quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

35.




Dos espaços vazios


A cada nova conquista, Rafael se sentia mais vazio, mais sozinho e mais alheio ao mundo. Ele mesmo dizia assim. E dizia que não lhe adiantava o “pegar” tantas garotas, que elas não o satisfaziam por muito tempo. Cada rosto diferente que aparecia era uma promessa de novidade a manter-se, na expectativa de algo mais feliz e duradouro que uma semana, e umas trepadas, e et cetera. No pouco tempo comum dos dois, porém, o enigma de antes, e o brilho e a graça da beleza feminina daquela, transmudavam-se, transmudavam-na, mergulhando-a na imensa galeria dos lugares comuns que são todos e todas.
“É que eu me acostumo rápido demais com a beleza”, dizia, dando a entender que a menina, por mais linda que fosse, perderia a graça, e fatalmente morreria para os seus sentidos de caçador, e para a sua reação positiva ao seu sexo.
“Vai ver que tu é gay, Rafa? Já pensou na possibilidade?”
Era uma provocação que eu e o Márcio Barcelos fazíamos, nalgumas das várias noites em que conversávamos e bebíamos, atravessando as madrugadas geladas do inverno porto-alegrense.
“Sou não, Patativa. Tenho certeza.”
“Então tu é só mais um descarado sem vergonha”, eu aproveitava, rindo.
“Isso aí mais parece autoafirmação: o cara querendo se convencer de que é o fodão, de que pode conquistar esta ou aquela e exibi-la como um troféu, para mostrar que é...”
“Viado.” Eu não ia perder a piada, não é?
Sim, era uma coisa boba, e restrita ao nosso pequenino círculo. Não representava, realmente, uma opinião sexista fundamentada, e menos ainda preconceituosa.
Certo é que, a cada “adeus, a gente se vê por aí”, Rafael sentia como se algo dentro de si também partisse, como o gás de um balão que vai murchando. O gás, na comparação, seria o seu sentimento, e ele, a bexiga. Era assim: uma parte sua partia com a menina que, uma vez, houvesse entrado em sua vida.
Era preciso encontrar alguém que, mesmo não sendo perfeita, por algum mecanismo sentimental, permanecesse. Senão, ele dizia, “daqui a pouco eu mesmo não me encontro, despedaçado em mil pedaços”. Creio que entendia o seu sentimento. Uma vez, e pelas semelhanças, evidentemente, fiz com que ele ouvisse o poema “Propiciação”, de Oswald de Andrade, do Serafim Ponte Grande - publicado pela primeira vez em 1933. No espírito do Oswald, eu mesmo li, com a voz grave e impostada:

Eu fui o maior onanista de meu tempo
Todas as mulheres
Dormiram em minha cama
Principalmente cozinheira
E cançonetista inglesa
Hoje cresci
As mulheres fugiram
Mas tu vieste
Trazendo-me todas no teu corpo.

Comentaria, ao final da leitura: “Rapaz, acho que uma hora dessas vai aparecer uma garota assim, mandada pelo Capeta, com cara de anjo e corpo de puta de luxo, te fazendo esquecer de todas as outras. E ela vai te bastar, embora a gente saiba que nunca basta. Enquanto isso não acontece, viadinho, não vá se perder por aí; e tente gostar mais de você mesmo.” Vai que o Márcio tinha razão. Sim, bem que poderia ter. Vai saber. A criança que mora em nós nunca cresce. O que cresce, realmente, são os objetos dos seus desejos.


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