37.
De quando uma alegria traz os seus contrários
Márcio finalmente completara os seus tão sonhados 18 anos. Sonhados porque seu pai, satisfeito que era com ele, moço muito bom e obediente, prometeu-lhe dar uma moto Honda, 250 cilindradas, “mas somente quando você chegar aos dezoito!” Chegou aos dezoito. E assim foi. A moto era linda: novinha, vermelhinha, do jeitinho que ele queria. Um sonho realizado. Mas havia outro.
Depois de ouvir as mil e tantas recomendações da mãe, Márcio ligou para Juliana, convidando-a a ir com ele, em sua nova moto, ao forte de Cabedelo, ou à Ponta do Seixas, ou aonde ela quisesse ir. Não ficaria nada mal impressionar a garota que, em sua garupa, ele pensava, lhe abarcaria pela cintura, espremendo-se no abraço. “Juliana é a menina mais linda desta cidade, Patativa”, ele me dizia, “e do universo todinho”. Que maravilha! A vida era boa. E todas as vias eram veias que apontavam para o paraíso. Era somente seguir... vivendo.
Marcaram de sair no domingo, quando o sol não estivesse em um para cada habitante da cidade.
O ar que entrava pelos lados da viseira do capacete, acariciando gentilmente o seu rosto, dava-lhe uma agradável sensação de aventura, de liberdade, e de poder. Nas mudanças de marcha, que provocavam pequeninos solavancos, Juliana lhe abraçava, rosto colado à sua nuca. Dava até para sentir sua respiração, e seu perfume. Tudo como ele havia sonhado. Tudo como ele queria. Seus sonhos, finalmente, estavam se realizando. Só faltava agora, para que tudo fosse realmente perfeito, ela dizer que “sim”, que “quero ser tua garota pelos séculos dos séculos, amém.” Sim, faltava isso; mas não parecia mais uma coisa tão longe de acontecer. E ele ainda não entendia o porquê de ela ser assim tão, tão arredia; tão desconfiada dos próprios sentimentos.
Márcio pensava nessas coisas quando, na ladeira, no começo da descida que dá para a praia de Cabo Branco, viu um vira-lata correr para atravessar a pista. Não tinha como frear. Atropelou o animal e, ao mesmo tempo, perdeu o controle sobre a moto. Ele e Juliana foram arremessados contra o meio-fio, caindo bruscamente sobre algumas pedras que estavam no encostamento. Ela teve o rosto dilacerado e algumas fraturas expostas, no joelho direito e nos braços. Morreu na hora. Márcio, conforme laudo da polícia técnica, além de várias escoriações pelo corpo, quebrara o braço direito e a cabeça. Esta, aberta que estava, fizera com que ele perdesse bastante massa encefálica. Morreu ali mesmo, deitado de bruços, enquanto o cão traçava círculos na pista, rodando para os lados, ganindo, tentando levantar-se, com a língua para fora e o sangue escorrendo pelos cantos da boca.
Nos dias seguintes, o povo da rua não falava de outra coisa, admirados de como o destino pode ser tão negro e impiedoso.
Os pais de Márcio, numa das visitas que lhes fiz, deram-me de presente o disco que ele ouvia antes de sair para encontrar-se com Juliana. Disseram-me que não conseguiriam guardar “aquilo”, e que o Márcio gostava muito de mim, e certamente iria querer que eu ficasse com ele, porque eu gostava muito daquela banda e então... Era o álbum Ouça o que eu digo, não ouça ninguém, de 1988, dos Engenheiros do Hawaii.
Márcio tinha uma irmã com quem tive um brevíssimo romance, Mayra. Quando eu já estava de saída, na calçada, ela contou-me que o irmão tinha mania de sair e deixar o som ligado. “Nesta última vez”, disse-me, chorando, “quando fui desligar, tava lá tocando aquela música: ‘É muito engraçado que todos tenham os mesmos sonhos e que o sonho nunca vire realidade’”. Precisei abraçá-la, tentando dar algum consolo. E aí ela disse que lembrava bem disso porque a frase tinha ficado martelando em sua cabeça, como se houvesse alguma relação entre o que ouvia e o trágico ocorrido. “Como é triste que as pessoas morram tão cedo, não é?” Confirmei com a cabeça, ainda abraçado a ela, que completou: “Maldita Honda dos infernos! São as nossas maiores alegrias que também podem trazer as nossas maiores tristezas. Mas não temos nunca como saber, e precisamos nos permitir aos seus riscos.” Concordei novamente.
Hoje fui ao cemitério do Cristo Redentor. Levei algumas flores para Márcio e Juliana, que lá estão sepultados. Sei, claro, que isso não faz diferença nenhuma para os dois; mas, para mim, sim.