61.
Do falar com as paredes
No poema “Do amor desesperado”, no Divã
do Tamarit*, Lorca fala da relação
de intimidade entre os amantes e a noite, em um triângulo que nem sempre é
saudável. No referido poema, a noite é apresentada como obstáculo a um casal:
A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei,
ainda que um sol de lacraias me coma a fronte.
[...]
“... ainda que um sol de lacraias me coma a fronte.” Ah!, a que loucuras
se submetem aqueles que amam?! Quantas promessas!? Quem saberia dizê-lo?
“Aquela filha de uma puta disse que ligava entre 22 e 22 e 30”,
Lucy pensa, enquanto bebe mais uma dose de Bombay Sapphire. “Deve estar fodendo
com um viadinho qualquer, por aí! Vaca miserável!” Lucy também se pergunta por que,
afinal das contas, e se essa “sua garota” é tão isso mesmo, “ainda me importo?” Certo é
que o tempo vai passando e nada de o telefone tocar. “Maldito telefone! Maldito!...
Talvez unzinho me deixe mais calma”, pensa. “Essa erva que o Pedro me passou é
mesmo muito boa. Preciso lembrar de encomendar mais, assim... uns três quilos.”
Quase consegue rir com o pensamento bobo. Mas, não. “Toca telefone miserável!,
toca!” Nada. O aparelho está lá, jogado no sofá, morto, mudo e apagado. “Será
que tá desligado?”, pensa. Não; não está. Aproveita e vê a hora.
22:47.
Lucy senta no sofá, largada. Relê mensagens antigas em sua Caixa de
Mensagens. Acha melhor não ficar fazendo isso. Acha melhor apagar algumas. Acha melhor respirar um pouco de ar. Levanta do sofá e, ao fazê-lo, nota que está meio tonta: “Esse gin é foda!”, pensa. Vai assim, meio cambaleando, até
a janela. Vê o movimento noturno: o prédio ao lado, com algumas luzes acesas;
os carros passando lá na pista do outro lado, com seus faróis vagalumeantes... “As
pessoas parecem felizes, ou dopadas”. Lucy volta para a sala, e fica dando voltas
de nenhum lugar para lugar nenhum.
Agora são 23:58.
Lucy fala com as paredes, olhando detalhes em sua pintura, e tem o
olhar vago e perdido. “Eu poderia cheirar um pouco. É, Lucy!” diz a si mesma, “isso vai
te animar e te deixar ligada para quando aquela idiota resolver ligar, como prometeu.”
Dentro do vidrinho colorido com uma estampa de Nina Simone fumando, em preto e
branco, e por trás dos livros de Alain de Botton, na estante da sala, a “alegria”...
Depois, um cigarro, e um pensamento sobre a sua vida, sua maldita vida, e o que
anda fazendo com ela. Outra dose de gin, para manter o efeito. E Lucy está no
céu, sem diamantes. Começa a desconfiar de que essa sua roupa “de Kelly Key” “não
me fica muito bem”. Vai ao roupeiro e, procurando algo menos cheguei, encontra
o seu revólver – um Tracker, RT 970, calibre 22. “Você é lindo! Bem que eu
poderia pôr um fim nessa merda de uma vez...” Não!, não!, seria fácil demais. Guarda
o revólver lá no alto, por trás dos lençóis dobrados. “Parece que o show do Wander
Wildner vai ficar pra outro dia. Merda! A essas horas já deve ter começado. Que
horas são?” Lucy volta à sala. Agora está com o vestido baixado até a cintura, e
sem o sutiã. “Quero que se foda!” Diz a si mesma, pensando que algum vizinho do
prédio ao lado possa estar lhe ver assim. “Que horas são?” Pega o telefone e
nota que já são 02:05, e “aquela puta dos infernos merece um soco bem no meio
da cara, e um gelo antártico. Vadia miserável! Vou mostrar a ela.”
Lucy percebe que, “caralho!, meu coração está disparado!” Sente-se
tonta e cai no sofá, com a mão no peito. Tenta inspirar-respirar, e o ar parece
sufocado, e a respiração difícil. “Será que essas porras todas vão foder comigo
hoje?” Está muito alterada. Ela sabe. “Um baseado poderia me deixaria numa boa,
não era?, ou piorar... Ai, buceta!” Lucy sabe que precisa resolver logo isto:
essa coisa de depender desesperadamente de uma pessoa, e de esperar tão loucamente
por uma ligação salvadora. “Eu poderia ligar pra ela. Mas, agora!?... Puta
merda! Não seria legal; e não no estado em que estou... Só iria piorar ainda mais essa merda
toda! Eu poderia falar umas merdas e... Merda!”
03:23.
Lucy está acordada. Liga a TV. Toma um Lexotan. “Merda!, merda! A noite
já era!” É justamente quando pensa assim que, para seu enorme susto e alegria,
o telefone toca...
– Ai, meu Deus! Será?!...
Levanta de um salto. Suas mãos tremem, e sua voz também, quando atende
à chamada que é... uma ligação errada.
*
Os sonetos do Divã do Tamarit foram
lançados no Brasil, com tradução de Afonso Félix de Souza, juntamente com Os sonetos do amor obscuro, duas pequeninas
obras póstumas do espanhol Federico García Lorca (1898-1936), pela editora Bertrand
Brasil, em 2002. Conforme os editores, a família de Lorca exige que somente se
publique Os sonetos do amor obscuro em
companhia com a coleção dos poemas do Divã
do Tamarit. Contemporâneos (Sonetos
del amor oscuro; Divan del Tamarit, 1935/1936, respectivamente), os dois pequeninos
livros, além de póstumos, têm afinidade na atmosfera quase sempre onírica e erótica,
além dos recorrentes temas noturnos. Recentemente, com tradução de William Agel de Melo, o Sonetos de amor e Divã do Tamarit foi relançado dentro da Coleção Folha: Literatura Ibero-Americana (São Paulo: MEDIAfashion, 2012. v. 2).