segunda-feira, 9 de abril de 2012

54.





Da presença inverossímil da diferença





Houve um tempo em que eu não era assim: espírito estoico cultivado, dado a mais ouvir do que falar, sem a pressa que aniquila o verso, e sem os juízos que, cedo, condenam. Coisa do tempo: que nos faz saber o tanto que a alma humana pode ser instável e leviana, tangida pelos desvãos da hora, na medida exata da ocasião.
Uma vez, quando eu não tinha mais que vinte, me apaixonei por uma Clarissa, que gostava de um certo João. Não sei por que meios, convenci que fôssemos ao Parque Arruda Câmara, tomar sorvete, conversar sobre coisas da vida e, quem sabe, sobre o que poderíamos ser, já que não éramos sequer amigos.
Encontrei Clarissa na Lagoa, exatamente às 15:30.  Daí fomos a pé, ali pela rua do SESC Centro. Durante todo o trajeto, ela falava de João: de como ele era isso e de como ele era aquilo. Nos intervalos, dizia que era bom estar ali, “apesar de tudo”. Chegamos à Bica. Pagamos os R$ 0,50 que estavam cobrando na entrada e descemos até a parte lá mais abaixo, onde há umas árvores; e, agora, um lago com pedalinhos. Sentamos na grama irregular de um lugar que nos pareceu seguro e agradável. Ela que escolheu. Clarissa logo se encostou a uma árvore. Nela, deslizou a mão sobre o tronco grosso e enrugado, como a fazer-lhe algum carinho.  
– Eu gosto dessa árvore – disse –, porque ela está sempre aqui quando eu preciso.
– Como se houvesse opção! – Respondi, automático, sem pensar nem por um instante. E isso, parece, não agradou Clarissa. Ela me olhou por cima dos olhos, enquanto tirava alguma coisa que estava agarrado em sua calça jeans.
– Ah, Patativa!, e tu acha que ela não estaria, se pudesse?
– Sei não. – Respondi no ato, novamente sem pensar. Era o meu dia de bate-bola e jogo-rápido, como a Marília Gabriela diz aos entrevistados. – Mas sei que ninguém gosta de ficar aguentando choramingas.
Clarissa abriu a bolsa e pegou o telefone. Havia uma mensagem nele, de anteontem. Queria que eu visse, que lhe desse razão.
– Olha isso, Patativa! Olha isso! O idiota disse a outra lá que, comigo, foi só uma aventura e que “isso não significava nada”. O cachorro! Tá certo que eu também não pensava em uma coisa lá tão séria et cetera, pensava não; mas assim também, né? Você há de...
– Tá vendo? – atalhei. – Lamúrias! Coitadismo! E eu, que não sou uma árvore, acho melhor a gente ir embora. Daqui a pouco eles estão fechando.
– Não, moço; espera. – ela disse, jogando o telefone na bolsa e fechou o zíper. Levantou a cabeça e me encarou, olhos nos olhos. – Tá! Prometo que não vou mais falar disso. Você é meu amigo, não é? Estraguei nossa saída, não foi?
Eu já havia conversado com Clarissa sobre o modo como pensava nela, com carinho. Mas aquilo tudo, o tumulto do Centro, o barulho dos carros, o calor da estação e a conversa dela, monodirecionada, sim, isso tudo havia mexido comigo e com a minha paciência. Não era mais uma coisa legal estar ali. E pouco me importava aquele parque idiota, e aqueles bichos fedorentos, e aquelas árvores estúpidas, e a gente.
– Não! Estragou nada não. – Menti. Pensei e menti. Na primeira vez que pensei, menti. Não sei por que isso me deixou tão contrariado. Pensei que era melhor ter feito como antes, sem envolver o pensamento com a fala.
Clarissa, porém, não sei como, e ao levantar para me seguir, parece ter esquecido o que acabara de prometer. Enquanto limpava o bumbum com tapinhas, retirando pedaços de talos e folhas mortas, disse, praguejando o famigerado e onipresente João:
– Mas que babaca! Todos os homens são iguais.
– Nossa, Clarissa! – Não me contive. – Eu não sabia que você era tão rodada.
            


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