segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

40.






Da velhice e da mecânica que continua as gerações



Os velhos veem com os olhos da eternidade. É caso de se pensar: não nos foi dada, a juventude, como lição para que, bem aprendida, saibamos aceitar com tranquilidade o que vem depois? Se a filosofia, como Sócrates ensinava, é uma meditação para a morte, por que não seria, a juventude, sua escola? Quando escreveu o Diálogo sobre a velhice (Cato Maior ou De senectute), que dedica ao seu bom amigo Ático, Cícero estava com 63 anos; e, Ático, 66. Estavam velhos, e a morte já os cortejava. Por boca de Catão – que faz seu personagem principal, por admiração e respeito –, Cícero afirma: “Toda idade é pesada àqueles aos quais nada há neles mesmos para viverem bem e felizmente; ao contrário, nada que a necessidade da natureza traz pode parecer um mal a esses que tiram todos os bens de si mesmos. A velhice é, em primeiro lugar, dessas coisas que todos desejam atingir, e, uma vez conseguida, acusam-na: tão grande é a inconstância e a perversidade da estupidez!” Nada nos garante, como queria a Adélia, que algum amor da nossa mocidade torne-se a ventura de uma velhice feliz:

Me dá alegria, Pai, eu só quero a alegria,
os olhos do moço em mim.
Me cansarei, redonda, casável,
capitulada entre massas e molhos,
sentirei fome e prazer,
ficarei velha e feliz.
  
Ah!, a poesia (também a teologia). Nela, os milagres e as visões delirantes são possíveis, permissíveis, louváveis e, mesmo, sagradas: o êxtase místico (São João da Cruz, Santa Teresa D'Ávila, et cetera), a cura do câncer, a paz mundial... A realidade da vida que se impõe, porém, é profana: não há fim último senão ser, e continuar sendo, até o fim do Eu consciente. Tal realidade profana o santo lugar da beatífica visão do paraíso derradeiro, porvir, que os velhos – ao menos os que conservam a fé religioso-escatológica – veem com os seus olhos de eternidade.

* * * * *

O velho, amolador de facas, viu quando o casal se aproximou. Não deu atenção. É que muitos passavam assim: olhando-o de longe, olhando-o por olhar, por curiosidade (quase não há mais amoladores de faca pelas cidades grandes); depois iam embora, silenciosos, anônimos. Tinha os olhos fixos na roda que, presa à correia de couro e ao pedal, girava conforme impulsionada pelo seu pé direito. Algumas faíscas saltavam de uma pequenina tesoura que era amolada. Somente permitiu-se interromper quando precisou responder ao rapaz que se acompanhava de uma moça bonita. Esse, alegre e amistoso, perguntara-lhe:
– O senhor não é o seu João?
Levantou o rosto lentamente. Semicerrou os olhos, para ver melhor quem era aquele por quem era abordado.   
– Sim! E a sua graça?
Ninguém mais falava assim, perguntando por um nome. E como o moço lhe pareceu confuso, tratou logo de acudi-lo, também gentil e sorridente:
– O senhor me conhece de onde?
– Pois então, seu João, sou filho do Carlos. Carlos Gomes. Acho que o senhor o conhece, não é?
– Sim, sim, meu rapaz! E como eu haveria de esquecer do velho Gomes? Inda mais com um nome desses. Motivo de gracejo entre nós, por causa do compositor e... Eu e seu pai fomos colegas na mesma turma de escola. Somente bem depois, quando ficamos adultos, e com os nossos filhos já nascidos, foi que nossos caminhos tomaram rumos diferentes.
O velho olhou o moço mais cuidadosamente, examinando-o.
– Então você é aquele gurizinho que eu vi, assim, tanticozinho assim? Mas, vejam só!
Fazia medidas no ar, colocando um pequeno espaço entre o indicador e o polegar da mão direita. Perguntou, em seguida:
– Mas, venha cá, me conte: e como é que anda o Gomes?
– Ah!, vai bem. Não sei se o senhor sabe, mas ele abriu mais uma loja, ali perto da Lagoa. Tá pensando em abrir mais outra, fora da cidade, talvez em Campina Grande; e quer botar mais uma no Tambiá.
– Gomes sempre teve um espírito muito empreendedor. Dava para notar, desde muito cedo. Mais uma loja no Tambiá, hem? Vejam só!
– Pois é! E o senhor, seu João, como vai? Tenho certeza que ele vai me perguntar isso, quando eu disser que o encontrei.
– É, vai mesmo. Bom, como você pode ver, não tive a mesma sorte que seu pai. Trabalhei aqui e ali, sempre para os outros; fiquei sem emprego. E agora que sou velho, não para trabalhar, mas para arrumar novo trabalho, ganho a vida fazendo uns bicos aqui, outros ali, amolando facas, tesouras, e essas coisas.
– Sei como é. Tenho certeza que o pai vai querer lhe ajudar, pelos velhos tempos.
– Ah!, fico agradecido por isso. Mas, independente de qualquer coisa, diga-lhe que mando lembranças, e que guardo boas recordações de nossa mocidade. Pergunte sobre o franguinho do Fernando. Ele vai dar umas boas risadas quando você disser isso.
E o velho riu, gostosamente. O rapaz não sabia do que se trataria o tal “franguinho do Fernando”. Seu pai certamente lhe haveria de contar essa história, elucidando os motivos dos risos do seu João. Por isso, não perguntou nada. Riu também, e sem saber por que ria.
– Mas, vejo que você vai se casar – o velho disse, notando a maneira carinhosa com a qual ele cuidava da moça, e vendo as grossas alianças que ambos usavam.
A moça de olhos brilhantes riu. Parecia feliz.
– Pois é – o moço confirmou. – Já plantei uma árvore; mas de uma, na verdade. Talvez nunca venha a escrever um livro; não creio que tenha algo realmente de valor para sua composição. Estamos esperando um filho – disse, apertando a mão da moça. – Já já ele estará chegando.
– Plantar uma árvore tem a ver com a permanência da vida sobre a terra, e o ambiente propício às gerações seguintes; escrever um livro diz respeito à transferência do saber adquirido, para o progresso em todos os sentidos; e um filho representa a nossa própria continuidade. Por eles, ou através deles, nós mesmos nos mantemos vivos, nosso inconsciente nos diz. Filhos são retratos dos pais.
– Eu não havia pensado o ditado por essa perspectiva.
O velho esboçou novo sorriso, lembrando-se de algo que havia lido em Camus: “Começar a pensar é começar a ser atormentado.” E lembrou-se de coisas mais cruas e realistas, ditas pelo existencialista franco-argelino. Mas não disse nada. Não!, não diria. Aquela felicidade deveria permanecer, até o fim, que às vezes chega depressa demais. O próprio Camus, tão novo, 47. Ele sabia do amor romântico: do tanto de absurdos sobre os quais ele costuma ser edificado, e a somatória de mentiras que asseguram a duradoura ventura. A descoberta da mecânica do arco-íris não o tornou menos bonito; mas a sua magia se foi, àqueles que não têm os olhos na magia. Não, não diria nada. A ignorância, em dados casos, é o melhor dos prêmios, e o único paraíso... que somente pode ser se se ignora-se. “Começar a pensar é começar a ser atormentado.” Ah!, que grandes e fascinantes são estes absurdos: ser, amar!
Depois de se despedir, o casal saiu abraçado, conversando alegremente sobre alguma coisa. E tudo voltou a ser como era, mas modificado.
         

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