domingo, 15 de abril de 2012

56.





Do “amor ao próximo”, e como exercê-lo



Estou na rodoviária de João Pessoa, em uma fila. Devo comprar uma passagem para o ônibus que sai às 18:30, para Campina Grande.
Assim que cheguei fui abordado por um homem de aspecto bastante cansado. “A vida não foi generosa com esse cidadão”, pensei. Ele, na fila, olha para mim e diz que faz transporte alternativo de João Pessoa à Campina, e que, se eu quiser ir com ele, é o mesmo preço do ônibus, e somente falta mais um passageiro para completar a lotação. Agradeço e digo que vou de ônibus mesmo. Lembro-me de que, em outras vezes que tive de ir assim, os motoristas ligavam o som do carro muito alto, tocando essas bandas que fazem “forró estilizado”, como dizem alguns que tentam fugir da alcunha pejorativa de “forró de plástico”. Fico feliz de ter passagens e a fila não estar muito grande. É uma fila única.
Uma mulher, segurando uma mochila em uma mão e uma marmita na outra, chega logo depois de mim. “Será que ainda tem para as seis, hem?” “Acho que não, senhora. Para as seis e trinta, deve ter”, respondo. O homem da lotação lhe faz a mesma proposta. Mas ela, também, diz que prefere ir de ônibus e, de todo modo, precisa aguardar o filho que logo deve chegar para ir com ela. O homem se afasta, procurando os dois passageiros que faltam.
– Não gosto de ir de alternativo. – Ela me diz. Concordo.
– E alguns são bem irresponsáveis, e mal educados. – Digo. Ela concorda com um sorriso amistoso.
Não demora nada e chega outra mulher. O cabelo dela é curto, estaqueado e precariamente pintado de louro, com a raiz visivelmente enegrecida. É a segunda na fila, depois de mim. Até aí havia dois vendedores nos guichês; agora, somente um. A primeira pessoa da fila, embora o atendimento esteja agora à sua direita, permanece imóvel, com sua cara de Gioconda espelhada no vidro do guichê fechado. A fila inteira se mantém assim, uma pessoa atrás da outra, e todas atrás dessa primeira. Em sinal de inconformismo, mudo de lugar, como se houvesse uma fila invisível entre o guichê e eu. Outros me seguem. Daí a pouco todos notam o movimento da fila e, agora, estão posicionados em frente ao guichê aberto.  
Alguém me cutuca as costas. Olho para trás. É a senhora que não gosta de andar de lotação.
– Licença, moço. O sr. pode levantar o pé? É que...
Olhei para o chão e vi que estava pisando sobre sua sandália, de couro, muito fina. Se ela não dissesse nada, juro que não teria notado. O meu sorriso se acompanhou de um “opa!, me desculpe; eu não percebi.” Ela riu também, como a dizer que “está tudo bem”. Foi aí que eu notei que a outra mulher, que estava atrás dessa, a de cabelos mal pintados, agora estava bem a minha frente. Tive vontade de perguntar bem alto a todos da fila: “Mais alguém que tomar o meu lugar?, quer furar a fila?” Não disse nada. Mas me irritou profundamente o fato de essa mesma criatura, na hora de comprar a passagem, dizer que “é para as oito horas, moço”, e ainda estar toda atrapalhada com o cartão de crédito, sem saber qual é a senha e tendo de fazer ligações não sei para quem para que este Não Sei Quem lhe dissesse qual era a sua senha. Finalmente ela conseguiu, e se afastou sem olhar para trás.
– Ela passou à nossa frente, não foi? – A mulher da sandália de couro me pergunta, para confirmar ao filho que realmente era isso que havia ocorrido.
– Pois é. – Respondo – E ainda mais para comprar uma passagem somente para às 20:00.
Passagem comprada, disponho ainda de algum tempo antes de partir. Vou a uma banca de revistas que há no piso superior, lá bem à esquerda. Compro um exemplar de Do amor (L&PM, 2011), livro de Stendhal, escrito em 1820, depois de sua frustrada paixão por Matilde Dembowski, uma milanesa que arrasou o seu coração – é só ler o referido livro que, mesmo a alma mais desatenciosa, nota-o. Publicado em 1822, o Do amor faz referência às cortes de amor: “Houve cortes de amor, na França, entre os anos 1150 e 1200. Eis o que se encontra provado. Provavelmente a existência de cortes de amor remonta a uma época bastante anterior.” E por esse período que, conforme nota Stendhal, surge o amor cortês, o cortejar a mulher amada, o romance na corte. “Quantos livros será que eu já tive e estou tendo de comprar novamente?”, me pergunto, lembrando-me de todos os livros que, meus, foram perdidos pelo meu irmão, em sua mudança de São Paulo para Vinhedo. Eu precisava readquirir este livro, se quisesse ser respeitado nos juízos que faço sobre o amor, como venho fazendo neste meu Grande livro do amor. Stendhal foi, desde cedo, e para ele, minha principal referência – se não nas ideias, na estética. Folheei o livro por alguns instantes, até a hora de embarcar.
Ainda no guichê, notei que quase não havia mais assentos à janela. Comprei a poltrona 47, uma das duas que restavam. Quando embarquei, vi que havia uma garota ocupando a referida poltrona, conversando alegremente com outra, sentada ao seu lado. Depois de guardar a mochila, olhei para ela, dizendo: “Com licença. Parece que essa cadeira é minha.” Ela me apontou com olhos as duas cadeiras mais atrás, na outra fila, uma delas ocupado por um senhor de bigodes grisalhos e rosto sereno.
– Tu se incomoda de sentar nessa daí? É que eu e ela...
– Me incomodo, sim. – Interrompi as suas explicações.
– Ok! – Ela levantou e foi para o seu lugar, como tinha de ser. Não me disse mais nada e, parece, também não tinha nada de importante a conversar com outra. Trocaram duas ou três palavras e, ela mesma, ao meu lado, ficou ouvindo música, com fones enfiados em seus ouvidos. Sentei em meu canto e tentei inclinar o banco o tanto que pudesse. “Tomara que eu consiga dormir logo”, pensei. E não preciso dizer que, por toda a viagem, ninguém mais me incomodou.
O melhor do amor ao próximo se resume nisto: não incomodá-lo.



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