30.
Das planícies e dos abismos
Ana Maria, no auge da sua juventude , despertava a violenta paixão de Gilberto. Todas as tardes , metodicamente, ele esperava vê-la na sua rua, prostrado de sua janela. Era quando ela voltava da escola e passava por ali, bem perto. Vê-la, e notar que também era visto, valia a longa espera. “Caralho, Patativa!”, ele me dizia, embasbacado, “pode parecer viadagem isso, mas eu ganho o dia, cara!” Quando Ana aparecia na esquina, todos os holofotes caíam sobre ela, sobre sua cabeça de cabelos louros e ondulados. Um anjo! E ela brilhava no filme romântico de um único ator: ele. “Gilberto, o apaixonado”. Tudo o mais , no mundo, como diz o Werther de Goethe, se dissolvia à sua volta. Tudo, todas e todos não eram mais que atores coadjuvantes àquela cena de beleza e graça chamada... Ana.
Os finais de semana de Gilberto eram de uma tristeza só. Não havia aula. Ana estava ou enfurnada em casa ou com as amigas. Coisa que o deixava ainda mais deprimido e intranquilo: “Com quem será que ela está essa hora? Na companhia de quem? Ai, meu Deus!” A ideia de que outro, que não ele , pudesse abraçá-la ou beijá-la, era algo muito, muito angustiante. Um turbilhão de imagens invadia sua mente . Imagens dolorosas. Às vezes , à noite , nem conseguia dormir , alimentando tudo o que era pensamento de desassossego, de rugas e olheiras profundas. Ah!, como doía viver assim.
– Por que você não conta o que sente pra ela , danado? – sugeri.
– Tá louco? – Ele respondia, olhando para o teto. – Melhor não. Você está me empurrando ou para a planície ou para o abismo; e é disso que eu tenho medo: de não saber se é uma ou outra coisa. E é isso que me angustia. Eu não saberia viver com o “não” dela, Patativa.
– Planície ou abismo, né? Quer dizer que...
– Que se ela gostasse de mim isso seria como um passeio pela planície : mágico , gostoso , calmo e, depois, com o tempo, monótono e tedioso.
– Ahhh, vai te lascar! Se a gente fosse pensar assim, não namorava nunca.
Eu não acreditava que ele chegava a tanto: a uma conclusão tão limitada e finalista. Seja como for, e no que ele acreditasse – e se não estivesse de onda –, disse-me, concluindo o raciocínio que, parece, eu havia interrompido.
– E não é assim que sempre acaba o filme? Amor realizado é verbo no passado. Planície que leva ao abismo que vem depois. Que sempre vem depois. Se ela não me corresponde, é o abismo antecipado, sem os atrasos de uma planície. Que grande merda, velho! Que grande merda!
Não adiantava que eu dissesse que isso “é a vida!”, que é assim mesmo e tal. Ele reclamava em um misto de covardia – eu acreditava – e medo da dor advinda do medo da dor. Em um sofrimento antecipado por antever um sofrimento futuro.
– Porra, meu! – eu dizia. – Isso é estupidez! É preciso sofrer somente quando for a hora de sofrer, entende? E se o sofrimento vier; que não é garantia cem por cento; ora bolas!
Dias mais tarde, numa manhã de domingo, Gilberto, por puro acaso da sorte, e ao passar pela calçada de Ana, esbarrou nela, que saía estabanada porta afora, armada com uma vassoura, enxotando uma barata enorme que aparecera em sua varanda.
– Opa! Desculpa, Ana! – Falou, de bochechas coradíssimas de vergonha.
– Não! – Ela tinha um sorriso feliz e tranquilo. – Eu é que peço desculpas. Saindo assim feito uma doida.
No pequenino silêncio que se instalou, desajeitado, ela o examinou, enquanto perguntava:
– Não é você que fica ali na janela? Te vejo sempre que volto do colégio.
– Não! Quer dizer, sim!... acho que sim.
Ele não sabia de onde lhe vinha tanta timidez. E não estava preparado para aquela pergunta que o delatava, sem que soubesse se era aprovado ou não.
– Gilberto, não é?
Ele assentiu com a cabeça.
– Eu sempre tive a impressão de que você, quando me vê, tem algo a dizer.
– Eu? Sim! Quer dizer, não! Olha: eu realmente tenho que ir. A gente se fala depois.
– Ah, tá! Então, tá. Até depois, então.
Saiu com as pernas trôpegas, suando frio e com a esquisita sensação de que mil olhos o acompanhavam. “Nem ao menos lhe beijei o rosto ao me despedir”, pensou, recriminando-se pela oportunidade perdida, e por tudo o que poderia ter dito. “Que imbecil que eu sou!” Era mesmo. Foi.
– E então? – perguntei, na noite do mesmo dia, depois de ouvir sobre o ocorrido. – O que foi que tu disse a ela?
– Nada! Eu não disse nada! – respondeu, desenganado do mundo. – Na hora, Patativa, meu raciocínio foi pra puta que pariu. Eu não era eu, cara. Ou era demais. E não era legal. Puta que pariu! PUTA QUE PARIU! Mas eu também não lhe diria nada. Não ali, assim... É claro que, se eu tivesse pensado direito, na hora, poderia ter deixado algo preparado para ser dito depois, não era? Que grande merda!
Semanas depois, por boca da Flavinha, sua irmã mais velha, Gilberto ficou sabendo que Ana estava saindo com um rapazote da “rua de trás”, e que o cara era “a banda voou”, e que o povo dizia que ele era do tipo “barra pesada”, e que todo mundo já andava “falando mal da pobre da Aninha”.
– Sabia que ela gostava de você, Gilberto? – Flávia contou, sem dar grande importância ao que dizia. – Mas ela me disse, acho que foi ontem ou anteontem, que achava que tu não dava o menor cabimento a ela, e que, pelo que parecia, nem gostava de meninas.
Foi um soco no estômago de Gilberto. E foi somente assim que, finalmente, ele compreendeu: de tanto medo que tinha do abismo, acabou por entregara-se a ele. “Mas”, ele ainda pensava, dramático e fatalista, “como haveria de ser diferente?”
De fato – e mesmo sem os extremos de um Gilberto –: o amor romântico, por uma ou outra via, é esconderijo de infinitos abismos. Abismo que chama abismos. Abyssus abyssum invocat, diziam os antigos. Diziam também que a covardia é o pior dos defeitos morais. E Gandhi garantia que “o medo [poderia ter] alguma utilidade, mas a covardia, não.”
* * * * *
Moral da história: arrisque-se; decida-se. Se o caso é chorar, que seja pela tentativa, e não pela falta dela.