63.
Do Amor de
Maria de Lourdes
A
primeira vez que fui a Salvador foi em 2004. Eu fazia, na época, mestrado em Filosofia,
na UFPB, e havia inscrito uma comunicação – “Algumas considerações sobre o
‘cogito’ agostiniano” – no XI
Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF (Associação
Nacional de Pós-Graduação em Filosofia).
Em uma
das noites, no alojamento, acordei com barulhos abafados e ofegantes. Debaixo
dos cobertores e acoitados pela escuridão, um casal de amigos fazia sexo, sem
se importar de estar ao meu lado, separados por menos de quatro palmos. “Ó os maluco tudo fazendo maluquice, meu!”, pensei,
enquanto virava para o outro lado, deixando que os dois ficassem “na boa”.
“Essa galera está ficando sem limites.” E não me lembro de haver pensado em mais
nada naquela noite.
Na noite
do segundo dia houve o lançamento de alguns livros. Um deles foi o da
professora Maria de Lourdes Borges, Amor,
da coleção passo-a-passo, da carioca
Jorge Zahar Editores. Comprei pelo título, sem ao menos folheá-lo. “Talvez seja
útil às minhas pesquisas sobre as várias faces do amor ao longo dos séculos”,
pensei. Ha ha, me enganei.
O livrinho,
de apenas 64 páginas, é dedicado “a um certo A.”, que ela revela ser o seu
“estóico preferido”. “Uma fala da paixão”, foi a primeira impressão que tive,
tão logo abri o referido. Ironicamente, é contra a paixão – que, do latim, pode
ser traduzida como perturbatio,
“perturbação” –, ou aqueles apetites que trazem intranquilidades à nossa alma,
que a filosofia estoica mais se posiciona, se impõe. “Maria de Lourdes deve saber disso”, pensei. Na interpretação que faz a um texto de Sêneca, ela afirma:
“Toda perturbação da alma é nociva para a vida do sábio, logo, toda perturbação
deve ser aniquilada. Se todo o amor for perturbação, então o sábio deve tentar
extingui-lo”. “Bem”, concluí, “ela não disse em lugar algum que era estoica”. No
mais, e em uma leitura bastante superficial, estava clara a confusão que ela
fazia entre o que poderíamos chamar de amor romântico (produto do idealismo),
amor sensual (resposta favorável dos sentidos aos apelos do mundo externo) e a
pura paixão – a perturbatio
interna que, conforme os estoicos e a doctrina
christiana, deve ser domada, seja por uma ética própria (autônoma) ou
sublimada (heterônoma). A ética estoica – a mais autônoma, antes de Kant – é
profundamente marcada por essa objetivação da vontade no equilíbrio que
condiciona a própria vontade ao curso da vida, do modo mais natural possível;
isto é: sem os extremos excessivos que nos fazem despencar ou na intrepidez estúpida
ou na covardia confessa, ou no amor idiotizado ou no ódio irracional. O ideal
estoico visa a ataraxía, a
imperturbabilidade. O amour de soi,
no Amor de Maria de Lourdes, não
entra nem em nota de rodapé. Como “não entra”? Entra sim. Está em todas as
páginas, mas não é tratado como tal – o que é uma pena. Uma falha lamentável.
Desprezei
o Amor de Maria de Lourdes; sem julgar,
porém, que fosse um desperdício de papel. Mas, afinal, de que vale repetir ideias
e conceitos de pensadores velhos e mofados, sem que se faça qualquer crítica às
diferenças dessas mesmas ideias e conceitos, à luz da contemporaneidade? E mais:
que relevância tem o “filósofo” que deita e rola emparedado no mais elementar
do senso comum? Há livros feitos para melhorar a vida das pessoas, e livros
feitos para melhorar a vida dos editores e dos autores. O seu é assim, como
esses últimos.
Em meu
exemplar de Amor, a dedicatória que me
foi feita, com caneta BIC azul, tem cara de ironia: “Para Antônio, para que
aprenda um pouco sobre o amor, Mª de Lourdes”. Se for para aprender assim, não quero
não.
. . . . .
Hoje é o
último dia da primavera de 2009. É um dia quente. Vejo à minha frente, sempre que
ergo a cabeça, o quadro que tem uma borboleta pintada por minha mulher, Mabel,
ainda quando criança. Na pintura, a borboleta não tem flor alguma, não repousa
sobre nada. O amor romântico, Maria de Lourdes, é uma borboleta pintada; o
mais, a ele ligado, desejado como transzendez, é fantasia de criança.