segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

26.


Da dialética psicológico-sentimental


Sérgio, coitado, era louco por Ana Ligia. Já nem sonhava com a moça; delirava. Tudo o que via ou fazia, evocava, de um modo embriagante e misterioso, o rosto doce e angelical da moça. Sem que notasse, dizia o seu nome enquanto dirigia: “Ana Liiigia...” Enquanto ouvia uma música qualquer ou lia algum livro: “Ana Liiigia...” Ana Ligia era, como uma deusa, onipresente. Mas ela o ignorava. Uma vez, fazendo doce, disse ao seu irmão, César, dando a entender que nada sentia em relação aos sentimentos de Sérgio: “Acho que o Sérgio está dando encima de mim! Quero nada com ele não”. Era um truque. E, de tais artimanhas, nenhuma outra criatura neste mundo foi tão bem dotada quanto as mulheres. Na medida em os homens são fortes por seus músculos, as mulheres por seus truques. Veja Dalila, veja Sansão.  
César, que era amigo de Sérgio, contou-lhe tudo, tal como a irmã lhe havia dito; mas não como confidência: palavras jogadas, sem aparente interesse. O “quero nada com ele não”, na boca de César, pareceu-lhe vir diretamente da boca de Ana Ligia. Ao mesmo tempo em que sentia uma estranha raiva dela, desejava dar uns murros no César, por ter sido mensageiro de palavras tão medonhas.
“Ah!, infeliz mensageiro da minha desgraça!”, pensou, contrariado. – “Porque tinhas de castrar assim minhas esperanças, e com uma faca tão fria e afiada? Por que aquilo que faz a felicidade do homem tem que se tornar também a fonte de sua desventura?” – perguntava-se, como um Werther apaixonado.
Tempos depois, desiludido, começou a sair com Lidiane – por quem sentia mais atração que amor, como ele mesmo me disse, ainda nas primeiras semanas.
Ana Ligia, por sua vez, sem receber as atenções de Sérgio e vendo-se ignorada por Assis, de quem dizia gostar, começou a sentir ciúmes de Sérgio, e mais ainda ao vê-lo rindo, feliz, de braços dados com “a outra. Ele, que nunca havia lhe esquecido, percebeu o quase disfarçado ciúme. E foi o suficiente para que, dias depois, começasse a observá-la como antigamente. O problema, agora, era Lidiane. Como fazer para pôr fim àquilo? Como chegar para ela e, sem um motivo aparente, dizer que nossa história termina aqui? Sören Kierkegaard, no Diário de um sedutor, afirma que é muito mais fácil começar uma relação amorosa do que desvencilhar-se dela, em havendo-a começado. E nada lhe garantia que Ana Ligia se tornaria, de fato, sua. Mas, e mesmo sabendo da tirania dos sentidos e do impulsivo e cego sentimento de conquista que habita em todos os homens, era preciso tentar; era preciso saber; nem que fosse para dizer a si mesmo: eu consegui!, ou: eu fiz o que pude.
Em relação à Lidiane, mais que um problema sentimental, Sérgio via, aí, um problema moral, um problema ético. Enquanto seu coração dizia: “abandone tudo, agarre o amor da sua vida”, sua consciência redarguia: “e Lúcia? Como é que ela vai ficar nisso tudo? E as pessoas, o que dirão?”
Nas coisas do amor romântico, porém, como todo mundo sabe, os apelos da razão e da consciência quase nunca são ouvidos. Contrario a isso, os chamados da Vontade (o desejo erótico-libidinoso) são como cantos de sereias. E aí de nós se não somos um Ulisses acorrentado. Mais que depressa o Sérgio encontrou um motivo para dizer adeus à Lidiane; e mais uma vez estava à mercê de Ana Ligia. Não começaram nada, porém, e por vários motivos; dentre eles, dois foram os principais: o pouco tempo decorrido no término de sua última relação e, requintada ironia, o fato de Assis haver começado a ligar para Ana Ligia, sugerindo um encontro em algum lugar, para um café, um cinema, uma conversa ou o “que você quiser”. Sérgio sabe sobre os telefonemas. Ela lhe contou. Talvez para enciumá-lo, visando alguma finalidade própria; talvez para valorizar-se enquanto caça, ou caçadora. Conversaram muito sobre muitas coisas, e sobre os tais telefonemas. Ambos concordam que Assis, com ela, somente sexo é o que deseja: sexo sem compromissos, bem casual, sem nada mais que... sexo.
À noite, porém, quando está sozinha, e antes de dormir, Ana Ligia inquieta-se, pensando: “Quem garante que ele não vai gostar de mim algum dia? Quem garante que não posso mudá-lo, tornando-o... menos galinha?” Sérgio, por sua vez, nem dorme. Sabe que as mulheres são bobas e, como mostram os tantos casos, têm queda por tipos assim, patifes e cafajestes. Basta uma conversa mole e longa, cheia de promessas e floreios que elas... Ah! O Sérgio, coitado, é louco por Ana Ligia.  
Aos personagens, nada é tão certo quanto a incerteza desta dialética sentimental, em que o amor aparece sempre adiante de nós: tão logo pensamos havê-lo alcançado, ele se mostra ainda mais adiante – como quem escondido no final de algum horizonte feliz.


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