segunda-feira, 30 de abril de 2012


62.






Do bebop jazz ao tropicalismo, ou: De quando o autor é o tempo*



– “Nas partes...” Nas partes o caralho!
– Surtou, foi? O que tem as partes do caralho?
– Patativa só quer ser o engraçadinho! – Jorge disse, fechando o livro que lia e me tomando a pequenina peça de artesanato, que eu segurava. – Essa aqui já tem dono, Gafanhoto – era assim que ele me chamava, por causa de uma longa história que não vem ao caso nesta história. – Às vezes penso que os séculos de medo, de ideias dominadas por doutrinas que condenavam o corpo dos escritores ao suplício, aqui na terra, e suas almas, depois daqui, fizeram um estrago muito miserável na alma do Ocidente, em relação à sua literatura.
– Quê que tá pegando, Jorge?
Jorge Hippie era um amigo querido, lá de Crato, Ceará. Um hippie que não acreditava mais na ideologia hippie, e que dava aulas de História na URCA. “Eu ensino para pagar as minhas contas, Gafanhoto; e vendo meu artesanato para me divertir e conversar com as pessoas reais, do mundo real. Diferentemente do Cazuza, eu vivo muito bem sem uma ‘ideologia’. ‘Mas isso é também uma ideologia’, você poderia dizer. Mas eu falo é daquelas pelas quais se vive ou se mata, e pelas quais surgem os mártires, os que querem mudar o mundo. Não sirvo para isso.”
Como eu não dissesse nada, ele, agora trabalhando em um fio de cobre para alguma das suas peças, se explicou:
– Esse... “pudor” que foi imposto pela moral cristã-ocidental, que ainda prende os autores em suas expressões, em seus estilos, em suas maneiras de transmitir ideias é... Olha isso: “Era esse o inconveniente de jogar no gol, embora também tivesse outros tão insuportáveis quanto esse, como receber boladas no meio do peito ou nas partes.” “Nas partes” o caralho! Duvido que se não fosse essa moral e esse medo de falar das coisas como elas são, do modo como são vistas, sem todas essas travas da linguagem, às vezes bem inconscientes, ele escrevesse assim. Escrevia nada! Teria escrito era “nos ovos”; receber “boladas nos ovos”.
Jorge estava lendo, ou começando a ler, As dançarinas mortas1, do espanhol Antonio Soler. Daí lembrei-me do comecinho de A queda, de Camus, quando o advogado (o “juiz-penitente”, como se autodenomina), num bar de Amsterdã, entre os marinheiros, em seu exame de consciência, fala a um anônimo: “Meu senhor, posso oferecer-lhe meus préstimos, sem correr o risco de ser inoportuno?” Também tinha o comecinho de Pantaleón e as Visitadoras, de Mario Vargas Llosa, quando ele fala de um sujeito que, em Leticia, se crucificou para anunciar o fim do mundo. Recolhido ao hospício, foi retirado de lá pelas pessoas que o consideravam santo, etc. Enfim, não era a mesma coisa das “partes” de Soler, da reclamação de Jorge, mas mostrava como, de certo modo, há mesmo essa coisa do pudor, da polidez, dos níveis infra e supralunares da tensão hora santa hora profana: o espectro do cristianismo com a sua moral, juíza e carrasco, como o index provava. O medo havia sobrevivido nas entrelinhas, feito erva daninha ruim e resistente – e mesmo na literatura de autores sádicos como... Sade. E ai de Sade, para a fama de Sade, se não fosse isto: a sua contraparte moral. É como se não houvesse um meio de fugir àquilo que, nas teses sobre a comunicação, possibilita a compreensão das coisas, e das intenções – mesmo quando para contestá-las. Entre o sujeito A (o autor, o escritor, etc.) e o sujeito B (o leitor, o ouvinte, etc.) há uma série de abismos que, para que uma obra – a literária, em nosso caso – faça sentido, precisam ser transpostos. Coisa que nunca é, nunca mesmo, cem por cento.


– E então, Gafanhoto? Será que é preciso inventar uma nova linguagem para o mundo de hoje?, ou fazer frente aos vícios da atual, que domina não somente os compêndios de teologia e de filosofia, mas a chamada grande literatura?
– Ironia? – perguntei, com sinceridade.
– Não, né?! – ele disse.  – Falo de, quem sabe, uma coisa assim meio, meio Arturo Gouveia. Algo como no “Tânatos também te contempla”, do Santíssimas trevas2; ou como nalguns contos d’O mal absoluto3. Embora também o Arturo...
– Parece que eu preciso ler o Arturo. Pensei nos beats – falei, sem me aprofundar.
– Pois é... “os beats”; você diz. Quando o “pai dos beats” se apresenta, no Lonesome traveler4, ele próprio diz que não foi um deles. E também tem o problema dos gêneros literários, das épocas, do público-alvo e dessas porras todas. Pra tu vê, Gafanhoto: em 1940, a estética da espontaneidade estava, nos Estados Unidos, com os artistas que criticavam o racionalismo, o dualismo e o individualismo ligado ao liberalismo empresarial. E quem eram esses artistas? A maioria era filho de imigrantes judeus, de poloneses, de italianos e de irlandeses. Uma galera meio excluída dos grandes centros, meio fodida mesmo. A “expressão livre” que buscavam, fora dos “cânones culturais anglo-americanos”, na dança, na pintura, na música, na literatura e em outras artes, era um levante contra esse “controle burocrático associado ao liberalismo empresarial”, como li em alguma coisa do Daniel Belgrad.5
– Hummm... – eu não fazia a menor ideia sobre quem era o tal Belgrad.
– É, cara! Falavam em uma “intersubjetividade”. Palavrinha que grudou geral.
– Foi mesmo. Ainda hoje...
– E sabe em quem eles se fundamentavam? Trabalhos de Dewey, Whitehead e Jung, além dos existencialistas, e do surrealismo, e da psicologia gestalt e do zen-budismo. Os caras encaravam a arrogância eurocêntrico-ocidental com um pluriculturalismo que abraçava os índios, entende? A cultura nativa dos índios dos Estados Unidos da América... tipo tomando as dores do Enterrem meu coração na curva do rio, saca?, mesmo tendo sido só depois.6  
– Caramba! Tu se liga mesmo nessas coisas, né?
– Sim, meu broder! É preciso ficar ligado. E o bebop...
– Isso mesmo! Me fala aí sobre o bebop.
Bebop jazz. O bebop jazz destacava a importância que era dada ao holismo corpo-mente, naquela época; e também estava ligado à estética da espontaneidade.
– Como era isso?
– Construído no idioma afro-americano, era uma conversação espontânea de vozes prosódicas...
– Vozes o quê? – foi uma pergunta honesta.
– Prosódicas, Gafanhoto. Tu não se liga? De “prosódia”, saca? Que tem a ver com o ritmo, a entonação, a métrica, etc. Então, com base nisso, os caras entendiam que os sentidos de uma elocução verbal estavam em sua produção corporal, e não na sua simbologia.
– Ok!, mas estávamos falando de literatura, não? – eu tinha a impressão de que estávamos entrando num papo meio... gramático-musical, e confesso que estava bem perdido naquilo tudo.
– Meu irmão!, se ligue! É dai que nasce a famosa escrita espontânea de Kerouac, tá entendendo? O cara ligava o consciente ao inconsciente e disparava, integrando coisas à coisa, e essas coisas todas. Como é que tu acha que nasceu o On the road, hem? Foi assim, nessa vibe aí.
– Hummm... Me passei! – tive de admitir. Jorge continuou, cheio de empolgação:
– Na década de 1950, essas propostas de espontaneidade estavam voltadas contra a Guerra Fria, e era uma crítica social muito viva e abrangente. A prosódia espontânea dos beats, do mesmo modo que foi no bebop jazz, via o liberalismo empresarial como o grande vilão da cultura enlatada, plastificada em fórmulas e modelos estanques, prontos para vender fácil, expandir o consumo e deixar tudo no status quo de sempre, e a cabeça das pessoas, principalmente. Mas esses caras, ah!, meu irmão!, Esses caras queriam arrebentar com isso tudo; queriam incendiar a coisa toda. Tem uma frase, acho que é de Kerouac: “Só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu próprio sangue. Eu só confio em autores que escrevem com o sangue7.”  Pronto!, está aí, eram esses caras. Não foi por acaso que, depois dos beats, e pela influência que eles tiveram, surgiu a new left. Essa, por sua vez, pariu a contracultura dos hippies loucos e coloridos, em 1960. Tu se liga que está tudo encadeado?  
– Tu fala desse jeito, com os teus alunos?
– Ihhh!, qualé o problema, véi?! Os caras são descolados e não se ligam nessa coisa de “formalidade” não. Claro que tem os limites, né? Porque senão... 
– Jorge, desculpa perguntar – disse, confessando minha ignorância –: o que tu quer dizer com new left é mais do que “nova esquerda”, não é? Ou, melhor: o que era essa new left, aí?
– Tu pensa logo em política, né? E tem. Mas acho que eu não saberia explicar isso direito; não agora.8
– Então – procurei retomar o tema –, você falava dessa progressão dos movimentos e tal, e como isso afetava a produção literária, etc.
– Então, maluco?! No começo dos anos 60 os caras entraram numa de dadaísmo, explorando e ironizando expressões artísticas anteriores, substituídas pelo expressionismo abstrato e a pop art, como o crítico inglês Lawrence Alloway chamou a escola, parece que iniciada a partir de uma colagem de Richard Hamilton, chamada: “O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?”, de 1956. Doidera, né?
– Ôoo!...
– Daí só foi viagem e delírio: um parque de diversões na cabeça. Aqui houve, antes, a semana de arte moderna; lá, o jazz dava lugar ao rock-and-roll; e veio a LSD e as experiências transacionais, e aquelas viagens loucas à Índia, e o louco do Timothy Leary, e o festival de Woodstock, e Os Mutantes, e O Terço, o tropicalismo e o escambal. Um desbunde na cultura indie-alternativa, para cima e para baixo.  
– Voltando aos beats – chamei a palavra para mim. – Mesmo eles, como você falou, foram homens de seu tempo. Na desambiguação desses portraits instantâneos, como posso ver em poemas de Ferlinghetti ou na prosa espontânea de... Burroughs, por exemplo, há o experimentalismo que, hoje, sabermos os efeitos...  e, talvez por isso, uma inibição quanto ao repetir dos processo já... gasto. Sei lá! – eu não tinha, naquele tempo, o vocabulário do Jorge, e nem a sua bagagem cultural, e menos ainda a sua desenvoltura em falar as coisas que pensava, com ordem e clareza. – Acho que não sei dizer tudo como quero – confessei, embaraçado. – Penso que a novidade dessa literatura dos anos 50/60, ainda bem atual, foi soma de muito ácido mais o holismo que não ignorou obras não ocidentais, como a poesia haiku, o Kama Sutra, os koans, o I Ching, o Bhagavad-Gita e a ioga, dentre outras. Logo, um tipo de fórmula. Mesmo assim, como você também sugeriu, estava lá o “tempo ocidental”, e os seus signos, por toda a parte, nas entrelinhas. E como poderia ser diferente? A pergunta é bem simples, mas a resposta, não. Que “nova literatura” poderia estar livre disso?
– É! Mesmo assim, e se não é possível criar uma nova linguagem, é preciso desafiar as estruturas da narrativa convencional, quando elas parecerem engessar a criatividade, a ousadia que salta mais longe. Sem pólemos não há progresso; e a beleza estagnada, como o pôr-do-sol em um postal ou um rio parado numa pintura, nunca é mais linda que o real.
– Não é – concordei.
Jorge não disse nada por alguns instantes, e nem eu sabia mais o que dizer. Parecia que havíamos andado, andado e, então, voltado ao mesmo lugar de onde antes havíamos saído.
– E essa história toda não implica em ideologia, pregação ideológica; e nem em uma mensagem ou verdade cheia de “valores inegociáveis” e essas coisas todas.
– Tudo bem. Não pensei nisso – deixei que ele acreditasse que eu acreditei, para que ele ficasse tranquilo. – É difícil falar estando sempre do lado de fora, sem os recursos que estão presos no lado dentro... Ah!, você sabe.
– Caralho! Deixa isso pra lá – ele disse.
– É – respondi. – Deixa quieto.




* Trata-se de um brevíssimo diálogo sobre a transmissão de conteúdos, e conteúdos morais, na literatura engessada (inclusive na  prosa espontânea da literatura beat); e, embora malfadada, a proposta de uma literatura realmente livre, honesta e de vanguarda. Nele, no diálogo, sou mais espectador que ator, papel que cabe ao meu bom e querido amigo Jorge Hippie – de quem espero não haver corrompido as falas, e a honesta intenção.  
1 Publicado no Brasil em 1998, com tradução de Sérgio Molina, para a Companhia das Letras.
2 Cf. GOUVEIA, Arturo. Santíssimas trevas. João Pessoa: Editora Idéia, 2008. 
3 Cf. GOUVEIA, Arturo. O mal absoluto. São Paulo: Iluminuras, 1996. 
4 Jorge se referia, certamente, a esta confissão: “Na verdade, não sou um beat, mas sim um estanho e solitário católico, louco e místico...” Não saberia dizer como ele teria tido acesso ao livro (provavelmente em inglês, já que o citou pelo título original), uma vez que a primeira edição, em português, somente apareceu em 2005, com tradução de Eduardo Bueno, para a L&PM. Quanto à citação, ver: KEROUAC, Jack. Viajante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 10. Penso, igualmente, que o sentido do “não ser beat”, aí, de Kerouack, tem a mesma natureza do “não ser um autêntico vagabundo”, como ele diz de si mesmo, na mesma obra – no último capítulo: “O vagabundo americano em extinção” –: “Eu próprio fui um vagabundo, mas só até certo ponto, como se vê, porque sabia que algum dia meus esforços seriam recompensados com a proteção social – não fui um vagabundo autêntico, sem esperanças...” (p. 208); ou seja: um beat, um legítimo beat.   
5 Depois soube que se tratava do livro: The culture of spontaneity: improvisation and the arts in the post-war America (Chicago: The University of Chicago Press, 1998). Estamos em agosto de 2009, e eu não sei se já há alguma tradução para o português.
6 Lançado em 1970, Enterrem meu coração na curva do rio (Bury my heart at wounded knee), livro do americano Dee Brown (1908-2002), relata a destruição sistemática e progressiva dos índios da América do Norte. O livro reúne registros oficiais, autobiografias, depoimentos e descrições de primeira mão, nas palavras dos grandes chefes e guerreiros das tribos Dakota, Ute, Soiux, Cheyenne, dentre outras. É um livro triste, honesto e incrivelmente belo. No Brasil, a primeira edição é a do Círculo do Livro. Cf. BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. São Paulo: Círculo do Livro, 1974. 
7 A frase, na verdade, é de Nietzsche, na primeira parte de Assim falou Zaratustra (Do ler e escrever). Completa: “De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito. Eu só confio em autores que escrevem com o sangue.” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 40). A citação de Kerouac: “Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas.” (KEROUAC, Jack. On the road. London: Penguin Books, 1976. p. 12). Jorge, naturalmente e involuntariamente, deve ter trocado uma citação por outra.
8 Fundada em 1960, no Reino Unido, a New Left Review resulta da fusão de dois outros periódicos, o New Reasoner e o Left Review, ambos de tendência marxista. O nome vem de um texto de 1960, do sociólogo americano Charles W. Mills, Open letter to the new left, em que ele acusava a “Old Left”, tanto a comunista como a reformista (e também os liberais radicais) de haverem traído os ideais de liberdade e justiça. Fundamentando-se na Teórica da Alienação, do Jovem Marx, Mills provocou grande impacto entre os jovens intelectuais das décadas de 1960 e 70, principalmente. 


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