quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

24.



Do amor fati, e das dores do Mundo


– O novo homem há de cultivar, acima de todas as palavras, filastía. Sim, acima de tudo, o amour de soi, reconhecendo-o não mais como uma falha moral, mas como condição para a vida, e a favor dela, em seu sentido objetivo e maior.   
Dizia Zaratustra, enquanto os homens trocavam olhares de desconfiança.
– Mas, que espécie de amor é esse? Não te parece contrapor aos sentidos mais comuns destinados ao termo, desde os sábios, santos e autores mais antigos?
– Certamente! E assim é porque os homens gostam de superfícies, de vales, e não de funduras, e covas escuras. Filastía ou amour de soir são, acima de tudo, meios e condições para o amor fati.
– E o que viria a ser isto?
– Ah, meus amigos! É a grande grandeza do homem, do ultra-homem: aquele que nada quer além do que lhe é dado, que é o que é: sem futuro, nem passado e nem eternidades; o necessário posto e dado às vistas, presente aí, para ser amado sem desvios ou derivações. Sim! Nada acima das estrelas, nada debaixo dos oceanos; nada à compaixão desregrada, nada à desmesura vacilante.          
Aqueles homens, acostumados às superfícies, ou não compreenderam ou não gostaram do que compreenderam, pois redarguiram, com superior desconfiança:
– Ora! Que sabes tu sobre o amor? E que certa certeza tens, além da tua, que queres nossa?
– Sei que o Eros, quando superficial, é confundido com o ágape delirante: uma hora dado a Dionísio, outra, a Apolo. Duas máscaras, porém; como aquelas do teatro. Também sei que o seu fundamental ardil consiste em confundir os que amam, ou que dizem amar, fazendo-os crerem-se felizes e invencíveis, sem notarem o quanto estão doentes e fracos. Tal amor de superfície, servil e romântico, faz o trabalho que compete à Vontade, em função da vida. Pois a vida, viva, quer viver, continuar vivendo.
Zaratustra podia ver a reprovação estampada nos olhos de todos, e até sabia o que eles deveriam estar pensando: “como este louco pode dizer tantas loucuras?” E mesmo que eles não ousassem contrapor o que ouviam, estupefatos, era sobre a vida das grandes árvores e dos musgos e dos grandes homens e mulheres, e dos vermes minúsculos, que eles pensavam; e sobre a espontaneidade de tudo o que aparece, por puro milagre, e em que lugar cabiam todas aquelas palavras. Não cabiam.  
Disso sabendo, Zaratustra lhes falou mais uma vez:
– A diferença entre o homem e a fera é que o homem pode pensar-se fera, e então ser maior que a fera. Nisso está o seu céu, e o seu inferno. E no alto de tudo e no ato de tudo, filastía. O amor que é presente, na memória e no desejo do futuro: semente que, não mais que semente, deseja-se árvore, e flor, e fruto. É o grande esforço da Vontade, que também é Desejo. Mas, ah!, o desejo realizado é o desejo morto. Ele, como o próprio homem, é uma corda estendida entre dois abismos: nascimento e morte. Mas, até o fim, vive-se o sofrimento pela vida, e a luta por ela. Não há exceção. A pura natureza, idílica para alguns, não mascara a dor, nem o sofrimento. Contra ela, e contra a dor e o sofrimento, a fantasia, e as máscaras da civilidade, e as promessas das tantas doutrinas religiosas e políticas. Nenhum pássaro canta porque é feliz, nem sequer pensa-se feliz ou sabe o que isso seja. Ele responde à sua pura natureza, e geme em seu impulso instintivo pela existência que não conhece, e grita de dor, porque a sente, embora não questione qualquer ventura ou desventura. É porque não sabem sobre si mesmos, e nem deliram, que os pássaros não têm igrejas, e nem partidos políticos, e nem doutrinas escatológicas. Nada mais autêntico que o pássaro, e os bichos que não têm razão; porque eles não maquiam a dor, não enfrentam o trágico com alguma arte, como fizeram os gregos, e como vós, hoje, fazeis. Mas eis – disse Zaratustra, abrindo os braços como a abraçar os campos – um céu inteiro a ser voado. Não seremos nós maiores do que os pássaros?
Mas não havia quem o respondesse. Todos já haviam partido.


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