quarta-feira, 4 de abril de 2012

53.






Da cor amarela, ou: De como o dia pode ser bom




A menininha sentou ao meu lado, surgida não sei de onde. Com o polegar e o indicador, e com muita delicadeza, segurava uma flor que não sei o nome. Falou sem me olhar, como fazem as crianças:
– Tá vendo essa flor?, ela é amarela.
– Lembrei na hora de Agostinho, na praia, conversando com o anjo. Na lenda, representada pelos pintores da Renascença, um atormentado Agostinho passeia à beira-mar, meditando sobre o mistério da Santíssima Trindade. Depara-se com uma criança ocupada em transportar a água do oceano para um pequenino buraco cavado na areia. Notando o espanto de Agostinho, a criança diz: “Seria mais fácil fazer entrar o mar neste buraquinho do que, para ti, explicar a mínima parcela do mistério da Trindade”. Talvez por isso, jamais por maldade, eu tenha perguntado à menininha:
– E o que é o amarelo?
– É um bom dia.
Ela disse, e saiu correndo para junto da mãe, que me sorriu alegremente. Retribui, e continuei lendo o Diário e Cartas, de Katherine Mansfield; livro que é traduzido e organizado por Julieta Cupertino, para a Editora Revan (edição de 1996). Na carta de 20 de fevereiro de 1918, endereçada a J. M. Murry, seu companheiro – o divórcio com George Bowden ainda não havia saído –, ela conta da sua doença, e de como, por causa dela, tem estado presa em casa, sozinha e triste:

Quando penso nas flores que crescem na grama, nos riachos, nos lugares onde poderíamos nos deitar olhando para as nuvens lá no alto, oh, eu simplesmente sonho com essas coisas, ao seu lado. Excluindo você, o resultado dessa soma será zero.

Longe de Murry, e para ele, Katherine envia cartas quase todos os dias. É um modo de tê-lo por perto, e falar sobre si àquele que ama. Nelas, às vezes se repete: “Te amo tanto. Te amo tanto. O vento uiva e as venezianas estremecem, e [onde estou] parece em uma ilha longe, muito longe. Mas eu te amo muito, eu te amo muito. Sou absolutamente tua para sempre” (19 de janeiro de 1918). E no final, para se despedir: “Oh, meu amor, continue cuidando de você, para mim, e eu continuarei cuidando de mim, por sua causa. Mais oito dias, e o mês acaba. Então, só faltará março. Apenas.”
A França estava em guerra, e o inverno inglês seria fatal à sua saúde debilitada pela tuberculose. Katherine está em Bandol, comuna da França. Deve retornar para Londres e para os braços de Murry em abril, como diz. Na volta, tumultuada, é preciso passar por Paris, sob os bombardeios dos alemães. “As explosões ocorrem a cada dezoito minutos, até onde posso avaliar. [...] Não estou amedrontada, embora tenha estado muitíssimo perto do lugar onde ocorrem as explosões. Na verdade, sinto que há um risco muito grande de que se possa ser morto. Veja: não há aviso sobre o lugar onde a próxima bomba cairá e os intervalos não são regulares...”, e aí:

Se não fosse por você, não me importaria de morrer ou não. mas você está aí, eu me importo intensamente e tomarei todas as precauções que você gostaria que eu tomasse. Da minha parte, gostaria que você as tomasse se estivesse em circunstâncias semelhantes. (Paris, 30 de março de 1918).

Ela não está bem, e os dias se arrastam. Chega a Londres em 11 de abril. Em 3 de maio do mesmo ano, casa-se com Murry. Deseja bons dias. Deseja ser feliz através do amor, como tantos. E, como tantos e tantas, não é. No livro O amor (Martins Fontes, 2011), André Comte-Sponville afirma que é impossível falar da felicidade sem falar do amor, ou se interrogar sobre o amor sem pensar em felicidade. É como se uma “coisa” supusesse a outra; mas... ah, dois equívocos!

Em A portrait of Katherine Mansfield (Hyperion Books, 1989), Nora Crone diz que, em dezembro de 1919, Katherine sentia-se abandonada por Murry, encarando a morte como um novo romance, um novo marido – a quem faz um poema (The New Husband), entregando-o a Murry, com um pedido: “Guarda-o para mim, sim?”


Alguém veio até mim e disse:
Esqueça, esqueça que foi casada.
Quem é o seu homem, para deixá-la
Doente e passando frio, num país distante?
Quem é o marido – quem é a pedra
Que pode deixar sozinha uma criança como você?

Você é como uma folha colhida pelo vento
Você é como um cordeiro deixado para trás,
Quando todo o rebanho se distanciou.
Você é como um pobre gatinho perdido
Que eu havia colocado dentro de meu colete
Você é como um pássaro caído do ninho.

[...]

O poema teria sido escrito, conforme Julieta Cupertino, numa crise de febre alta e refletiria o estado de depressão em que ela vivia. Em busca de alguma esperança, Katherine procurou tratamentos pouco ortodoxos. Depois de consultar o médico russo Ivan Manoukhin, em fevereiro de 1922, e a conselho desse, se submeteu a um tratamento experimental que consiste em ter o baço bombardeado por raios-X. O tratamento não somente não resolveria o seu problema como, a esse, somaria um estranho calor e insensibilidade nas pernas. Em outubro desse mesmo ano, mudou-se para o Instituto para o Desenvolvimento Harmônico do Homem (em Fontainebleau, França), dirigido por George Ivanovich Gurdjieff. Gurdjieff utilizava a dança e a meditação para a obtenção do que chamava de “controle psíquico”, afirmando que, com ele, Katherine poderia “ignorar a condição do corpo”. Ignorar, talvez; resolver, não. Murry afirmava que tudo isso não passava de “ocultismo”. Não houve resultados e, pelo desentendimento dos dois quanto à eficácia do programa do Intituto, o casal novamente se separou. Para provar a Murry que o tratamento surtia efeito, Katherine subiu uma escada, correndo. Pelo esforço, sofreu uma hemorragia pulmonar fatal. Morreu em Fontainebleau, no dia 9 de janeiro de 1923. Seu corpo foi enterrado no cemitério de Fontainebleau District, em Avon.
Na foto que ilustra a capa do Diário e Cartas, Katherine tem os olhos muito ternos, e me sorri; nela, vejo aquela menininha que, segurando a flor amarela, definiu a cor alegre como um “bom dia”. A pergunta que não lhe fiz, e que poderia tê-la feito, faço a mim: o que é, afinal, um bom dia?



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