terça-feira, 27 de dezembro de 2011

23.



De toda a esperança que habita um "não"


Angélica, dois ou três meses depois que Alberto largou da mulher, praticamente colou nele, insistindo em mantê-lo por perto, como, antes, não podia. E mandava e-mails, recados pelo celular, e ligava tarde da noite, e ia ao trabalho dele com as desculpas mais ingênuas que se possa imaginar, e sem fazer qualquer força para esconder as intenções, as investidas. Alberto, porém, cheio de medos de encarar uma nova relação, depois dos traumas da anterior, não conseguia decidir se preferia – ao menos por enquanto – Angélica ou a solidão. Talvez se arriscasse a uns casos mais leves, fortuitos, sem aqueles compromissos que são adquiridos quando se gosta de alguém, com sentimentos. É!, talvez pudesse ser assim, pensava. Pelo menos até que tivesse alguma certeza sobre o que realmente queria. Mas o coração humano é terra estranha e, por ele, andamos em caminhos escuros e sinuosos, mal sinalizados.
Resultado da insistência de Angélica, Alberto começou a observá-la com alguma complacência, olhando-a de modo carinhoso, como ela, a ele, parecia olhar. Lástima! Quando finalmente decidiu que ia ter uma conversa definitiva com ela, e que queria levá-la mais a sério, e assumir o que sentia, ela lhe disse que, agora, estava com algumas dúvidas sobre “essa nossa relação”, e “eu preciso de um tempo só para mim.”
E deixou de ligar, de mandar e-mails, de aparecer no trabalho de Alberto. Sumiu. Ele, sem entender o motivo de tão repentina mudança, decidiu “fechar o coração para balanço”, como há tempos vinha querendo fazer. O que teria ocorrido para que a louca mudasse tanto, do vinho à água? Perguntava. A resposta, ninguém sabia; nem ele.
“Meu Deus!”, disse-me outro dia, narrando o fato aqui descrito, sem floreios nem iluminuras, “quanta frescura!, quanta putaria! Rapaz, deveria existir uma lei contra essas coisas, viu? Tomar no cu!”

* * * * *

Moral da história: “A esperança de um destino nunca é tão forte quanto em nossa vida amorosa.” (BOTTON, Alain de. Petite philosophie de l’amour. Paris: DENOËL, 1997. p. 7). 


segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

22.



Dos antídotos do tempo



Dos amores de Aristeu, Alice foi o que mais lhe trouxe dores, aflições e uma somatória enorme de noites mal dormidas. É que nada dói tanto quanto um amor não correspondido. Aos olhos apaixonados de Aristeu, ela era a pessoa mais linda e perfeita deste Mundo, e dos outros mundos também. Agraciada pela natureza, Alice tinha longos, louros e ondulados cabelos, e um rosto angelical que, certamente, provocaria a inveja de Penélope, ou de Helena, ou de qualquer outra dessas beldades que aparecem nas histórias antigas. Ao menos era o que Aristeu acreditava, de tão apaixonado que estava. O sorriso de Alice, a um tempo, era plácido como o de um anjo, e sensual, doce e quente, como de uma meretriz.
“Ela sorri para mim, Patativa”, contava, embasbacado, “e eu me desmancho todo.” 
Mas, como em tantos e tantos casos, a figura de Aristeu não causava à sua amada o mesmo impacto que a dela, nele. E tanto que, tempos depois, e depois da desilusão de havê-la perdido, Aristeu fez de tudo para encontrar nos braços de Carmem aquilo que não havia conseguido com Alice. Linda, esperta e engraçada, Carmem soube administrar os conturbados sentimentos de Aristeu, deixando-o cada vez mais apaixonado e dependente: da sua atenção, dos seus beijos, dos seus abraços, do seu sexo. Mas – Ah!, há sempre um “mas...” – Carmem, por forças da situação, teve de mudar para Campinas, com os pais. Nova dor; novo sofrimento. Alice, tempos mais tarde, casou-se com Mauro, “um sujeito gordo e mal educado”, conforme os juízos do amargurado Aristeu.
Distante de Carmem e do poder entorpecedor da sua prodigiosa sedução, Aristeu voltou a pensar e sofrer por Alice, a quem via esporadicamente, aos acasos da sorte, ou do azar, quando era ou havia de ser, por aí. Sua moral, porém, dizia-lhe, torturando-o, recriminando-o: “Fique na sua, idiota! Ela agora é uma mulher casada.
Uma paixão mal resolvida é, conforme a vasta literatura romântica, uma cicatriz permanentemente aberta, seja no corpo ou na alma. Um grande amor nunca parte sem deixar estragos, e nunca retorna sem causá-los.
Aristeu somente conseguiria a cura para tal doença depois de muito tempo; quando, por causa do seu ofício, teve de ir morar em Recife, onde conheceu Marília, com quem casou e teve dois filhos.
Sete anos se passaram até que ele, de volta a João Pessoa, desejou rever Alice, paixão antiga. “Somente para saber como ela andava, e pelos velhos tempos”, pensava. Não foi difícil localizá-la. Marcaram um café, uma conversa. Encontraram-se na casa dela mesmo, já que nada os impedia; nada. E qual não foi sua surpresa ao ver como a “sua Alice”, outrora tão linda e tão perfeita, estava assim, agora, irreconhecível: gorda, muito gorda; feia, velha, um bucho intragável. A vida, sem sombra de dúvida, lhe havia maltratado, e maltratado muito.
No pequenino diálogo que tiveram, como têm os bons amigos que se reencontram depois de muito tempo, Alice lhe dizia a todo instante, como a desafiar o seu humor: “Nossa, Aristeu! Você não mudou nada, menino; nadinha!” Ele, sem poder dizer o mesmo, somente pensava, agradecido: “Meu Deus! Meu bom Deus!, do que foi que me livrastes!”
No amor, repare só que coisa estranha: quem perde, quase sempre ganha; como dizem Edu Lobo e Cacaso, na letra de “Lero-lero”, no disco “Camaleão”, gravado em 1978. 

* * * * *

Moral da história: o tempo tem o curioso poder de cicatrizar feridas, desfazendo as ilusões de um amor que se pensou eterno. No final, em sua velha casa, habitam os fantasmas e os retalhos rotos que não podem ser costurados na arqueologia sentimental do novo, que se impõe.
Moral da história (2): o amor romântico sonha com eternidades. A vida real, sem máscaras, oferece apenas momentos, o agora-mesmo, e a certeza dos retalhos que sobrarão.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

21.



Das imagens do tempo, e das miragens


Ribeiro Couto é autor de Diário de amor de um moço delicado, conto ambientado no subúrbio carioca dos anos 50. No referido, Cláudio Pereira apaixona-se por Olímpia, filha de dona Albina, que é uma megera, uma víbora peçonhenta. Cego de amor, Cláudio é capaz de rasgar a cidade inteira para ter com a moça, que é pobre e mora longe. Tudo gira em torno de Olímpia, a mulher ideal que ele tanto procurava e de quem, um dia, doente de amor, pode, enfim, dizer: “Encontrei a felicidade”. Ah!, a felicidade!
Como em quase todas as boas histórias de amor, o tempo é um vilão oculto, mas muito presente; terrivelmente presente. Parecia não passar entre a despedida do último encontro e a perspectiva do próximo. Sem Olímpia, nada tinha graça, nada tinha leveza, tudo era uma tristeza triste que ia apagando aos poucos as cores do Mundo. Mas acontece que sempre há uma contraparte natural, em que a história – como no ensinamento do Evangelho, onde é dito que, depois da bonança, vem a tempestade – dá uma guinada, para o bem ou para o mal. E geralmente é para o mal. É quando se desfaz a ilusão que alimenta o sonho de um “amor ideal”, de uma felicidade feliz, encontrada e fácil de ser mantida. Ah!, a felicidade!  
Viriato Vieira, amigo de Cláudio, aconselha-o que vá às mulheres fáceis, aos cabarés - lugares em que ele pode iludir os sentidos, adormecer a memória, “entorpecer a imensa dor” de amar assim. Remédios que Cláudio julga inúteis. Não vai. A imagem de Olímpia, amada e dolorosa, é uma tortura em sua memória sentimental.
Ah! Você não sabe? O amor vive da memória do objeto amado. Ama-se a imagem do outro que mora em nós, em nossa fantasia. Ela aparece em tudo o que vemos, e ouvimos, e pensamos... Uma loucura! E unimo-nos a tal objeto por meio da imagem, da lembrança da imagem que flutua em nosso delírio fantasioso, nosso desejo do real – que é quando a imagem confunde-se (funde-se com...) a um corpo, metamorfoseando-se no real, no físico. Não por acaso Tomás de Aquino, definindo o real, ou a verdade lógico-conceitual, diz que ele/ela não está nem nas coisas e nem no intelecto, mas na adequação entre uma e outra: “veritas est adaequatio speculativa mentis et rei”. Modernizada a questão, Heidegger nega que tal verdade seja primariamente a adequação do intelecto com a coisa. Faz isso ao sustentar que, de acordo com o primeiro significado grego, a verdade é a des-coberta, ou des-velamento – que é como ele traduz o substantivo grego alétheia. O tema, complexo, exige mais que um interregno na leitura psicológico-sentimental de um conto antigo. Seja como for, e para o nosso fim, consintamos que, mais que o físico, ama-se a imagem. Assim, quando esta imagem erótica (motivadora do desejo) se vai, a sua representação físicaque seria a sua realização metamórfica – não resiste. É relação sem desejo, sem paixão. Pois foi justamente isso o que aconteceu com o amor “ideal” que Cláudio dizia ter por Olímpia. Mormente, e a bem da verdade, ajudado por dona Albina, a “enorme senhora gorda”, mãe da moça.
Ribeiro Couto alimenta o ideário coletivo da sogra maldita. Cláudio, conhecendo a megera e mantendo viva a imagem dolorida de, quem sabe, uma traição de Olímpia – ela usava um colar e uma pulseira que não foram dados por ele e, pobre que era, não poderia tê-los comprado –, somente pensava em fugir, sozinho, para Minas, para Goiás. Ah!, como as imagens se impõem sobre a nossa fé!, sobre a nossa razão! “Uma imagem vale mais que mil palavras.” E isso vale principalmente em relação aos outros, sobre quem pouco podemos intervir na ação. Afinal, a imagem não é uma coisa, mas um ato da consciência. As pessoas são o que fazem, e não o que pensam que fazem. Mas o juízo é sempre nosso, enquanto ação responsável-individual; o Outro, nosso objeto: de amor, de ódio, de indiferença. 
Cláudio, de Minas, quer ir para mais longe, para Goiás. “Como será que se vai para Goiás?” Não adiantam as distâncias. Distanciamo-nos do objeto, mas a sua imagem estará sempre conosco, emparedada em nossa memória. Mais cedo ou mais tarde, como em um flashback de um passado de muito ácido, ela retorna.

* * * * *

Moral da história: tenha cuidado, muito cuidado com quem você permite que entre em sua vida, em sua memória sentimental; querendo ou não, e para sempre, isso estará com você, mesmo que não esteja.


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

20.



Do amor ideal e dos amores possíveis


Maria Eloísa, depois de um ano de casada, largou do João Carlos. Seis meses depois, quando estive em São Paulo, ela me apresentou o seu terceiro namorado pós-divórcio.
“Estou procurando alguém que seja ideal para mim.” Confidenciou-me, como quem se justificava.
“Ora, Eloísa”, respondi, na maior serenidade estoica, e armado com o realismo aristotélico, “se você encontrar alguém que seja ideal para você, então esse alguém não poderá ser seu; porque, senão, será alguém real. E você deve saber que alguém real nunca é o que a gente quer que ele, ou ela, realmente seja”.
Eloísa ficou confusa, fez gestos de quem estava tonta, e riu da brincadeira. Depois esboçou um chorinho, como se a ficha tivesse caído.
“É foda!, né, Patativa? Parece que a gente nunca acerta essa porra!, ou, quando acerta, não sabe que acertou. E a gente vai vivendo assim, nessa eterna insatisfação.”
“C’est la vie, mon petit.” Disse-lhe, enquanto ela me abraçava, soluçando. “E é bom que seja assim, para que a gente aprenda a respeitar os amores possíveis.” Não lembro se disse mais alguma coisa. 
Eloísa, semana passada, enviou-me um convite para o seu novo casamento. O nome do homem que vem impresso, nele, não é daquele a quem fui apresentado. No envelope branco, enfeitado de maritacas, está escrito, com a letra dela: “Meu lindo!, mais vale um pássaro na mão do que dois na contramão; não é?”
Melhor definição de “amor possível”, impossível.
A vida quer viver, e a Vontade da vida impera sobre tudo.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

19.



Da autêntica inautenticidade



Rafael, num desses sites de relacionamentos, conheceu Carla. Depois de muitas e agradáveis conversas – como ele mesmo me disse –, decidiram se encontrar. Garota inteligente, cabeça feita, futuro promissor, conquistou fácil o coração do cara, com quem passou a dividir também sua cama, por algumas noites.
Acontece que os amigos de Rafael, gozadores que eram, e socráticos – pelo menos na parte da ironia –, quando perguntavam pela moça, nem ao menos mencionavam seu nome – que é a nossa identidade social mais próxima –, mas referiam-se a ela como “a gorda”; embora ela não fosse exatamente isso que eles diziam. “E aí, Rafa”, perguntavam, aos rizinhos miúdos, “não vais te encontrar com a gorda hoje?”
Dada a repetição da mesma fala, dos mesmos risos, Rafael, que até então resistira a crer que Carla fosse gorda e que isso e que aquilo, começou a observá-la com os olhos dos amigos; e isso pesa muito na contabilidade existencial de cada um. Tanto que, não por acaso, Sartre, falando da inautenticidade, diz que o eu inautêntico é aquele que me faço fundamentado no olhar do outro, e que é por meio deste Outro que me vejo. Ou, definindo o status da liberdade que apregoava, afirmava: “Para saber uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro”, e daí, provavelmente, a sua máxima mais conhecida: “Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim.”
Certo é que, para Rafael, nos dias que se seguiram, aquela admiração de outrora, que era sua, não sendo também dos outros – pelo menos dos seus amigos mais próximos –, começou a emudecer, desbotar; e Carla já não lhe dava mais tesão. E embora Rafael nada soubesse sobre Sartre, sabia que, “sem tesão, não há solução”, como diz Roberto Freire, introduzindo o conceito na cultura brasileira, no livro homônimo.
Já não bastava achá-la admirável. Não bastava gostar do seu papo-cabeça. Era preciso, mais que isso, o Desejo – porque o que havia, mesmo, era o desejo do desejo dos outros... Beleza e virtudes não bastavam. Não à sua situação amorosa. Carla teria que encontrar outro Rafael, ou um outro Outro.

* * * * *

Moral da história: o meu querer é o querer do outro. Fugir disso é a liberdade, e uma definição para o Eu autêntico. Quem, porém, é ou pode ser, realmente, livre? Nada mais autêntico, nada mais inautêntico. Eis a contradição! Eis o homem!  


domingo, 18 de dezembro de 2011

18.



Da caridade



Amanhecia, e Zaratustra sentia o frio gelar seu rosto, penetrando até os ossos. Mas não era o suficiente para dobrá-lo. Na praça, para onde havia descido, procurou lugar para sentar, e ver surgir o Sol que, a julgar pelas cores da aurora, não demorava chegar. “Há tantas auroras que não brilharam ainda”, pensou, lembrando-se do Rigveda. Passava por ali um homem que ele nunca vira. Talvez um comerciante. Em sua espontaneidade e gentileza, o homem lhe ofereceu um cobertor de lã, dizendo:
– Recebe-o. É um frio de gelar a alma, e a cores do dia que vai chegar.
– O que é isto? – Zaratustra perguntou, sem emoção. – Não sabeis que os bichos têm as peles de que precisam? A natureza, prodigiosa, dota-os de tudo o que eles, enquanto vivos, carecem.
Zaratustra fitava os olhos do desconhecido. Este, nada entendendo, nada disse. O eremita lhe acudiu.
– Quando foi que perdemos nossa primeira pele? Quando acreditamos haver domado a natureza, a nossa e a Outra, que a todos domina. Em nossa naturalidade, naturalizamos o artifício, lutando pela vida. Viver, porém, é andar sobre uma ponte que sempre se rompe, e nos lança no grande abismo: do nada ao esquecimento. E não sabemos bem como chegamos aqui. A memória presente, do tolo, é promessa vã da Vontade, da perspectiva que, amante do passado, está grávida de sonhos de... ar: desejo de eternidade, de uma felicidade que não acabe nunca.    
Nessa mesma hora aproximaram-se de Zaratustra a sua águia e a sua serpente. O homem observou a cena e, novamente, nada falou. Os primeiros raios de Sol tingiam o céu sobre a linha ondulada do horizonte longínquo.
– O que eu digo e faço – Zaratustra continuou –, é cedo; cedo demais. O Tempo está grávido de uma aurora absoluta, para depois da noite absoluta; mas a noite mais fria ainda não veio. O dia, porém, adiantado e furioso, planeja o seu fim prematuro. Dia, luz. Luz: ventre e aborto.   
– Que quereis dizer com isso tudo? – O homem inquiriu.
Que a caridade do caridoso é exercida sempre em função de si mesmo. Todos os homens são ventres, e o mundo todo, massamorda. Se pudessem, eles devorariam o Mundo a dentadas e, por fim, a si mesmos; de uma mordida só. Beberiam os oceanos, comeriam as constelações.    
– Minha ignorância deve ofendê-lo, senhor – o homem disse, confuso. – Somente o teu bem foi que desejei quando, vendo-te no frio, ofereci-te o cobertor. Tuas palavras, porém, têm o peso da dúvida, do enigma profético.  
Ora! – disse Zaratustra –, não vês? O bem que desejas a mim é o mesmo que a ti, somente a ti, por igual medida retributiva, desejas. Não é este o mais dos mandamentos entre os cristãos, e não é este o provérbio mais antigo entre os mestres do Ocidente? Trata-se de uma moral que não posso compartilhar; eu, o amoral dos dias que estão por vir. O que nos insta a um bem menor senão o ter em vista um bem maior? O Outro é o meio, objeto para fim do nosso próprio fim.
E, virando-se para o nascente, disse ao Sol, como quem a desfiá-lo:
Que seria de ti, ó Sol, se não fossem aqueles sobre os quais derramas a tua luz? Mas os que se banham nela, nela também se embriagam; e de tal modo que nem percebem: ao invés de te louvarem, deveriam louvar a eles mesmos, que te percebem e sabem que percebem; que dão valor e desvalor às coisas que percebem. Tu, tão grande, tão poderoso, nem ao menos sabes que és, quem és.
Nisso, o homem se retirou, deixando o cobertor aos pés de Zaratustra, a quem julgava louco e ingrato. Aquela conversa toda, definitivamente, não era para ele.
– A caridade é sempre carente, como o amor do que ama. – Concluiu Zaratustra, olhando em direção ao homem que se distanciava.
E fez-se o dia.
E tudo estava claro.


sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

17.



Dos excessos



Joelza não perdia um capítulo daquela novela. Maldita novela! Quando o galã, estrela principal, depois de tantos transtornos e sofrimentos, finalmente conseguiu encontrar a suaalma gêmea”, Joelza quase morre aos prantos, tão grande a emoção. Mas quando ele a beijou, recitando mil poemas e fazendo duas mil promessas de amor eterno, Joelza teve um estranho, muito estranho, acesso de ciúmes, misturado com frustração.
– Que bosta é isso, gente?! Tá tudo errado! Não era p’ra ser assim, esse final.
Praguejava, irritada, limpando o nariz choroso e apontando para a TV, igual torcedor fanático brigando com o juiz que rouba seu time.
Eduardo, que era forçado a ver a novela inteirinha, do começo ao fim – senão Joelza não lhe dava atenção, ou, se desse, não prestava, porque ficava um porre, insuportável –, percebeu a cena de ciúme e, já no limite da chateação, estourou:
Que é que há, hem, Jojoca?! Está com ciúmes do cara, é?
Mas é que ela não merece ele, Duduuu. Olha como eles são contrastantes! Depois de tudo o que ela aprontou, do modo como o desprezava... E agora, olha isso!, olha isso: toooda derretida. Ah!, ele merece coisa muito melhor...
– Tipo quem, Joelza? Você?
– Ah, Dudu! Vai à merda! Que merda!
Quer saber de uma coisa? Vá à merda você, minha amiga! Sua baranga tresloucada!
E Eduardo saiu da sala, bufando. Não bateu a porta, porém. Nem se despediu da mãe da moça que estava lá, enfiada na cozinha. Como pode suportar isso por tanto tempo? Como poderia suportar isso por mais tempo ainda?
Mais do que depressa aceitou que, aquele tempo todo, esteve enganando-se a si mesmo, enganando Joelza e o bucho que era a senhora sua mãe. Esta, em relação a ele, sempre se portou de modo frio e indiferente, desde o início do namoro, que durava mais de um ano e meio.
O final da novela foi assim: a estrela principal se casando com a outracomo são, geralmente, os finais das novelas –, e um monte de gente, numa cena cafona de festa de casamento, celebrando a feliz união do “príncipe com a princesa”, mantendo a tradição idiota das histórias infantis em que os dois “vivem felizes para sempre”. A novela que virou a vida de Joelza, porém, não terminou ainda.
Depois que perdeu Eduardo – que começou a sair com Juliana, sua ex-melhor amiga, e com quem se casaria, oito meses depois –, as cenas começaram a passar muito lentas, em longos, chatos e tediosos capítulos. No seu mundo, antes tão firme e sólido, tudo dança em suspensão e incertezas.

* * * * *

Moral da história: o mundo real é uma bosta mesmo; mas, prefira-o.
Moral da história (2): sua vida é sua melhor novela, viva-a; seja seu personagem principal.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

16.



Do modo com que se trata o amado, a amada


Na crônicaAnálises”, no livro Filandras (Record, 2002), Adélia Prado conta a história de Diolinda, “por quem João Jeremias foi a vida inteira apaixonado”. Ah!, e quem não sabe? No papel, tudo cabe; ou, como no provérbio português: “Papel aceita tudo.” Devidamente reafirmado por outro, popular entre os ingleses: “A mocidade e a folha de papel em branco guardam qualquer impressão.” A verdade, porém, pode andar bem longe, e de modo dissimulado. 
“João Jeremias foi a vida inteira apaixonado [por Diolinda]?” Não foi, não! Realizada a paixão, Jeremias não sabia como tratar a mulher que, desde cedo, soube se impor sobre a situação conjugal, assumindo uma posição antes ignorada por ele. Sabedora do amor de Jeremias, e da sua frouxidão, Diolinda se aproveitava: tudo era chato, tudo era feio, tudo era ruim; tudo o que ele fazia, com a mais cândida e melhor das intenções era, para ela, nada.
Uma vez, quando Jeremias, atendendo ao desejo da mulherque disse preferir que ele a chamasse de Nair, Maria Nair –, chamou-a de Nairinha, assim, no carinho diminutivozinho, não deu certo: Diolinda “ficou enfurecida, pondo em ridículo a paixão dele, que se recolheu a nunca mais ousou...”
Por fim, a Adélia, que bem conhece a alma feminina, dá uns conselhos aos Jeremias que existem por aí, aos montões:
Mulher, mansa ou brava, quer marido firme. Marido tem que proibir alguma coisa, nem que seja do tipo: ‘quero minha correia dependurada neste prego e ninguém me tire ela daqui’. Porque senão as mulheres ficam muito infelizes e começam a ter maus pensamentos de querer ficar viúvas, de sumir no mundo, de dar os filhos pra avó criar, essas coisas. Natureza de mulher é de obedecer, de admirar, de servir, natureza de formiga, de abelha operária e gata no borralho, senão, meu Deus, não sobra espaço pra ela virar Cinderela”. Palavras da Adélia. 


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

15.



Dos perfumes...


Era sábado, dia de ir à casa de Marília, como de costume.
Daniel vestiu a camiseta preta que havia comprado na C&A, dividindo o pagamento em três vezes no cartão. Calçou os sapatos, olhou-se no enorme espelho que sua mãe lhe dera, fazendo poses modelares para ver se estava bom assim... Estava. Tomou outro banho de perfume e saiu incensando toda a casa. Também, Marília falava o tempo inteiro que amava aquele seu cheiro, e que ele fazia com que ela, ao fechar os olhos, se imaginasse deitada em um campo repleto de flores silvestres, com borboletas coloridas voando para lá e cá, e abelhinhas zunindo inofensivas, e isso e aquilo... Depois ela o abraçava, como se quisesse empurrá-lo para dentro de si, seu ramalhete de flores colhidas, arranjado de miosótis, papoulas, alfazemas, centaureas, malmequeres, margaridas, crisântemos...
Vinte minutos depois, trânsito bom, chegaria, com sua moto Honda 250 cilindradas, à casa da moça, no bairro universitário de Castelo Branco, em João Pessoa. Ela, porém, estranhamente, ainda não havia chegado.
Tudo bem, Dona Nice; eu espero.” Disse à mãe de Marília, que não estava nem um pouco tranquila com a demora da filha, e com “essa droga que telefone que ela não atende”.
Horas depois, depois de uma dezena de telefonemas, a notícia: Marília havia sido atropelada por um motoboy. Este, na sua irresponsabilidade e por seu medo, negou-lhe qualquer socorro; sumiu sem deixar vestígios. O corpo, agora identificado, aguardava a família no Hospital de Emergência e Trauma, na Avenida Orestes Lisboa, sem número.
A mãe da morta desmaiou; o pai amaldiçoou a todos os motoboys de João Pessoa, e do Mundo; e Daniel, desde então, não suporta mais o cheiro daquele perfume que Marília tanto amava. Sua fragrância agora tem, para ele, o cheiro acre da morte e dos dias tristes, da dor inominável, da angústia indescritível, e da saudade sem jeito.
Não é estranho que os cheiros nos tragam tantas imagens, e tantas recordações?


sábado, 10 de dezembro de 2011

14.


Do sentir, e do sentimento


Laís olhou para Alice, dizendo: “I will miss Youuu...!” Assim mesmo, esticando o “u” no final, enquanto a abraçava. Alice estava chorosa, e o beijo de Laís era doce e triste, porque era beijo de adeus, de “até... quem sabe?”
- O que tu quer dizer com “I will miss You!”?
- Tu não sabe?
- Saber, eu sei. Quero saber é o que há por trás do sentir, do dizer o que se sente. Porque uma coisa é a fala, e outra o sentido.
- Sentirei sua falta - Laís repetiu, olhando fundo nos olhos de Alice, separando palavra por palavra. - E é isso; e é muito, e é tudo. Sem mistérios; sem análises metalinguísticas; sem sentidos obscuros, nem entrelinhas. Porque sinto falta do que amo. E amo muitas coisas; embora você não seja uma... coisa. Você sabe o que quero dizer, baby.
Alice, talvez emocionada, talvez disfarçando a pequenina emoção, disse, jocosa:
- Pois eu não sentirei falta nenhuma de mim mesma.
Uma semana depois, estava em Alagoas, morando com os pais. E as duas, depois de vários telefonemas, de vários recados pela internet, foram inverno e outono, porto e navio, distância e esquecimento. Não saberiam dizer a última vez que um “oi, como vai?”.
            * * * * *
O amor é um modo de dizer a Vontade, encobrindo-a. Sim, porque a Vontade precisa do olhar – mesmo o interior, reflexo do exterior, gravado na memória –, que é o sentido mais aguçado do Desejo. Pouca valia tem a faca e o queijo, sem a fome; como diz Adélia Prado, em O coração disparado (1978): “Não quero faca nem queijo. Quero a fome”. E é por essa fome que comemos o Mundo, e as coisas do Mundo...  


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

13.


Da sutileza das incógnitas, e do que elas fazem  


Ela estava tão linda! Mais do que era, normalmente. Como era linda! Como ele era abençoado! Jantavam, enquanto a delicada Isobel Campbell cantava Let the good times begin. O mundo, apesar de tantas barbaridades, parecia oferecer, afinal, alguma beleza, alguma perfeição. Fazer amor com ela era como mergulhar num paraíso idílico: quente, doce... deliciosa sensação sem nome.
O tempo passou voando, e agora era hora de levá-la para casa.
No caminho, entre as centenas de veículos que entopem o Retão de Manaíra, ele notou que ela olhava para um cara que dirigia um Sedan prateado, que lhe sorria. Não que aquilo lhe incomodasse; não. Mas lhe incomodou vê-la disfarçar tão mal o, talvez, flerte despretensioso. Não disse nada. Algo dentro dele, porém, como uma taça de cristal que se quebra, quebrou-se. “Ah, Capitu!”, pensou, “por onde andam as tuas crias?” Como ele podia amá-la tanto, e ela, mesmo que por um instante, não fosse somente sua?
Ela não entendeu quando, dias depois, ele disse que ligava, e nunca mais ligou, nem aceitou suas ligações.
À semelhança do atormentado Bentinho, ele não tinha e nunca teria qualquer certeza de alguma traição, de qualquer espécie. Tinha, porém, absoluta certeza da sua própria dúvida, que crescia como um monstro, alimentando-se da sua paz – e onde há uma dúvida assim, tudo dança suspenso no ar, diluindo-se ao mais leve sopro do mais leve vento erradio.
“Você deveria ter conversado com ela”, alguém lhe disse.
“E o que eu diria?”, respondeu.
“É porque você não a amava, realmente!”
“Eu tinha certeza que sim.”
“E agora?”
“Agora eu não tenho mais certeza sobre nada.”
O silêncio, às vezes, tem o peso das montanhas, e a convulsão das nuvens tempestuosas. E é por ele que os amores, às vezes, se desfazem: ao sutil toque do acaso, ou das nossas estupidezes.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

12.


Das simetrias



A perfeição é a medida exata da simetria. Dizemos “belo” àquilo que é simétrico. Ser simétrico, portanto, equivale à aceitação da ideia de um padrão absoluto a partir do qual tudo no mundo pode ser medido, mensurado, e para onde tudo retorna, respondendo como derivado, sombra, simulacro. Um esquema mental perfeito demais, para ser verdade – e o modelo do Ocidente. Mas, e exatamente como afirma o excitadíssimo e delirante Dean Moriarty (Neal Cassady), no início da segunda parte de On the road (1957), de Jack Kerouac: “Desde os gregos, tudo tem se firmado sobre bases falsas. Você não pode desbundar com essa geometria e esses sistemas geométricos de pensar.” Expressões como: “esse arranjo está lindo!”, por exemplo, afirmam a nossa crença na existência de um modelo estético a partir do qual a beleza pode ser dita mais ou menos bela. Percebendo ou não, fazemos afirmações que oscilam entre esse mais ou esse menos, dito como ausência, sem se dizer; e fazemos isso a todos os instantes, e para tudo. Assim fazendo, assumimos um platonismo que nem de longe chegamos a pensar como estrutura fundante-fundamental de nossas ideias mais, ou menos, filosóficas.
Essas crenças, não poucas vezes inconscientes, aparecem disfarçadas nas coisas mais elementares do nosso cotidiano: “O amor é lindo!”; “Você viu como ela falava alto? Que falta de educação!”; “O dia hoje está muito quente!”, et cetera. A ideia de simetria, afincada à crença do modelo absoluto – perfeito –, esta às ordens da Vontade, à qual nos submetemos, mesmo quando conscientes de sua imperiosa tirania.  
Foi levado pelas perfeições simétricas que julgava haver encontrado em Joana, que Igor casou-se com ela; apaixonado confesso. “O casal mais lindo da cidade!”, diziam os/as colunistas. “O filho desses dois vai ser uma coisa do outro mundo!”, diziam as tias velhas, segurando as suas taças cheias de Peter Brum.
Dois anos depois, a coisa do outro mundo nasceu, e deram-lhe o nome de Melanie.
Nascida de oito meses, Melanie trazia as marcas assimétricas que malogrosamente herdara, com toda a certeza, da irônica Fortuna, e jamais dos seus belos e jovens pais.
Por algum efeito químico, talvez, a criança, filha de pais brancos, branquíssimos, nascera moreninha, assim meio parda, meio... algo assim, indefinido. Os cabelos, ralinhos, eram crespos e de difícil acesso. Um ano e meio depois, ainda não conseguia dizerpapai”, “mamãe”. Igor, com o pouco amor paternal que lhe sobrara depois de vindas tantas desventuras, começou a desconfiar se a sua mulher, ao gerar tal “criaturazinha”, não lhe houvesse traído com um desses unzinhos que existem por , dados ao sexo fácil, oferecido... apesar de todo o amor que dizia sentir por ele. Joana, por sua vez, desconfiava se o marido, talvez, não portasse alguma dessas doenças genético-biológicas, que somente se mostram muito tempo depois... apesar de os médicos asseverarem que, não. Depois de Melanie, recusou-se terminantemente a ter outros filhos. “Uma frustração dessa magnitude é o suficiente para a tristeza de uma vida toda”, dizia-se a si mesma.
Igor, porém, queria porque queria outro filho, ou filha, “para reparar as feridas que Melanie trouxera”, pensava, em mortal silêncio, com medo de estar blasfemando contra o bom Deus, que dá vida a todas as coisas.
De tanto insistir com Joana, acusando-a de racista, preconceituosa,  et cetera, et cetera e tal, vieram brigas sobre brigas, tristezas sobre tristezas. No aniversário de dois anos de Melanie, e quando faltavam apenas sete dias para o terceiro aniversário de casamento dos dois, decidiram que não dava mais para viverem juntos, não daquele jeito.
Melanie ficou com a mãe, e com os avôs maternos. Igor voltou a morar com os pais, e com as tias velhas, fofoqueiras e frustradas. Essas, assimétricas que eram, nunca arranjaram casamento, e por isso davam todo o amor que tinham ao sobrinho infeliz, como se, ele, fosse o filho que não tiveram. Ademais, contentavam-se em ver novelas e dar conta da vida alheia. Na intimidade doméstica, perguntavam ao sobrinho, perplexas: “Como é que tudo pode findar assim, querido; como?”
São as simetrias, minhas tias; são as malditas simetrias...”, Igor respondia, bêbado e estressado.


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