quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

43.






Do nosso lugar no mundo, da nossa vida, e do quanto ela vale




Enquanto leio algo d‘O inverno de nossa desesperança, de John Steinbeck, ela me espera, deitada no sofá, ouvindo o rádio tocar uma música qualquer, algo que nem liga, que não ligamos, e que ouvimos assim, sem ouvir... Seus pés balançam fora do compasso.
Compasso. Tempo.  
Qual o nível de precisão de um metrônomo? E quanto ao tempo, sei que o dia está frio e o All Star não aquece bem os nossos pés? Tempo... Um problema sério à filosofia, enquanto definição conceitual, desde Agostinho até Kant, dentre os mais destacados. Mas isso não vem ao caso hoje, 27 de março de 2007, aqui neste apartamento, 7º andar, na Lima e Silva, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, América Latina... Estamos certos de nossas incertezas, vagando por algum lugar deste mundo.
Lugar. Que é um lugar?
Uma vez tentei fazer um poema sobre o tema, porque era a única forma de dizer o que um “lugar” poderia ser – já que o modo poético se permite às subjetividades. “O Mundo, por exemplo”, eu dizia, “não é um lugar. Lugar é definição, ‘coisa’ que diz respeito ao ‘desde quando?’, ‘para quê?’, ‘até quando?’, ‘a partir de onde, sua localização?’... Ora!, quem sabe ‘onde é Mundo’?” Concluía, sem nada concluir.
As listras das meias que ela usa traçam riscos no ar, com o movimento de suas pernas. Mas as linhas, também, não estão condenadas às paralelas. Inexiste a reta que liga os dois pontos, no que seria a menor distância entre ambos; existe, sim, a curva, a geodésica – na geometria curva de George Friedrich Bernhard Riemann, que sobrepujou a curva, de Euclides. E cada vez que seus pés iam e vinham, era uma primeira e única vez, e para cada um, como são todos os movimentos – como o das ondas que morrem na praia, mesmo quando ninguém as observa.
– Pata, tu já viu o remake de 12 angry men, de Sidney Lumet?
– Ah?
Ela rompe com as minhas divagações sobre o nosso lugar no mundo, e sobre as certezas relativas ao tempo e espaço. Ainda leio Steinbeck, e ela me espera, absorta em pensamentos que nem sei...
– A versão de 12 homens e uma sentença, de William Friedkin, de 97.
– Putz! – digo, espantado. – Tu deve gostar mesmo desse filme. Vi não, baby.
Ela ri, para de balançar as pernas, agora paralelas, como as listras em suas meias. Silencia por um instante, como a organizar o que vai dizer, e que diz:
– Há uma fala lá, do Henry Fonda, que, para mim, resume toda a trama. É assim: todos acreditam que o réu é culpado, menos ele. Aí, nessa parte, ele fala do rapaz que é julgado.
– O réu.
– Isso. Ele fala assim, do réu: “Comecei a me colocar no lugar do rapaz. Teria pedido outro advogado. Se fosse minha vida em jogo, ia querer que o meu advogado pusesse todas as testemunhas de acusação na parede. Só há uma pessoa que pode ser considerada testemunha. A outra diz que ouviu e viu o rapaz fugir depois de matar. E há provas circunstanciais. Esses dois são tudo o que a promotoria tem. E se estiverem errados?” Daí outro, do júri, intervém: “Como assim errados? Então, para que testemunhas?” Mas, Fonda lhe pergunta: “Não poderiam estar errados?” E ele: “Como? Estavam sob juramento.” “São pessoas. Pessoas erram. Não poderiam estar errados?” Fonda responde. E o outro diz: “Não, não acho, não.” “Assegura isso?” É Fonda quem pergunta. “Não se pode assegurar isso. Não é uma ciência exata.” Fonda conclui vitorioso, ao menos por hora: “Isso mesmo, não é.” O outro parece entender a complexidade de tais juízos, e parece meio contrariado, inseguro... Tu vê isso, Pata? O veredicto decidiria a vida ou a morte do cara, bem novinho e tal; e eles doze, menos Fonda, estavam dispostos a condená-la, embora não tivessem certeza de que ele era culpado. A pergunta que me fiz, na hora: quanto vale a nossa vida?, e que “certezas” têm aqueles que decidem, todos os dias, se devemos viver ou morrer? Sim, porque há projetos de governos e armas que são capazes de, em um só dia...
“Meu Deus!”, penso, enquanto ela continua falando sem me notar, “que direito eu tenho de fazê-la esperar tanto?”
– Sim!, eu gosto da minha vida – ela diz, enquanto eu marco a página lida, e de onde deveria continuar, depois –, mesmo que ela não seja tudo aquilo que eu queira que ela seja.


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