domingo, 8 de janeiro de 2012

25.



Dos poemas de amor, e do que eles não dizem



Na palestra que ministrava, relacionando a poética de Fernando Pessoa (enquanto Alberto Caeiro) à metafísica de Martin Heidegger, meu amigo Elihad Siff, dentre outras, dizia:
“Um poema é uma coisa misteriosa: somente existe àquele que é poeta, àquele que foi seu autor. Um poema, por exemplo, não pode ser dado a alguém; pois pertence única e exclusivamente ao seu poeta, que é onde mora, encarnado. Diria mais: é o poeta que é possuído pelo poema, e não o contrário – em um modo diverso daquele da Musa que o inspira, no sentido etimológico mesmo de “soprando em seus ouvidos”. Como é o coração do poeta, também o “seu” poema – mas sem a, já explicada, possibilidade de um transplante. Não se pode fazer do poema um banquete eucarístico: ‘isto é o corpo: comei dele todos’. Mesmo os poemas escritos não vêm à luz, realmente; não são paridos dos poetas para os não poetas, ou para os tais. Poemas dados ao exterior são arremedos dos outros, interiores, essencialmente orgânicos; são simulacros, sombras imperfeitas, cópias que somente reproduzem o que é o poema, mas não ele, realmente. O modo como o poema é lido, mesmo por seu poeta, não é idêntico, jamais, àquele que há somente dentro dele – de sentimento único, intransferível; sentimento que procura captar uma intenção hsitórico-psicológico-social individual, e por isso mesmo, e para outros que não o poeta, incompreensível. Sim; todos os indivíduos, do mesmo modo que leem a Bíblia, o Corão, o Bhagavad Gītā, o Tao Te Ching e outros livros considerados sagrados – e mesmo os profanos –, leem um poema partindo sempre de seus próprios sentimentos, fé, finalidades e intenções. Não podem ler, realmente, um poema sem interpretá-lo com todas essas lentes próprias – do modo que julgam entender, segundo o momento real-já-imediato: bagagem cultural, nível intelectual, disposição de espírito, etc. Mesmo quando lidos por poetas, e em especial os poemas ‘dos outros’, os poetas também se perdem – como um que tenta segurar o vento com as mãos em forma de concha, ou encontrar o fim do arco-íris – em todas essas condições muito próprias, irreversivelmente ligadas às nossas hermenêuticas. E quando um poema é lido por um não-poeta, ele simplesmente não tem sentido. Não é de se admirar que, em se tratando de literatura, os livros de poesias sejam tão pouco procurados – apesar das recorrentes ondas que, vez ou outra, apadrinhadas pela mídia ou pelo sentimentalismo escatológico do Zeitgeist, fazem com que este ou aquele autor ganhe algum destaque entre os ‘mais lidos’, os mais ‘vendidos’, etc.”
Não obstante as considerações, Siff compôs um poema, que enviou à Marília, aquela “não sai do meu pensamento” – confidenciou-me com um sorriso alegre e triste: alegre pelo mero fato de pronunciar o nome da moça; triste porque desconfiava que as esperanças de havê-la eram pífias, senão nulas, completamente. Na íntegra, o poema é como segue:

Eu espero pelo dia, Marília
& pelo sol que nasce dos teus olhos.
Vejo o mar que me traz canções...
assoviando breves versos iâmbicos.
É do teu azul que ele se serve – vejo-o bem,
com os meu olhos de bem-querer.  

Mas você some no horizonte,
além dos limites de que disponho:
o meu olhar que se perde longe, longe...
Ai!, quem me dera ir contigo:
de onda em onda,
de mar em mar...
me desfazendo sobre os coqueiros,
sobre a brisa que te acaricia,
que nos arrasta por sobre o cais.

Ah!, Marília, menina!
Ah!, Marília, meu bem!
Aonde quer que eu vá,
você está lá também.

Depois de enviá-lo, como correspondência, e depois que releu o que havia escrito, julgou antiquado, piegas, cafona e apelativo. “Ah!, quem me dera poder resgatá-la antes que ela o receba!”, desejou. Afinal, quem suportaria o “grude” de um verso assim: “Ah!, Marília, meu bem! / Aonde quer que eu vá, / você está lá também.”
 A resposta de Marília, convincente, foi o silêncio. Siff lhe enviou novo poema, mais uma enorme e galanteadora carta. Novo silêncio. Silêncios que pareciam ficar cada vez maiores. Certo dia, em uma conversa que tivemos, cheia de filosofices, disse-lhe: “Há, na tristeza, um enigma de beleza. Como a do sol quando se põe, dourando o céu acima do horizonte distante. É uma metáfora do adeus. Mas o outro dia sempre vem; não é? Ah, meu amigo” – concluí, sentencioso –: “nunca mostre o seu poema a um não-poeta; ele rirá de você”. Mas, se a paixão não é cega, cega. A de Siff era bem assim. Depois lhe enviei este poema do Caeiro, que ele conhecia, naturalmente:

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão –
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que não o são.
Sentir é estar distraído.

Na ocasião, perguntei sobre os progressos das suas análises Pessoa-Caeiro-Heidegger, mas Siff ainda não me deu resposta. Se “sentir é estar distraído”, o pensamento é a festa dos sentidos.  


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