59.
Da paixão do socialismo e outros ismos que amam mais...
Devidamente acomodado em minha
poltrona, saquei da mochila um exemplar d’A
paixão do socialismo & outras histórias, de Jack London, publicado pela
L&PM. A senhora gorda, no banco ao meu lado, no outro lado do corredor do
avião, parecia capaz de dar o braço direito para ver o que eu estava lendo.
“Mas é curiosa a criatura!”, pensei, disfarçando não ver a risível cena de
contorcionismo. Como se não me desse por conta, deixei que ela visse de uma vez
a capa do livrinho, enquanto eu fingia ler a contracapa:
Então, voltei à classe operária, na qual havia nascido
e à qual pertencia. Não me preocupava mais em subir. O imponente edifício
da sociedade não guarda delícias para mim acima da minha cabeça. São os
alicerces do edifício que me interessam. Lá, eu estou contente de trabalhar, de
ferramenta na mão, ombro a ombro com intelectuais, idealistas e operários com
consciência de classe, reunindo uma força sólida agora para mais uma vez pôr o
edifício inteiro a balançar. Algum dia, quando tivermos poucas mãos e alavancas
a mais para trabalhar, vamos derrubá-lo, com toda sua vida em putrefação e sua
morte insepulta, seu egoísmo monstruoso e seu materialismo estúpido. Então
vamos limpar os porões e construir uma nova moradia para a espécie humana, onde
não haverá andar de luxo, na qual todos os quartos serão claros e arejados, e
onde o ar para respirar será limpo, nobre e vivo.
Acabei relendo todo o texto, e
lembrando que foi por causa dele que, em 1997, ano em que essa versão foi
lançada, comprei a referida, que é de uma coisa assim meio... beat, meio “sei lá o quê”. “Negócio
lindo da porra!”, eu pensava. Como me tornei socialista e A paixão do socialismo são dois ensaios, e o relato mais vívido e fiel que o
autor de O chamado da floresta já
produziu, e são uma delícia. Em De vagões
e vagabundos, que é um conto, London ensina como você podia se infiltrar
clandestinamente nos trens que atravessavam o país; é praticamente um manual de
como fazê-lo. É ainda um relato muito vivo de como os vagabundos e os viajantes
clandestinos eram tratados pelos guardas e fiscais das estações. Há uma cena de Na natureza selvagem (Into the wild, 2007), filme de Sean
Penn, em que Chris McCandless (interpretado por Emile Hirsch) experimenta esse tratamento – ele que era leitor
de Jack London. Eu não tinha dúvida: A
paixão do socialismo & outras histórias era o melhor de todos os livros
que eu já havia lido, de Jack London.
Sem se fazer de rogada, e
exibindo a sua verve de leitora exemplar, a senhora gorda sacou de sua bolsa grande
e dourada um exemplar de Tempo de esperas
(Editora Planeta, 2011), do padre Fábio de Melo. Impressionou-me o fato de ela
não largar o livro – coisa que fiz, depois de umas 6 ou 7 páginas – até que
chegássemos ao Aeroporto Internacional de Brasília, onde nos separamos pela
conexão. Na noite do mesmo dia vi uma citação de uma reflexão do mesmo padre, elogiada como
coisa muito inspirada e muito profunda.
Só dê ouvidos a quem te ama. Outras opiniões, se não
fundamentadas no amor, podem representar perigo. Tem gente que vive dando
palpite na vida dos outros. O faz porque não é capaz de viver bem a sua própria
vida. É especialista em receitas mágicas de felicidade, de realização, mas
quando precisa fazer a receita dar certo na sua própria história, fracassa.
Tem gente que gosta de fazer da vida alheia a pauta
principal de seus assuntos. Tem solução para todos os problemas da humanidade,
menos para os seus. Dá conselhos, propõe soluções, articula, multiplica,
subtrai, faz de tudo para que o outro faça o que ele quer.
Só dê ouvidos a quem te ama, repito.
São os três primeiros parágrafos
de Só dê ouvidos
a quem te ama1. O padre Fábio mantém
uma coluna no site da Comunidade Canção Nova, da qual faz parte, encompridando a fila dos textos fúteis de autoajuda espiritual, cafonice piegas e senso comum barato. Nela, ele é
apresentado como professor em curso de teologia, cantor, compositor, escritor e
apresentador do programa “Direção espiritual”, na TV Canção Nova2. Lembrei na hora de algo que eu havia
lido em Stendhal. Algo que, embora também imerso no romantismo idealista, era menos
delirante, pelo menos: “No meio de operações tão enganosas para o desejo da
felicidade, a cabeça se perde”, ele diz; e completa: “A partir do momento em
que ama, o homem mais sábio já não vê nenhum objeto tal como é. Ele exagera para menos suas próprias vantagens e para
mais ao menores favores do objeto amado3.”
A ênfase, em itálico, é do próprio Stendhal. Ele, em uma nota de rodapé ao que
aí afirma, e referindo-se ao sentimento romanesco
(de wayward) na literatura francesa
do século XVIII e anterior, se lança para o futuro, em um século.
Há uma causa física, um
início de loucura, uma afluência do sangue ao cérebro, uma desordem nos nervos
e no centro cerebral. Ver a coragem efêmera dos cervos e a cor dos pensamentos
de um soprano. Em 1922 [o De l’amour foi escrito entre 1820/22], a
fisiologia nos dará a descrição da parte física deste fenômeno.4
O autor antevê a explicação
mecânica do amor-gosto – referindo-se ao romanesco,
presente na obra de autores como Crébillon, Lauzum, Duclos, Marmontel,
Chamfort, madame d’Épinay, etc. –, que desnuda a dependência confiante nos sentidos, na tirania da afecção, elucidada
à força da razão, contra o sentimento confiante da/na primeira infância do amor-paixão.
Sim, pois o amor romântico, diferentemente disso, é semelhante à fé, que não
tem – e nem pode – argumentos. Para Esmé, com amor e sordidez, é conto de J. D. Salinger. Nele, um soldado americano de passagem pela Inglaterra,
prestes a embarcar para o Dia-D,
narra a sua conversa com a menina que dá nome ao conto:
Esmé lançou um olhar demorado, vagamente clínico.
- Você tem um senso de humor muito apurado, não é? - falou, suspirosa. -
Papai dizia que eu não tinha nem um pouco de senso de humor. Que eu estava
despreparada para enfrentar a vida porque não tinha senso de humor.
Encarando-a, acendi um cigarro e disse-lhe não acreditar que o senso de
humor tivesse qualquer utilidade numa hora de aperto.
- Papai disse que tinha.
Tratava-se de uma afirmação de fé, não de um contra-argumento, por isso
resolvi bater rapidamente em retirada.5
Como as afirmações da fé, as
afirmações do amante ao seu objeto são comprometidas por uma nuvem sentimental.
Essa, em seu pensamento, produz o mesmo resultado que a fé, ao seu coração:
obnubila o real, em favor da fantasia, nas atribuições que estão fundamentadas
unicamente no desejo (ou no delírio) de uma felicidade referida ao próprio
objeto, ao qual se prende – e pensa-o externo a si. É um equívoco pensar
assim. Não há liberdade no amor romântico, somente prisões.
Amar é achar-se preso ao objeto
amado, e querer continuar preso a ele, por “vontade própria” – como diz Camões,
imitando os versos de Petrarca, pedra fundamental da poesia lírica italiana. A
sã consciência não desejaria, jamais, qualquer prisão. O que ama, porém, não
tem sã consciência: nem sabe disso, nem deseja compreender e menos ainda pagar
o preço de tão dura, fria e pura “liberdade”. Passarinho que cresce em gaiola,
se solto, morre. Onde há amor, não há liberdade.
Noutra meditação – A diferença entre amar e estar apegado6 –, o padre Fábio é de opinião contrária
a minha: “O amor nos dá aquele sentimento de liberdade, enquanto que o apego
nos aprisiona e pensamos que as pessoas devem agir da forma que queremos. O
amor é livre! Quando estou apegado a alguém ou a alguma realidade, eu faço do
outro meu escravo”, ele afirma.
O “apego”, se levamos mesmo a razão
a sério, é somente uma forma vaga de falar livremente sobre um aspecto raso do amour de soi, que é o que há, o que mais há,
e o que nós, seres humanos – cheios de fé ou de ceticismos – podemos ter,
conhecer. Os “outros amores” não são mais que idealismos romantizados,
credulidade infantil, extravagâncias metafísicas. No “Código de amor no século
XII”, transcrito no De l’amour, de
Stendhal, a regra 9 é a afirmação de que: “Ninguém pode amar se não é levado
pela persuasão de amor (pela esperança de ser amado)7.”
É o mesmíssimo estado de graça que é encontrado na fé religiosa (cristã):
estado de dependência, de prisão: “Nenhum homem pode amar a Deus sem que ele,
antes, por sua graça, o ame primeiro e, pelo seu Espírito, persuada a que este,
receptor da graça, também o ame.” Assim, do mesmo modo que alguém diz: “Deus me
libertou”, poderia também dizer: “Deus me prendeu, tornando-me um servo seu”,
ou ainda: “Estou preso à fé, à minha fé, que me foi dada por Deus, e pela qual creio
que sou livre.” Equívocos de equívocos! Os juízos sobre tais questões são
sempre melindrosos, principalmente porque não partem de uma mente sã, isto é: desapaixonada.
“Toda ação do amante termina em pensar na pessoa amada.” É, novamente, o código8.
Foi o amour de soi (amor ao conforto de crer sem refletir com critérios, e
com lógica; amor ao direito de voltar logo para casa, com uns trocados no bolso;
amor às próprias opiniões, por preguiça de procurar a verdade, etc.) que levou
os 360 jurados – de um grupo de 500 – do Tribunal de Heliéia a condenarem
Sócrates (em 399 a.C.), “o mais
corajoso, o mais sábio e o mais íntegro de todos os homens”, nas palavras de
Fédon9.
Foi o amour de soi (o amor à segurança que as tradições parecem oferecer;
o amor à fé que não exige reflexão dura e criteriosa, com lógica; o amor à
leveza do depois de depois da cólera; o amor às convicções de líderes que se
afirmam portadores das verdades inegociáveis, etc.) que levou a multidão,
diante de Pilatos, conforme o evangelista, preterir o Cristo, entregando-o à
cruz, e fazendo o próprio Pilatos confessar: “Estou inocente do sague deste
justo. Que a culpa da morte dele seja vossa.10”
A multidão dos gregos, a
multidão dos judeus, a multidão dos erros, nos erros...
Não é que as opiniões do senso
comum estejam sempre erradas. São as minorias que comandam as maiorias, e as
minorias podem estar equivocadas, ou com más intenções, ou compradas. O fato de
o senso comum gozar de grande aceitação não lhe garante legitimidade, nem
validez inquestionável; nem de longe. Aqueles que discordam das multidões,
também, nem sempre têm razão. Nas coisas do amor, por exemplo, poucos são os
que subscrevem as teses de Freud ou Schopenhauer, e quando às conhece: julgando-as
ou lascivas, ou pessimistas, ou equivocadas ou “outras coisas”. Subscrever
talvez não seja, aí, a melhor palavra – pois pode dar a entender uma aceitação
sem critérios; o que não é o caso, realmente. Esses dois pensadores, no
entanto, foram os que mais compreenderam o papel da Vontade (ou da Pulsão) na
vida das criaturas. E a ação da Vontade (ou a Pulsão) que foi maquiada com os
mais diversos nomes11, todos
eles enraizados em algum floreio que terminava no Amor12, e esse sempre querendo ir muito mais além
do que as asas de Cupido (pequenas demais para alçarem voo) poderiam oferecer.
Preso ao chão, ligado à terra, o amor (qualquer que seja o nome que você dê a
ele) é daí, vem daí e aí morre. É como eu já disse no miniconto aí atrás, o De l’amour (que tomei emprestado de
Stendhal): ideias fazem amor, e pessoas fazem sexo.
Falando nisso, agora mesmo escuto os gemidos “de amor” da garota que faz sexo aqui no apartamento logo acima do meu. Deus!, como ela grita! Meu último pensamento: “Esses danados
deveriam aprender a trepar mais baixo. Isso atrapalha a concentração de
qualquer vivente.”
1 Disponível em: <http://pensador.uol.com.br/autor/padre_fabio_de_melo/>
Acesso em: 19 de abr. 2012.
2 Cf. <http://www.cancaonova.com/portal/canais/formacao/buscolunista.php?int1=6>
Acesso em: 19 de abr. 2012.
3
STENDHAL. Do amor. Porto Alegre:
L&PM, 2011. p. 29-30. (Col. L&PM Pocket).
4 STENDHAL, 2011. p. 30.
5 SALINGER,
J. D. Para Esmé, com amor e sordidez. In: _____. Nove histórias. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, [s.d.], p.
86.
6 Disponível em: <http://www.cancaonova.com/portal/canais/formacao/internas.php?id=&e=12150>
Acesso em: 19 de abr. 2012.
7 Amare nemo potest, nisi qui amoris suasione compellitur. (Cod., regra 9, fl. 103). STENDHAL, 2011. p. 257.
8 Quilibet amantis actus in coamantis cogitatione finitur. (Cod., regra 34, fl. 103). STENDHAL, 2011. p. 257.
9 PLATÃO. Fédon, 117e-118c. “Os jurados que ocupavam os bancos do
Tribunal de Heliéia não eram especialistas. Entre eles havia um número insólito
de velhos e feridos de guerra que recorriam àquele tipo de trabalho como um
meio fácil de conseguir uma renda extra. O salário era de três óbolos por dia,
quantia menor que a recebida por um trabalhador braçal, mas representava uma
boa ajuda para aqueles que já contavam 63 anos de vida e estavam entediados. Os
únicos requisitos eram cidadania, sanidade mental e ausência de dívidas –
embora a sanidade mental não fosse avaliada segundo os critérios socráticos;
bastava demonstrar ser capaz de andar em linha reta e saber dizer o próprio
nome quando fosse requisitado. Os membros do júri cochilavam durante os
julgamentos, raramente possuíam qualquer experiência em casos semelhantes ou
leis que fossem relevantes e não recebiam qualquer orientação sobre como chegar
a um veredito.” (DE BOTTON, Alain. As
consolações da filosofia. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 44).
10 Mat.,
27, 24.
11 Inclusive o de “moral”, candura, retidão, limpidez,
etc.
12 Não mais o Eros,
naturalmente. A “redenção” de Eros se deu – no idealismo moral cristão – através
do ágape, que doma as paixões
carnais, medindo-as e ajustando-as ao equilíbrio equânime (ou à medida) do Bem
e do bom, conforme a ortodoxia da doctrina
christiana, e segundo as Escrituras.