros pensam de nós. Excetuando uns raros exemplos (Sócrates, Jesus), precisamos de sinais de respeito do mundo para nos considerarmos toleráveis”. (BOTTON, Alain de. Desejo de status. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. p. 8). E, mais adiante: “Dinheiro, fama e influência podem ser avaliados mais como provas de amor – e um meio de se chegar a ele – do que como fins em si mesmos.” (BOTTON, 2005, p. 15).
3 Passions (§ 205). DESCARTES, 2006, p. 237.
4 Pens., § 148. PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 77. [Col. Os Pensadores]).
5 Algo bem próximo ao que é dito por Cioran em sua História e utopia: “Viver verdadeiramente é recusar os outros; para aceita-los, é preciso saber renunciar, violentar-se, agir contra a sua própria natureza, enfraquecer-se; só se concebe a liberdade para si mesmo; só se estende ao próximo à custa de esforços extenuantes.” (CIORAN, E. M. Histoire et utopie. Paris: Editions Gallimard, 1960. p. 12). É evidente que a má compreensão de tal individualidade, como nota Henry Méchoulan, pode ter consequências terríveis (cf. MÉCHOULAN, Henry. Liberdade de consciência e liberdade de religião. In: _____. Dinheiro & liberdade: Amsterdam no tempo de Spinoza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. p. 116-17). Eu não chegaria a tanto, e nem levarei o tema adiante – por hora. 
6 “Todos os homens procuram ser felizes; não ha exceção. [...] Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que vão se enforcar.” (Pens., § 425. PASCAL, Pens., 1998. p. 137).
7 No Eutidemo (278e), Platão, antes de Aristóteles e muito mais ainda de Pascal, perguntava: “Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes?” E a resposta, de tão evidente, como nota o próprio Platão, quase não vale a resposta: “De fato, quem não deseja ser feliz?” (Eutidemo, 278e). Daí a afirmação de Comte-Sponville, “a busca da felicidade é a coisa mais bem distribuída do mundo” (COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2), parafraseando Descartes – no primeiro parágrafo d’O Discurso do Método: “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada”. (DESCARTES. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 65. [Col. Os Pensadores]).
8 “Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais, embora as escolhamos por si mesmas (escolhe-las-íamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de excelência, nem, de outro modo geral, por qualquer coisa além dela mesma.” (Et. Nic., 1097b, 5. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 125. [Col. Os Pensadores]). E, na introdução d’A política: “Todas as ações dos homens têm por fim aquilo que consideram um bem.” (ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 1).
9 Passions (§ 206). DESCARTES, 2006, p. 237.
10 “O prêmio da virtude é a virtude mesma” (virtus sibi ipsi praemium), Aristóteles afirma (Et. Nic., 1106b-1107a, 1-3) e, nisso, inaugura uma nova fase à filosofia, que irá descambar na afirmação da certeza do Eu individual (Agostinho, Lutero, Descartes). “Com Aristóteles”, diz Roberto Rossi, “a filosofia começa a se estruturar como um todo unitário, uma visão completa do real, do homem e do seu destino, um conjunto articulado logicamente, um sistema indiscutivelmente modelar para a filosofia. Nele o pensamento filosófico seguinte procurará ‘aprisionar’ a realidade e com ela a verdade, chegando a identificar esta última com o próprio sistema, o pensamento com o seu objeto. A verdade assume, assim, as características imanentes do instrumento racional e do seu uso correto. Ela não parece mais alter do filosofar, mas é identificada com ele e com a sua articulação e conclusão coerentes”. (ROSSI, Roberto. Introdução à filosofia: história e sistemas. São Paulo: Loyola, 1996. p. 46).
11 No prólogo de Para além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft, 1886), escrito em junho de 1885: “O cristianismo é platonismo para o ‘povo’.” Nietzsche denuncia o fracasso da empresa cristã, viciada nos erros da infantilidade humana; era preciso amadurecê-la, torná-la adulta; mas não havia como apressar as etapas, desconsiderando o fator “tempo”: salto cego adiante... e ele dizia haver nascido póstumo. Aliás, o título do livro, acima, já é, em si, mensagem e anúncio dessa boa-nova, “evangelho sem evangelho”. (NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 8).


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