29.
Da fidelidade à Terra
– Vencer-se a si mesmo – dizia Zaratustra –, eis o maior dos desafios. Pois não há nada mais terrível, mais violento e mais difícil do que alguém tornar-se o que se é. Mas eu vos anuncio o novo homem.
– E quem seria este novo homem? E o que ele faria? – perguntou um moço de aspecto muito altivo e curioso.
– O novo homem chamará a ilusão pelo nome que ela tem; que é o mais belo e falso e cruel de todos: Felicidade. Felicidade plantada e cultivada em uma perfeição desconhecida, e assegurada pela tradicional e milenar moral que amordaça e maquia a selvageria do amor possível: o único que há, e que os animais sem razão não sabem, por nada saberem; e que os homens não querem saber, quando animalizados.
– E que amor seria esse?
– O amor possível: o amor fati.
Zaratustra respondeu, e notou que os homens guardavam dúvidas em suas cabeças, contra as quais tornou a falar:
– Não desejar nada além do que se tem: a si mesmo e ao seu destino. Eis o grande grande amor.
– Como é que alguém pode vencer-se a si mesmo? – Alguém lhe perguntou.
– Aceitando-se em sua mais escura e profunda naturalidade, resistindo aos mecanismos e às máscaras que a civilidade lhe impôs ao longo dos séculos de escravidão: de ideologias e doutrinas supralunares, supranaturais. Para tamanha grandeza, porém, é requerido mais que a razão, que é necessária. É necessária a abertura para o fado contingente, para que ele seja aceito e amado. É necessário o amor à terra, a fidelidade à ela e ao que não se esconde por sobre as nuvens, ou por detrás dos espelhos. Ah, meus amigos!, por que haveríamos de abrir uma porta que está aberta, ou fechar a outra, que está fechada?
Ninguém disse nada. Zaratustra continuou:
– Somente quem compreende e aceita o longo caminho a ser trilhado em tal ascese pode, de fato, iniciar esta que é a maior de todas as odisseias: de dentro de si mesmo até os picos dos montes mais elevados, onde os ventos fazem morada, e onde se pode ter olhos como os da águia que veem muito longe, e do alto. Sim, é preciso não temer o despir-se da própria pele com a adaga de Orestes. O novo homem há de compreender que, vencendo-se a si mesmo, terá por saldo e glória, e dos mais nobres e elevados, a indiferença e a desesperança. Indiferença sobre o amor ideal, ou a felicidade: de perfeições impossíveis e prisões certas; desesperança de não esperar por uma perfeição mundana ou extramundana, sobre qualquer coisa que esteja no mundo – que é o que há, e do jeito que é. Com os olhos do dia, o homem dos olhos do dia não conhecerá noite alguma, somente a sua condição ligada à hora. O novo homem, a tudo amando com amor fati, poderá facilmente, com o amour de soi, nada amar com a paixão cega, nada temer com a vontade entorpecida, nada querer com o amor romântico e suas desmesuras.