segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

34.





Da tristeza que anoitece a alma


“Vem, Himeneu, oh, vem, / que o teu rosto radiante / seja quase um sol nascente, / e traga a estes amantes os dias serenos, / e para longe afaste sempre / os anseios, a dor, os horrores e as sombras.” É como canta o Coro, tão logo surge em Orfeo, ópera do italiano Claudio Monteverdi, apresentada pela primeira vez em 1607. O invocado Ὑμέναιος, filho de Apolo e Afrodite, é o deus do casamento, para os gregos. Ele, caso atendesse ao pedido, daria a Orfeu e Eurídice, dias serenos: sem anseios, dores, horrores ou sombras. Pois, a própria história do infeliz casal nos mostra, há tristezas que fazem anoitecer a alma. A de amor, qualquer amor, certamente é uma das maiores.
Quando Pedro encontrou Beatriz, a pedido dela, logo notou algo diferente. Sim, havia um ar de mistério no jeito que ela o encarava, como se quisesse rir ou chorar. Na fração de segundos em que a encarou, como se fosse a primeira vez, depois de tantas, ela parecia dispersa, meio ansiosa, muito elétrica.
– Tá tudo bem? – Perguntou, olhos nos olhos dela.
– Está sim! Aliás, e ao menos para mim, até demais. – Respondeu, abrindo os braços para recebê-lo, para abraça-lo. Mas, ele sabia: havia algo a mais.
– Ai, Bia!, fala de uma vez, danada! Que é que tá pegando, hem? Quê que tu quer falar?
Ela quase não se continha em sua ansiedade e tensão, fazendo cara de choro e riso, ao mesmo tempo.
– Tenho medo da tua reação, Pedroooo. Quer dizer: não sei se é a melhor hora para te falar isso e...
– Ah, meu Deus! – atalhou, fitando-a com um olhar de “pode dizer o que quiser que eu aguento”. – Isso o quê? Fala de uma vez, criatura!, falaaa... Não gosto desse suspense todo.
E ela falou, vomitando as palavras com toda a urgência do mundo:
– Estou grávida, Pedro! É isso. Estou grávida, esperando um filho nosso.
Há horas em que os nossos pensamentos se misturam, como a neve artificial naquelas esferas de vidro de inverno, de Natal, quando sacudidas; e não temos o que fazer senão esperar que eles voltem ao lugar – se queremos que nossas palavras e ações façam sentido. E até que voltem, ficamos assim, meio paralisados. Quando há tal inação, nossa confusão mental é facilmente denunciada pela expressão do nosso rosto: o da tristeza ou da alegria. Tanto faz.
– Ah, meu Deus! Sério, Bia?! Caraaalho, meuuu!
Levou as mãos à cabeça, girou em um vagaroso trezentos e sessenta. Olhou para ela, incrédulo. Ela começou logo a fungar, limpando o nariz choroso com a palma da mão esquerda, sei querer acreditar no que acreditava.
– Eu não devia ter te contado agora.
– Ué!, por quê?
– Melhor ter te preparado antes e...
– Nãooo, meu amor! – ele entendeu o que ela poderia estar pensando. – Não é nada disso! É que eu não esperava que, quer dizer...
Tomou-a nos braços, dizendo que “te amo, te amo, te amo”, repetidas vezes. E ficaram assim, e em silêncio, até que Pedro disse, rindo, quase saltando de felicidade:
– Que coisa boa, Bia! Que coisa tão boa! Tu me faz tãooo feliz!
Abraçou-a ainda com mais força, espremendo-a contra si. Sim, estava realmente muito feliz. É certo que não havia pensado em ter um filho, em ser um pai. Agora, porém, parece que isso era a coisa que ele mais queria em sua vida; a coisa que mais merecia festa e expectativa.
Ela sorriu, aliviada e feliz, e pensou “que boba eu sou!, não entendendo o jeito dele agir”. Enxugou novamente o nariz com a manga da camisa, ainda abraçada a ele.
– De quantos meses?
– Acho que de um, um e meio... Não sei direito. Vou ver isso amanhã.
Beijaram-se, e fizeram mil planos para o bebê que seria o mais amado, o mais querido, o mais mais deste mundo todinho.
– Pedro – ela disse –, acho que vou passar dias inteiros olhando para ele, ou ela, hipnotizada.
Ele riu, e amou aquele instinto materno que ele não escondia.  
Mas, e como Shakespeare dizia, “há mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. Foi em um destes mistérios, destas coisas que não se explicam, que Beatriz, seis meses depois, quando voltava da clínica, olhando o resultado do pré-natal, não viu o Pálio prata que, em alta velocidade, não teve como frear a tempo. Não morreria no acidente, mas o bebê, sim. Já tinha até nome: Eduarda.
Desde então, Beatriz não conseguiu mais levar a vida de antes, atormentada pela culpa de haver perdido o bebê, praticamente pronta para vir ao mundo. O impacto psicológico daquele acidente foi de um estrago enorme. Em sua contabilidade sentimental, o tempo não passa, ou passa lento e arrastado. Quando não está dormindo, que é um tipo de fuga do real, que é doloroso demais, está chorando pelos cantos, soluçando a perda abrupta e dolorosa de sua... Eduarda. E dia após dia Pedro vê Beatriz se afastando da razão, apesar de todos os tratamentos. Ela lhe pergunta, repetidamente:
– Será que o bebê sofreu? Será que ela, se tivesse nascido, iria olhar o céu, procurando bichinhos feitos de nuvens? Será que iria querer explicar todas as coisas do mundo, ou estaria contente em viver cada dia como um prêmio da natureza? Vai, Pedro, me diz; me diz...
– Eu não sei, meu amor; eu não sei. Acho que as crianças não têm pensamentos assim tão... complexos; também acho que as crianças de hoje não têm mais o costume de fazer isso: observar as nuvens que se desenham.
– Sabe – ela disse, filosofando, porque isso é a coisa que mais os loucos sabem fazer –, às vezes eu queria ser outra pessoa. Mas aí, penso assim: se eu fosse outra pessoa, ainda ia querer ser outra pessoa que desejaria ser outra pessoa, sem conseguir nunca me livrar desse círculo de eterno retorno do mesmo... Ah!, mas isso só funcionária se eu fosse eu mesma, entende? Que nem um oroboro.
Pedro ficou em silencio, pensando sobre o que ela dizia – que não era sem sentido –, e visualizando a imagem de uma serpente engolindo-se a si mesma, e de um cão que perseguia a sua própria cauda, e que relação havia entre isso e o que ela acabara de dizer.
– Pedro?
– Oi.
– Se nosso bebê tivesse nascido, a gente ia ter que botar umas redes nas janelas, não era? Olha só: sétimo andar... Vai que a gente deixava a janela aberta e o bebê, vendo os bichinhos nas nuvens...
– É, teríamos de botar umas proteções...
Ele concordava com tudo, seguindo à risca as recomendações do psiquiatra.
– É – dizia, com o olhar muito distante –, a gente ia ter de botar umas redes nas janelas...


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