quinta-feira, 1 de março de 2012

46.





Da obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida




– Olha isso, Patativa! “Então”, é Kierkegaard, “entre as obras do amor, não esqueçamos desta, não esqueçamos de considerar: a obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida. A obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida é uma obra do amor mais desinteressado. Se quisermos garantir que o amor é completamente desinteressado, podemos então afastar toda possibilidade de retribuição. Mas é isto justamente o que está excluído na relação com uma pessoa falecida. Se então o amor permanece, é que ele é verdadeiramente desprendido.” E então? Que é que tu me fala sobre isso?
Rafael segurava um exemplar de As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos (Ed. Vozes, 2005), de Sören Kierkegaard, aberto quase pelo final. Dizia assim, como a desafiar os meus argumentos contumazes sobre o inevitável amour de soi, que nos domina do começo ao fim. Tratava-se, no entanto, de uma pergunta muito fácil de ser respondida.
– Digo, em primeiro lugar - respondi -, que nenhum autor é canônico; por mais querido e elogiado que seja. Nihil sacrum est, se é realmente livre o nosso pensamento. Ademais, o pensamento sobre o morto ou a morta é, deveras, um meio de, o vivo, ainda amar a si mesmo: na alegria ou na tristeza que tal pensamento traz. A lembrança do defunto é como “uma ponte” – desenhei aspas no ar, com as pontas dos dedos – que nos liga a ele: no choro da saudade ou, talvez, no riso bom pela lembrança do que, em vida, com ele, se viveu. Quando Chico escreve a letra de “Pedaço de mim”, em 1978, fala de dois amores: por uma mulher, viva; e por um filho, morto. Ele não faz diferença, mas há: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade exilada de mim / Leva os teus sinais / Que a saudade dói como um barco / Que aos poucos descreve um arco / E evita atracar no cais.” É como está no final da primeira estrofe. É de um amor não correspondido, ou correspondido, mas que teve de partir, que se trata. Daí, e para descrever o nível dessa dor, a estrofe seguinte, que é metáfora às duas primeiras: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade arrancada de mim / Leva o vulto teu / Que a saudade é o revés de um parto / A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu.” Nenhum pai ou mãe, por mais perversos que fossem, do filho morto, desejariam ter a memória apagada. Vê? São duas as situações. Numa ou noutra, é a memória, mesmo dolorida, que une o vivo ao morto – nunca ao contrário. É como Comte diz: “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.” Pois o que não tem memória não sabe o que é governo. No final de tudo, e mesmo na suposta recordação desinteressada sobre a pessoa amada e falecida, há o interesse, sim; e o Eu que recorda, evidentemente.
Rafael fechou o livro sobre a escrivaninha, levantou, coçou o queixo, olhando-se no espelho. Virou-se para mim, devagar, levantou o dedo indicador como quem vai dizer algo muito sério ou profundo; mas somente disse, quase sorrindo:
– Vá se lascar!



LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...