44.
Da solidez dos espaços vãos
– E se tudo estiver errado?
– Então será certo, o erro; como é certa, a dúvida.
Não era uma pergunta legítima, a de Rafaela; não era. O sentido das coisas, dos dogmas da fé ou da política latino-americana, para ela, mesmo quando eram bases flutuantes, e se tanto flutuavam, tomavam o céu como base. Ela, sempre me pareceu, não sabia viver sem isto: um fundamento, uma ideologia, uma certeza – mesmo que não soubesse defender intelectualmente o porquê de tal certeza.
– Mas – ela disse –, como é possível saber se é certo, o erro? E se o “tudo” também inclui-lo? Quer dizer: se o erro estiver justamente aí, na dúvida sobre o erro.
– Ainda assim – respondi – a dúvida será certa, como máxima permanente; como fundamento para algo que, se é o caso, exija algum fundamento. E isso desde Agostinho, com seu si fallor, sum.
– Que é isso?
– Se me engano, existo. Pois não poderia ter alguma dúvida da minha certeza se isto, a dúvida, já não fosse, em si, alguma certeza.
– É, faz sentido.
– Claro que faz! Agostinho não é famoso por acaso. Mas isso somente garante que sei de mim. Eu: o que duvida, res cogitans. Não há garantias para nada além disso; e principalmente como ele fez, acreditando poder “partir de si”, físico, em direção ao Super-Outro, metafísico; como em uma hierarquia, e mantendo as hierarquias que...
– Mas isso que você fala, das estruturas clássico-ortodoxo-teológico-fundamentalistas favorecerem a dominação imperialista, et cetera, e que isso, sim, pode ser a legítima obra do Diabo... sei não, viu?
Era, ao menos do modo que eu dizia, “um modo de dizer”. E referia-se ao que, antes, havíamos conversando, com base na leitura de um livrinho de Russell Shedd, A justiça social e a interpretação da Bíblia, de 1984. No referido, há uma crítica à “horizontalidade da Teologia da Libertação”, acusando-a de ligar-se ao marxismo ateu e, nisso, arranjar-se em uma hermenêutica (principalmente a do Velho Testamento) forçada, tendenciosa.
Daí lembrei de algo que tinha lido em outro livrinho, de Basileia Schlink, Patmos – da der Himmel offen war, de 1976. Era a parte de uma oração em que a santa madre chamava o seu bom Deus de... Satã – não assim, de modo explícito, mas ao colocar a sensualidade como obra desse. Ela dizia: “Acima de tudo, renuncio a todo desejo sensual que surge em mim. Recuso-me a ter alguma coisa a ver com isso ou com Satanás, que está por trás de tudo [isso].” Ah! Que infeliz!, a afirmação. Ah!, o antinaturalismo cego dos fundamentalistas cristãos. Não era preciso concordar com Darwin, Freud ou Schopenhauer para saber que a sensualidade é um dos recursos mais comuns da Vontade (de vida), incitando (e excitando) os indivíduos pelos indivíduos, a fim de que esses gerem outros, conforme sua espécie. E a beleza, em nosso natural inconsciente, é propaganda da saúde do corpo, dizendo-se “bom” para gerar espécies igualmente boas. Mesmo as bestas, que agem por puro instinto, “sensualizam”, para atraírem seus pares. Qualquer teologia, mesmo a mais decadente, deveria entender que o “crescei e multiplicai-vos” não funcionaria sem a ereção de Adão, em resposta à beleza erótica de Eva. E, certamente, e aos menos para tais teologias, isso não deveria ser creditado ao... Diabo.
– Também acho que a dúvida seja uma coisa boa – Rafaela dizia, sem muita convicção. – Mas, às vezes tenho medo... de duvidar.
– Pois, não deveria.
– Por quê?
– Porque o determinismo é o refúgio dos covardes. Porque a dúvida pode ser uma chave para nossa liberdade, Rafa; nossa liberdade de pensamento acerca de nós mesmos, do mundo e do Outro, e de tudo o que transcenda a isso.
Foi uma conversa longa, e não lembro mais dos detalhes; e não creio que eles tenham alguma relevância para além do que, aqui, já foi dito.
Quatro anos depois, quando já não éramos colegas no curso de teologia, ela casou, teve dois filhos, continuou idealista, e romântica: na fé religiosa e no amor perfeito. Eu, não; não conseguia mais. Viajei o Brasil quase inteiro, e por alguns países da América Latina, sozinho e a tudo atento – à miscigenação que, por exemplo, é nossa riqueza e... pobreza: material e espiritual. Continuei antidogmático, muito mais que antes. E ainda vejo os fundamentalistas (das religiões ou dos partidos políticos) como cânceres ou gângsteres reacionários, e me afasto deles. Se não nos permitimos à dúvida, prostituímos a liberdade – a nossa. Dogmas, sistemas e certezas, são limites, e limites são prisões. É preciso duvidar de tudo, ainda.