segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

45.






Das 1001 receitas infalíveis de amor e embriaguez




Quando estive em Santiago do Chile, no final da primavera de 2009, e depois de pegar informações sobre onde encontrar boas librerías pelo centro da cidade, próximas ao hotel onde me hospedara, fui informado de um “servicio de librería pequeña, pero muy variada y muy buena” – dizia a recepcionista, apontando para a rua que ficava a minha frente, recomendando que eu andasse três quarteirões sempre em frente e, depois, dobrasse à esquerda e seguisse por mais outros dois e, “pronto, o senhor logo vera a placa.”
Era, de fato, uma livrariazinha pequena, mas de aspecto simpático, convidativo e aconchegante. Não havia clientes e, talvez por isso, fui realmente muito bem atendido.
Eu procurava por algum livro de culinária, que deveria ser presenteado ao Rafael – um amigo de Florianópolis, que fazia Direito na UFRGS, e com quem eu dividia um pequenino apartamento na Lima e Silva, em Porto Alegre. A estante de culinária, infelizmente, não era a mais sortida.
Quando eu já não tinha fé de que encontraria algo que realmente quisesse comprar, dei de cara com um livrinho de título chamativo: 1001 recettes amour sans faille et l'ivresse (1001 receitas infalíveis de amor e embriaguez), de autoria do divertidíssimo Henry Lucerne, de quem já havia lido Um dia perfeito para o suicídio (Éd. de Mégare, 1998) e As begônias de Matilda Cortese (Seuil, 2004). Tive de, no mínimo, folheá-lo.
Henry Lucerne, diferentemente de outros pensadores franceses, não afunda os pés no terreno fértil do existencialismo, mas mantêm-se, como nenhum outro, na escola satírica de Voltaire – atualizado, porém, e sem ser refém do mofo histórico-literário. Meu francês, mais afiado que atualmente, logo denunciou o chiste do autor: não havia 1001 receitas, apenas 45, em forma de máximas ou fragmentos curtos, e pequeninos comentários aos mesmos. Estava na prateleira de culinária por engano; tinha de ser. A loja aceitava pagamento em dólar, e o livrinho saiu por apenas $ 7,00.
Mais tarde, no hotel, meus olhos caíram nesta “receita”:

Para bem conservar o amor: guardá-lo na geladeira. 
(LUCERNE, Henry. 1001 recettes amour sans faille et l'ivresse. 2. ed. Paris: Éd. de Mégare, 1987. p. 21).

Dois anos depois, quando eu já havia voltado a morar em João Pessoa, e depois de consultar alguns sebos na Estante Virtual, comprei duas edições diferentes do “1001 receitas...” Na tradução inglesa (Covent Garden Press, 1992), feita por Johane Fischer, a mesma citação aparece assim: “Para conservar o amor, congelá-lo.” E, na tradução portuguesa (Verbo Editorial, 1993) – não consta o nome do tradutor –, é: “Para bem conservar o amor, mantê-lo bem resfriado.”
Lucerne – é ele mesmo quem explica – fala do “amor demais”, do “amor de perdição”: aquele que possui a vítima qual vírus, trazendo-lhe dores, febres e calafrios terríveis. É que o fruto de tal amor, em temperatura ambiente – como é mais comum que seja –, amadurece mais depressa e, também por isso, estraga-se.
Há um diálogo em “Harry & Sally – feitos um para o outro” (When Harry Met Sally... 1989), filme com roteiro de Nora Ephron e direção de Rob Reiner, onde Harry Burns (Billy Crystal) diz à Sally Albright (Meg Ryan): “Quando você percebe que quer passar o resto da sua vida com alguém, você quer que o resto da sua vida comece o mais rápido possível.” Clara confissão do “amor demais”. Há, também no diálogo, a presença daquele gelo que conserva o amor – ao menos da parte de Sally. O trecho, inteiro, é como segue:

Harry: Eu te amo.
Sally: Como você espera que eu responda isso?
Harry: Que tal “que você me ama também?”
Sally: Que tal “eu estou indo embora?”
Harry: O que eu disse não significa nada para você?
Sally: Sinto muito, Harry. Eu sei que é véspera de ano novo. Eu sei que você está se sentindo sozinho, mas você não pode aparecer aqui, dizer que me ama, e esperar que isso faça tudo ficar bem. Não funciona desse jeito.
Harry: Então como funciona?
Sally: Eu não sei, mas não desse jeito.
Harry: Que tal deste jeito? Eu amo que você fica com frio quando está 32 graus lá fora. Eu amo que você demora uma hora e meia para pedir um sanduiche. Eu amo quando você fica com uma ruguinha acima do seu nariz quando você olha para mim, me achando louco. Eu amo quando depois de passar o dia com você, eu ainda sinto seu perfume em minhas roupas. E eu amo que você seja a última pessoa que eu queira ver à noite antes de dormir. E não é porque eu estou sozinho. E não é por que é ano novo. Eu vim aqui esta noite, por que quando você percebe que quer passar o resto da sua vida com alguém, você quer que o resto da sua vida comece o mais rápido possível.
Sally: Você vê? Isso é tão você, Harry. Você diz coisas deste gênero, e fica impossível eu odiar você, e eu odeio você, Harry. Eu realmente te odeio. Odeio você.

O ódio aí, como se verá, esconde (ou disfarça) um amor muito bem guardado: congelado para o futuro. A fala, externa, pode ser reflexo de mil engenhos internos: “O que sua boca fala é o que transborda do seu coração”, são Lucas afirma, em seu evangelho. Pode ser. Mas, sim: é fácil, bem fácil, que a fala esconda um universo de intenções contrárias a si, ao que ela mesma afirma; e, em matéria de amor romântico, a palavra incendiária é a mesmíssima que, do incêndio, traz as cinzas – quando o objeto não é mais.
Henry Lucerne sabe das coisas e, nunca, nunca esteve realmente embriagado ao ponto de não saber que, para o amor romântico, não há receitas infalíveis.



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