domingo, 19 de fevereiro de 2012

42.






Da fé no amor, e suas recompensas



No amor romântico, como na fé religiosa – “‘Fé’ significa não querer saber o que é verdadeiro”, Nietzsche afirma, n’O Anticristo, de 1888 –, a razão é rebaixada, e o realismo, em favor do idealismo, e do carnaval dos sentidos.         
Daniela acreditava firmemente que João Aurélio era o “homem da sua vida”. Confidenciou-me, bêbada e chorosa, ali no Bar do Elvis, próximo à UFPB. Tanto acreditava que, mesmo sabendo das suas traições, afirmava irredutível: “É sexo o que ele faz com as outras, Patativa; comigo, é amor.” “Putz!”, pensei na hora, inconformado de que alguém ainda acreditasse nisso, e fazendo cara de praça em dia de chuva.
De um modo misterioso, e por alguma estranha defesa da sua no amor, ela depositava todas as forças na inabalável convicção de que, “um dia, pode anotar aí, o João há de se corrigir”. Largaria a vida que estava levando, dizia, e se devotaria somente a ela, e seriam felizes, igual no filme de Garry Marshall, Uma linda mulher (Pretty woman, de 1990). Mas ele – sim, ele – é que seria a Julia Roberts da história. “Você vai ver, Patativa. Você vai ver.” Nunca vi.
O amor romântico, para as suas recompensas, requer o salto da fé (Kierkegaard), requer o absurdo. Tal amor, sublimado, é dono das promessas de futuras beatitudes – mesmo quando, no presente, somente tristezas e decepções seja o seu quinhão. O ideal apostólico: “O amor é paciente, é benigno; não se porta inconvenientemente, não busca seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”, referente ao ágape, é espelho para Eros – no equívoco do idealismo, e da propaganda cristã – que deve, por aí, se corrigir, ser corrigido. Ágape é perfeito, Eros, não.
O amor romântico concebe a felicidade dos que se auto completam (corações perfeitos, almas gêmeas, et cetera), ou que pensam poderem-se completar no Outro, no  encontro com o Outro: a metade que lhes falta. Tais ilusões originam-se em nosso inconsciente senso de estética, de simetria. Barbie procura Ken; a princesa da Disney, seu príncipe: bonito, rico, educado, sério e, no fundo, um pouco safado – para que a vida privada dos dois não vire uma privada, sufocada pela monotonia.
Com o declínio da moral ocidental – a cristã, em particular –, o modelo de “bom rapaz, direitinho” (que nem na música do Tom Zé), tornou-se coisa para o cinema, e à literatura fantasiosa. “Bom rapaz, direitinho, desse jeito não tem mais”. E quando tem, é a coisa mais chata do mundo. Tão chata que somente a mãe (ou a avó) aguenta. O inconsciente feminino, grosso modo, vê com melhores olhos o masculino incendiário: James Dean, Jim Morrison, outros. Quando não é assim, é porque ou as amarras culturais – nas quais nasceu e habituou-se – ou a retração própria do medo, referente aos riscos (ou suas consequências), meteram-lhe uns freios. O amor romântico é uma máscara da Vontade de vida, ou do desejo de viver (Wille zum Leben); nossa inconsciente noção de estética e simetria, seus cães farejadores.
A Vontade também precisa de certas estabilidades que garantam o sucesso do empreendimento: daí viria, de modo natural, nosso sentimento de fidelidade, comum aos homens (instinto e razão) e às bestas (instinto) – havendo ou não a infidelidade. No homem, como em uma embalagem (conforme cada cultura), o instinto domado e amordaçado é o selo da moral, ou da virtude, que pode ser religiosa ou autônoma – e nada são senão conceitos. E se todas as histórias de todas as lutas têm em seus enredos mais profundos um script ditado pelo ideal de um amor perfeito, é que ele, em relação à Vontade da vida, tem uma funcionalidade conveniente. Como Schopenhauer escreve na Metafísica do amor – capítulo XLIV dos suplementos ao livro IV de O mundo como vontade e como representação (1818) –: “A natureza só pode atingir o seu objetivo fazendo nascer no indivíduo uma certa ilusão, graças à qual ele considera como uma vantagem pessoal o que na realidade é apenas vantagem para a espécie, do mesmo modo que é para a espécie que ele trabalha quando imagina trabalhar para ele mesmo.” O disfarce é tão perfeito que, esquecendo-se de suas próprias vidas, as pessoas fantasiam o amor para além delas mesmas, e deste mundo.
Desisti de tentar convencer Daniela a procurar outro que, ao menos, lhe respeitasse. Desisti de fazê-la entender que, dignidade, nada tem a ver com egoísmo, no sentido “ruim” do termo. Desisti de repetir que, “se você mesma não se ama, como espera que outros o façam?”   



LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...