segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

34.





Da tristeza que anoitece a alma


“Vem, Himeneu, oh, vem, / que o teu rosto radiante / seja quase um sol nascente, / e traga a estes amantes os dias serenos, / e para longe afaste sempre / os anseios, a dor, os horrores e as sombras.” É como canta o Coro, tão logo surge em Orfeo, ópera do italiano Claudio Monteverdi, apresentada pela primeira vez em 1607. O invocado Ὑμέναιος, filho de Apolo e Afrodite, é o deus do casamento, para os gregos. Ele, caso atendesse ao pedido, daria a Orfeu e Eurídice, dias serenos: sem anseios, dores, horrores ou sombras. Pois, a própria história do infeliz casal nos mostra, há tristezas que fazem anoitecer a alma. A de amor, qualquer amor, certamente é uma das maiores.
Quando Pedro encontrou Beatriz, a pedido dela, logo notou algo diferente. Sim, havia um ar de mistério no jeito que ela o encarava, como se quisesse rir ou chorar. Na fração de segundos em que a encarou, como se fosse a primeira vez, depois de tantas, ela parecia dispersa, meio ansiosa, muito elétrica.
– Tá tudo bem? – Perguntou, olhos nos olhos dela.
– Está sim! Aliás, e ao menos para mim, até demais. – Respondeu, abrindo os braços para recebê-lo, para abraça-lo. Mas, ele sabia: havia algo a mais.
– Ai, Bia!, fala de uma vez, danada! Que é que tá pegando, hem? Quê que tu quer falar?
Ela quase não se continha em sua ansiedade e tensão, fazendo cara de choro e riso, ao mesmo tempo.
– Tenho medo da tua reação, Pedroooo. Quer dizer: não sei se é a melhor hora para te falar isso e...
– Ah, meu Deus! – atalhou, fitando-a com um olhar de “pode dizer o que quiser que eu aguento”. – Isso o quê? Fala de uma vez, criatura!, falaaa... Não gosto desse suspense todo.
E ela falou, vomitando as palavras com toda a urgência do mundo:
– Estou grávida, Pedro! É isso. Estou grávida, esperando um filho nosso.
Há horas em que os nossos pensamentos se misturam, como a neve artificial naquelas esferas de vidro de inverno, de Natal, quando sacudidas; e não temos o que fazer senão esperar que eles voltem ao lugar – se queremos que nossas palavras e ações façam sentido. E até que voltem, ficamos assim, meio paralisados. Quando há tal inação, nossa confusão mental é facilmente denunciada pela expressão do nosso rosto: o da tristeza ou da alegria. Tanto faz.
– Ah, meu Deus! Sério, Bia?! Caraaalho, meuuu!
Levou as mãos à cabeça, girou em um vagaroso trezentos e sessenta. Olhou para ela, incrédulo. Ela começou logo a fungar, limpando o nariz choroso com a palma da mão esquerda, sei querer acreditar no que acreditava.
– Eu não devia ter te contado agora.
– Ué!, por quê?
– Melhor ter te preparado antes e...
– Nãooo, meu amor! – ele entendeu o que ela poderia estar pensando. – Não é nada disso! É que eu não esperava que, quer dizer...
Tomou-a nos braços, dizendo que “te amo, te amo, te amo”, repetidas vezes. E ficaram assim, e em silêncio, até que Pedro disse, rindo, quase saltando de felicidade:
– Que coisa boa, Bia! Que coisa tão boa! Tu me faz tãooo feliz!
Abraçou-a ainda com mais força, espremendo-a contra si. Sim, estava realmente muito feliz. É certo que não havia pensado em ter um filho, em ser um pai. Agora, porém, parece que isso era a coisa que ele mais queria em sua vida; a coisa que mais merecia festa e expectativa.
Ela sorriu, aliviada e feliz, e pensou “que boba eu sou!, não entendendo o jeito dele agir”. Enxugou novamente o nariz com a manga da camisa, ainda abraçada a ele.
– De quantos meses?
– Acho que de um, um e meio... Não sei direito. Vou ver isso amanhã.
Beijaram-se, e fizeram mil planos para o bebê que seria o mais amado, o mais querido, o mais mais deste mundo todinho.
– Pedro – ela disse –, acho que vou passar dias inteiros olhando para ele, ou ela, hipnotizada.
Ele riu, e amou aquele instinto materno que ele não escondia.  
Mas, e como Shakespeare dizia, “há mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. Foi em um destes mistérios, destas coisas que não se explicam, que Beatriz, seis meses depois, quando voltava da clínica, olhando o resultado do pré-natal, não viu o Pálio prata que, em alta velocidade, não teve como frear a tempo. Não morreria no acidente, mas o bebê, sim. Já tinha até nome: Eduarda.
Desde então, Beatriz não conseguiu mais levar a vida de antes, atormentada pela culpa de haver perdido o bebê, praticamente pronta para vir ao mundo. O impacto psicológico daquele acidente foi de um estrago enorme. Em sua contabilidade sentimental, o tempo não passa, ou passa lento e arrastado. Quando não está dormindo, que é um tipo de fuga do real, que é doloroso demais, está chorando pelos cantos, soluçando a perda abrupta e dolorosa de sua... Eduarda. E dia após dia Pedro vê Beatriz se afastando da razão, apesar de todos os tratamentos. Ela lhe pergunta, repetidamente:
– Será que o bebê sofreu? Será que ela, se tivesse nascido, iria olhar o céu, procurando bichinhos feitos de nuvens? Será que iria querer explicar todas as coisas do mundo, ou estaria contente em viver cada dia como um prêmio da natureza? Vai, Pedro, me diz; me diz...
– Eu não sei, meu amor; eu não sei. Acho que as crianças não têm pensamentos assim tão... complexos; também acho que as crianças de hoje não têm mais o costume de fazer isso: observar as nuvens que se desenham.
– Sabe – ela disse, filosofando, porque isso é a coisa que mais os loucos sabem fazer –, às vezes eu queria ser outra pessoa. Mas aí, penso assim: se eu fosse outra pessoa, ainda ia querer ser outra pessoa que desejaria ser outra pessoa, sem conseguir nunca me livrar desse círculo de eterno retorno do mesmo... Ah!, mas isso só funcionária se eu fosse eu mesma, entende? Que nem um oroboro.
Pedro ficou em silencio, pensando sobre o que ela dizia – que não era sem sentido –, e visualizando a imagem de uma serpente engolindo-se a si mesma, e de um cão que perseguia a sua própria cauda, e que relação havia entre isso e o que ela acabara de dizer.
– Pedro?
– Oi.
– Se nosso bebê tivesse nascido, a gente ia ter que botar umas redes nas janelas, não era? Olha só: sétimo andar... Vai que a gente deixava a janela aberta e o bebê, vendo os bichinhos nas nuvens...
– É, teríamos de botar umas proteções...
Ele concordava com tudo, seguindo à risca as recomendações do psiquiatra.
– É – dizia, com o olhar muito distante –, a gente ia ter de botar umas redes nas janelas...


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

33.





Das cartas de desamor



Fernando Pessoa fala das cartas de amor, que são ridículas. As de desamor, também, em nada são mais significantes. Sabe-o bem Luiz, que viu o amor de Isadora minguar do pouco ao quase nada, e daí para a coisa nenhuma. Ela, ele desconfiava desde que a convidou para morar consigo, não fazia o tipo “moça para casar”. Isadora tinha o coração na rua, e os olhos no breu do mundo. Uma vez, decerto sem notar que dava margem às várias interpretações, ela contou de um sonho que teve, com um Zeppelin enorme, que tinha uma escada enorme que descia até a varanda do apartamento onde os dois viviam há pouco mais de seis meses. E ela subia pela escada, ignorando os perigos, por amor à liberdade que era... voar. Noutra ocasião, quando ele não quis ir a uma festa com ela, alegando estar realmente muito cansado do dia duro na repartição, ela não se fez de rogada: foi sozinha. E dançou, e bebeu, e bebeu, e dançou. Chegou muito tarde naquela noite. Ele, que tinha ficado em casa para descansar, não conseguiu. Ficou pensando se não deveria tê-la acompanhado para... vai saber. Quando ela voltou, ele ainda estava acordado, e cansado, e chato, e estressado, e perguntou o porquê de ela ter demorado tanto. Ela não disse nada além de um desdenhoso e desaforado “vivendo”. Nunca mais foi a mesma, desde aquela noite. “Será que ela se envolveu com outro cara, na festa? Se foi, e se ela é mesmo assim tão volúvel, não vale mesmo a pena estarmos juntos”, pensava, sem bem saber o que pensar. “Hoje será diferente.” Disse a si mesmo, enquanto passava pela Castelo Branco, em direção a Bancários. “Vou conversar com Isa, com calma e delicadeza; tudo vai se ajustar, como tem de ser. Eu ainda a amo tanto.”
Não demorou mais que dez minutos para que ele chegasse em casa. Ela não estava. “Talvez tenha ido ali ao Shopping Sul”, divagou. Havia um envelope sobre a mesa em que ele sempre largava a mochila, tão logo chegava. É claro que ela o havia deixado ai de propósito, sabendo que seria a primeira coisa que ele veria. E assim foi. Luiz nem deu importância. “Ela deve estar avisando que foi ali e já volta.” Foi até a cozinha, encheu um copo com água; bebeu devagar. No último gole, abriu o envelope com uma só mão, sem emoção nenhuma. Nem estava colado. Era um bilhete, escrito a mão, e perfumado.  
Leu em silêncio e...
... no silêncio, o copo escapou da sua mão, espatifando-se contra o piso escuro da cozinha. O baque seco ecoou na casa vazia.
“Não é possível!”
Teve vontade de chorar. E por mais que segurasse as lágrimas, elas teimavam em vir, enquanto ele lia e relia o bilhete de tão poucas linhas. Amassou a pequenina e frágil folha de papel cor-de-rosa.
Suspirou.
Desamassou.
Tornou a ler.
E era como se pudesse ouvir a própria voz de Isadora, lhe dizendo:

Não penses mais em mim
Seria inútil, pois nunca te amei
O que houve entre nós dois foi apenas fantasia
Nosso passado terminou como terminam todas as ilusões
Doravante seguiremos caminhos diferentes
Não me procures, seria uma desilusão a mais.

Isa.

Ah, Deus! Uma carta de “adeus”.
Ficou ali, imóvel, como se a sua alma tivesse abandonado o seu corpo e partido ao encontro de Isadora, onde quer que ela estivesse. Onde estaria?
Uma lágrima, sobre o bilhete, fez borrar a tinta porosa da caneta azul onde havia o “adeus” escrito. Ele, agora, era uma mancha enorme e indefinida... como indefinidos são todos os finais felizes ou infelizes de todas as histórias românticas de amor, em que eles  são sempre, e sem variação alguma, novo recomeço.

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Inspirado no samba-seresta “A carta”, música e letra de Iza Franco, gravada no álbum “Sanfona do povo” (1964), de Luiz Gonzaga.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

32.




Da indignação pelo excêntrico ser definido



– Olha! Vê logo! Faz um pedido!
Ele olhou, meio displicente. Era um céu comum, como aquele das aquarelas de Luyse; e não havia nenhum deus ali, e nem depois. Era um céu de literatura, mas não da poética, que mente sobre as coisas do mundo e do além-mundo, louvando a excentricidade dos seres definidos: anjos, diabos, deuses, milagres. Não!, ele sabia, não havia milagre nenhum. E, no entanto, estava admirado. Admirado com o brilho nos olhos dela, e a sua empolgação radiante com a estrela que caía. Que merda!, pensou. Estou fodido! Estou apaixonado!
– É lindo, não é?
– É sim. – Ele disse, de olhos fixos nos olhos dela, que miravam o encarvoado e frio céu de Agosto.
– E então?
– Então, o quê?
– Ora, o quê? – ela o estapeou, mas sem violência. – O que você pediu? Faaalaaa...
– Ah!, eu pedi... – fez mistério, como se não fosse falar o que ela queria ouvir. Mas nada disse, esperando ver a sua reação.
– Falaaaaaa... – ela reclamou, estendendo o “a” como era de costume, e simulando novo ataque ao seu peito, com os punhos fechados e a cara de raiva, de mentirinha. Ele adorava aquilo. E, entre o riso e o pesar, disse, de olhos nos olhos dela:
– Pedi uma coisa que, para ser alcançada, não depende mais de nós dois... e nem de nada.  
Olhando-o, ela não entendia o que ele queria dizer com aquilo, e com tanta gravidade, e tanta subjetividade besta. É claro que nem ela e nem ele, muito menos ele, levavam essa história de “estrela cadente” a sério? Ele, racional, racionalista, deveria estar de provocação. Só podia! Mas ela insistiria:
– Vaaai... contaaaa, amorrrr.... O que foi que tu pediu?
– Ok!, eu digo. Pedi para que você tenha sempre essa alegria, e esse brilho lindo nos olhos, e continue pensando em mim quando, um dia, a minha estrela se apagar.
Um frio passou por sua espinha. Que exagerado! O besta. É, que exagerado. Se queria dizer que lhe amava, que dissesse de uma vez, ora! Ela riu, pensando nisso, e também achou bonito que ele fosse assim; e não tinha o que lhe dizer. E não disse nada.
Dois meses depois, no cemitério, sentada no banco de mármore que ficava em frente ao túmulo dele, ela recapitulava tudo isso, e entendia perfeitamente o que ela havia lhe dito: “que você continue pensando em mim quando, um dia, a minha estrela se apagar”, palavra por palavra. “... cada estrela parecerá uma lágrima...”, sussurrou baixinho, cantando para si, numa tristeza desafinada, enquanto caminhava em direção ao carro. Voltaria para casa, para a sua solidão de mil vidas passadas. O apartamento, que era tão pequeno, agora tinha as dimensões da Via-Láctea, de uma galáxia inteira.

* * * * *

Moral da história: se você tem um amor ou um sorriso guardado para alguém, use logo.


domingo, 22 de janeiro de 2012

31.



Das palavras e dos silêncios


Cheio de onda, Rubem Alves conta de uma mulher que, havendo perdido um seio, chorava abraçada ao marido, “sentindo-se mutilada na sua feminilidade e beleza”. Será que ele ainda a amaria, assim? Mas ele lhe abraça com ternura. E tendo-a colada a si, seu peito onde antes era o peito dela, diz: “De agora em diante, ao abraçar você, o meu peito estará mais perto do seu coração”. Está lá no Mais badulaques, publicado pela Parábola Editorial, em 2004, na página 69.

[Pausa dramática].

Uma amiga, rindo muito, me conta de um moço que, para conquistá-la, disse-lhe que ela era linda como “uma deusa grega”. Ela, na hora, somente conseguia ter vontade de rir com a cantada tão, tão cafona; cafoníssima.

* * * * *

Moral da história: às vezes, e a depender da situação, a melhor palavra é o silêncio - que não é palavra nenhuma.


sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

30.



Das planícies e dos abismos


Ana Maria, no auge da sua juventude, despertava a violenta paixão de Gilberto. Todas as tardes, metodicamente, ele esperava vê-la na sua rua, prostrado de sua janela. Era quando ela voltava da escola e passava por ali, bem perto. Vê-la, e notar que também era visto, valia a longa espera. “Caralho, Patativa!”, ele me dizia, embasbacado, “pode parecer viadagem isso, mas eu ganho o dia, cara!” Quando Ana aparecia na esquina, todos os holofotes caíam sobre ela, sobre sua cabeça de cabelos louros e ondulados. Um anjo! E ela brilhava no filme romântico de um único ator: ele. “Gilberto, o apaixonado”. Tudo o mais, no mundo, como diz o Werther de Goethe, se dissolvia à sua volta. Tudo, todas e todos não eram mais que atores coadjuvantes àquela cena de beleza e graça chamada... Ana.
Os finais de semana de Gilberto eram de uma tristeza só. Não havia aula. Ana estava ou enfurnada em casa ou com as amigas. Coisa que o deixava ainda mais deprimido e intranquilo: “Com quem será que ela está essa hora? Na companhia de quem? Ai, meu Deus!” A ideia de que outro, que não ele, pudesse abraçá-la ou beijá-la, era algo muito, muito angustiante. Um turbilhão de imagens invadia sua mente. Imagens dolorosas. Às vezes, à noite, nem conseguia dormir, alimentando tudo o que era pensamento de desassossego, de rugas e olheiras profundas. Ah!, como doía viver assim.
Por que você não conta o que sente pra ela, danado? – sugeri.
– Tá louco? – Ele respondia, olhando para o teto. – Melhor não. Você está me empurrando ou para a planície ou para o abismo; e é disso que eu tenho medo: de não saber se é uma ou outra coisa. E é isso que me angustia. Eu não saberia viver com o “não” dela, Patativa.
– Planície ou abismo, né? Quer dizer que...
– Que se ela gostasse de mim isso seria como um passeio pela planície: mágico, gostoso, calmo e, depois, com o tempo, monótono e tedioso.
– Ahhh, vai te lascar! Se a gente fosse pensar assim, não namorava nunca.
Eu não acreditava que ele chegava a tanto: a uma conclusão tão limitada e finalista. Seja como for, e no que ele acreditasse – e se não estivesse de onda –, disse-me, concluindo o raciocínio que, parece, eu havia interrompido.
– E não é assim que sempre acaba o filme? Amor realizado é verbo no passado. Planície que leva ao abismo que vem depois. Que sempre vem depois. Se ela não me corresponde, é o abismo antecipado, sem os atrasos de uma planície. Que grande merda, velho! Que grande merda!
Não adiantava que eu dissesse que isso “é a vida!”, que é assim mesmo e tal. Ele reclamava em um misto de covardia – eu acreditava – e medo da dor advinda do medo da dor. Em um sofrimento antecipado por antever um sofrimento futuro.
– Porra, meu! – eu dizia. – Isso é estupidez! É preciso sofrer somente quando for a hora de sofrer, entende? E se o sofrimento vier; que não é garantia cem por cento; ora bolas!
Dias mais tarde, numa manhã de domingo, Gilberto, por puro acaso da sorte, e ao passar pela calçada de Ana, esbarrou nela, que saía estabanada porta afora, armada com uma  vassoura, enxotando uma barata enorme que aparecera em sua varanda.
– Opa! Desculpa, Ana! – Falou, de bochechas coradíssimas de vergonha.
– Não! – Ela tinha um sorriso feliz e tranquilo. – Eu é que peço desculpas. Saindo assim feito uma doida.
No pequenino silêncio que se instalou, desajeitado, ela o examinou, enquanto perguntava:
– Não é você que fica ali na janela? Te vejo sempre que volto do colégio. 
– Não! Quer dizer, sim!... acho que sim.
Ele não sabia de onde lhe vinha tanta timidez. E não estava preparado para aquela pergunta que o delatava, sem que soubesse se era aprovado ou não.
– Gilberto, não é?
Ele assentiu com a cabeça.
– Eu sempre tive a impressão de que você, quando me vê, tem algo a dizer.
– Eu? Sim! Quer dizer, não! Olha: eu realmente tenho que ir. A gente se fala depois.
– Ah, tá! Então, tá. Até depois, então.
Saiu com as pernas trôpegas, suando frio e com a esquisita sensação de que mil olhos o acompanhavam. “Nem ao menos lhe beijei o rosto ao me despedir”, pensou, recriminando-se pela oportunidade perdida, e por tudo o que poderia ter dito. “Que imbecil que eu sou!” Era mesmo. Foi.
– E então? – perguntei, na noite do mesmo dia, depois de ouvir sobre o ocorrido. – O que foi que tu disse a ela?
– Nada! Eu não disse nada! – respondeu, desenganado do mundo. – Na hora, Patativa, meu raciocínio foi pra puta que pariu. Eu não era eu, cara. Ou era demais. E não era legal. Puta que pariu! PUTA QUE PARIU! Mas eu também não lhe diria nada. Não ali, assim... É claro que, se eu tivesse pensado direito, na hora, poderia ter deixado algo preparado para ser dito depois, não era? Que grande merda!
Semanas depois, por boca da Flavinha, sua irmã mais velha, Gilberto ficou sabendo que Ana estava saindo com um rapazote da “rua de trás”, e que o cara era “a banda voou”, e que o povo dizia que ele era do tipo “barra pesada”, e que todo mundo já andava “falando mal da pobre da Aninha”.
– Sabia que ela gostava de você, Gilberto? – Flávia contou, sem dar grande importância ao que dizia. – Mas ela me disse, acho que foi ontem ou anteontem, que achava que tu não dava o menor cabimento a ela, e que, pelo que parecia, nem gostava de meninas.
Foi um soco no estômago de Gilberto. E foi somente assim que, finalmente, ele compreendeu: de tanto medo que tinha do abismo, acabou por entregara-se a ele. “Mas”, ele ainda pensava, dramático e fatalista, “como haveria de ser diferente?”
De fato – e mesmo sem os extremos de um Gilberto –: o amor romântico, por uma ou outra via, é esconderijo de infinitos abismos. Abismo que chama abismos. Abyssus abyssum invocat, diziam os antigos. Diziam também que a covardia é o pior dos defeitos morais. E Gandhi garantia que “o medo [poderia ter] alguma utilidade, mas a covardia, não.”

* * * * *

Moral da história: arrisque-se; decida-se. Se o caso é chorar, que seja pela tentativa, e não pela falta dela.     


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

29.




Da fidelidade à Terra



– Vencer-se a si mesmo – dizia Zaratustra –, eis o maior dos desafios. Pois não há nada mais terrível, mais violento e mais difícil do que alguém tornar-se o que se é. Mas eu vos anuncio o novo homem.
– E quem seria este novo homem? E o que ele faria? – perguntou um moço de aspecto muito altivo e curioso.
– O novo homem chamará a ilusão pelo nome que ela tem; que é o mais belo e falso e cruel de todos: Felicidade. Felicidade plantada e cultivada em uma perfeição desconhecida, e assegurada pela tradicional e milenar moral que amordaça e maquia a selvageria do amor possível: o único que há, e que os animais sem razão não sabem, por nada saberem; e que os homens não querem saber, quando animalizados.
– E que amor seria esse?
– O amor possível: o amor fati.
Zaratustra respondeu, e notou que os homens guardavam dúvidas em suas cabeças, contra as quais tornou a falar:
– Não desejar nada além do que se tem: a si mesmo e ao seu destino. Eis o grande grande amor.
– Como é que alguém pode vencer-se a si mesmo? – Alguém lhe perguntou.  
– Aceitando-se em sua mais escura e profunda naturalidade, resistindo aos mecanismos e às máscaras que a civilidade lhe impôs ao longo dos séculos de escravidão: de ideologias e doutrinas supralunares, supranaturais. Para tamanha grandeza, porém, é requerido mais que a razão, que é necessária. É necessária a abertura para o fado contingente, para que ele seja aceito e amado. É necessário o amor à terra, a fidelidade à ela e ao que não se esconde por sobre as nuvens, ou por detrás dos espelhos. Ah, meus amigos!, por que haveríamos de abrir uma porta que está aberta, ou fechar a outra, que está fechada?
Ninguém disse nada. Zaratustra continuou:
– Somente quem compreende e aceita o longo caminho a ser trilhado em tal ascese pode, de fato, iniciar esta que é a maior de todas as odisseias: de dentro de si mesmo até os picos dos montes mais elevados, onde os ventos fazem morada, e onde se pode ter olhos como os da águia que veem muito longe, e do alto. Sim, é preciso não temer o despir-se da própria pele com a adaga de Orestes. O novo homem há de compreender que, vencendo-se a si mesmo, terá por saldo e glória, e dos mais nobres e elevados, a indiferença e a desesperança. Indiferença sobre o amor ideal, ou a felicidade: de perfeições impossíveis e prisões certas; desesperança de não esperar por uma perfeição mundana ou extramundana, sobre qualquer coisa que esteja no mundo – que é o que há, e do jeito que é. Com os olhos do dia, o homem dos olhos do dia não conhecerá noite alguma, somente a sua condição ligada à hora. O novo homem, a tudo amando com amor fati, poderá facilmente, com o amour de soi, nada amar com a paixão cega, nada temer com a vontade entorpecida, nada querer com o amor romântico e suas desmesuras.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

28.




Dos efeitos e das causas



Enquanto conversava com Dafne, depois de um sexo incrivelmente bom, Matheus, em clara e efusiva ebulição hormonal, confessou, entusiasmado: “Ai, ai, Dafne! Não tenho medo de dizer que te amo. Te amo.” O modo que falava era como o de alguém que se liberta de um peso enorme. O peso de dizer, convicto e urgente: “eu te amo!” Era tão difícil dizer aquilo e, naquele instante sacrossanto do prazer carnal, parecia tão fácil. Enfim: estava dito. Pronto.
Mas Dafne gelou. E, por instantes, não disse nada. Nem mesmo o clássico e quase insignificante: “eu também.”
Ela não esperava por aquilo. Não àquela hora, e nem assim. É fácil “amar a alguém” durante os dois primeiros minutos post coitum, antes que apareça o animal triste. Mas, e mesmo que fosse com um tal “amor”, do orgasmo e do êxtase relaxante, da contração quieta dos sentidos, ele não era bem-vindo. Amor? Não; agora, não. Relembrou em segundos a sua história com Matheus.
Quando começaram a sair, era o que bastava. Não esperava por isso tudo. Aliás, não esperava nada. Ficaria com ele por uns tempos, e depois diria adeus, quando fosse a hora de dizer adeus. Tudo estivera ótimo até ali? Sim. Mas ela não estava, realmente, interessada em romances, em propriedades (“eu sou tua, você é meu”) e adições (“eu e você = nós”); queria as estradas, e o que a curva revelasse depois do depois. Estacionar agora, não. O amor romântico é uma prisão; e ela queria as liberdades dos voos que não tivera, ainda. Ele, porém, apaixonado, e idiota, nem de longe parecia haver notado isso nela. O amor, se não é cego, cega. Matheus não havia, decerto, e pelo que dava a entender, pensado que poderia levar esta coisa assim, com ela: data marcada, destino traçado e breve. Leve, leve, muito leve. Ele tinha a alma abrigada em uma casa própria; ela, a dela, em hotéis plantados pelas estradas.
“Oh, Matt!” Disse-lhe, olhando-o nos olhos. “Uma vez você disse que queria que eu sempre te falasse a verdade; que preferia mil vezes uma amarga verdade a uma doce mentira; não foi?”
Ele teve que concordar.
“Então?”, ela continuou. “Acho que você gosta mais de mim do que eu de você. É sempre assim, para um ou outro. Sinto como se estivesse te sacaneando, entende? Você merece alguém que também te ame. Eu não te amo. Quer dizer: não como você me ama, diz amar. Gosto de você. E gosto muito. Não acho justo mentir sobre isso. E não poderia dizer que também te amo sem estar mentindo. Não!, você não merece isso. Olha, logo vai chegar uma hora em que te direi adeus, e que a gente precisa seguir por outros caminhos. E você tem de saber se quer continuar comigo assim, nessas condições. Se achar que ainda vale a pena”.
Matheus não sabia o que dizer.
Dentro dele, porém, como um prédio enorme que é implodido, algo desabou. A estrutura que parecia sólida e firma, tornara-se pó, poeira e ruína. Por sobre os escombros, uma somatória confusa de frustração, raiva e desencantamento, e um céu muito cinza, e vazio. Não havia espaço para um sorriso, e chorar não era o caso. Sentia um estranho frio na barriga. Aquele que costumam descrever como se borboletas voassem dentro dela. Era o menino solitário no canto da janela, no desenho de Edward Gorey. Nada havia para ser dito; nada. Estava desarmado.  
Ao confessar o seu amor, coisa que lhe pareceu muito simples – e ela fazia que fosse assim –, não pensou jamais que ouviria aquilo tudo: contra as sua flores, uma tesoura de ferro e verbos conjugados na primeira pessoa. A dela, evidentemente. Ah!, o amor é o amor do Eu, nunca do “nós”.   
Não, não deveria dizer nada; não naquela hora. Tinha de pensar, e pensar muito. Assim não falaria bobagens ou quaisquer coisas das quais viesse, depois, talvez muito tarde, achar-se arrependimento. Nunca, antes, havia sido tão emotivamente honesto; nunca, antes, tão irracional; e nunca, antes, sofrera tanto por... amar.

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Moral da história: o objeto mais amado é, muito certamente, aquilo que nos traz as maiores dores e danos. Seja realista: espere pelo pior.
Moral da história (2): o pior sempre vem. Isso não é uma exceção, é uma regra.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

27.




De uma sorte bem merecida



Zé Gomes, distrito de Exú, é uma cidadezinha bucólica, cravada no interior semiárido do Estado de Pernambuco. Foi aí que eu nasci e fui criado, até os dez anos.
Como é comum nas pequeninas cidades, os rapazes de lá sonhavam com a vida nas cidades grandes, aquela que viam na TV; e as moças sonhavam com esses rapazes, que ousavam transpor aquelas fronteiras de isolamento e imobilidade, e que retornavam em épocas festivas e alegres. Com as exceções comuns, eles eram vistos como se fossem uns príncipes em seus cavalos, mesmo que não fossem brancos, e nem cavalos. Desejavam que eles, se se apaixonassem por alguma delas, e ao voltarem às cidades de onde vinham, levassem-na consigo, como às vezes se dá nas histórias da carochinha, contadas de outro modo. Era, enfim, uma maneira de fugir dali, daquele fim do mundo. O casamento era um passe certo e seguro para um futuro mais venturoso. Através dele, podia-se escapar de, por exemplo, um fracasso maternal, e social. “Não basta ter um filho”, algo lhes dizia, reclamando urgências, “é preciso que o filho tenha um pai; e se for um que valha a pena, melhor ainda.”
Lígia era uma dessas meninas, e pensava bem assim.
De um namoro breve e tumultuado com Miguel, que viera visitar a família – que não aprovava a relação dos dois, por julgar que ela não o amava de verdade, e que queria apenas livrar-se do domínio dos pais e ir embora para a cidade grande –, viu aí a sua chance de ser feliz; e mesmo que não fosse com o abençoado. Contra tudo e todos, Miguel e Lígia combinaram de ir à Crato e, de lá, fugirem para São Paulo. A despeito dos conselhos de todos, foi o que fizeram.
Achando-se em São Paulo, Lígia conheceu vários homens, e rapidamente ganhou a fama de fácil”, de uma dessas que dá para qualquer um. E ela dava. E dava muito. E foi de uma cama à outra que ela chegou em Alberto, por quem enamorou-se, e com quem foi morar. Alberto era dono de um pequenino restaurante self-service, ao qual dera o nome de “Tempero da Patroa”. O negócio, na época, parecia estar dando muito certo; e as chances de ascensão social eram praticamente inequívocas. Bastava esperar.  
Miguel, no auge da decepção e da vergonha de haver sido corneado, procurou esquecer as mágoas na cachaça, nas raparigas e, depois, nos braços macios e quentes da fogosa Aparecida, com quem teve dois filhos. Casou-se com ela, depois do segundo.
Decorrido um ano, e havendo caído nas graças do patrão, foi promovido a gerente comercial, na matriz da empresa em que trabalhava há quase de dez anos. Receberia duas vezes mais, e teria a sua tão sonhada estabilidade financeira. A sorte, enfim, pareceu-lhe sorrir. Estava muito feliz. Sentia-se jovem e poderoso. O mundo era belo.  
Lígia, por esse mesmo tempo, viu-se obrigada a voltar à Zé Gomes, acompanhando o, agora, nervoso, barrigudo e pouco amável Alberto. Este, desejando fugir das ameaças de morte que lhe vinham fazendo diariamente, por causa de umas dívidas que contraíra em seu malfadado empreendimento gastronômico, concluiu que Zé Gomes era o lugar ideal para esconder-se de todos os que o ameaçavam. “Afinal”, pensava, lembrando-se dos tantos testemunhos de Lígia, “aquilo ali é um lugar esquecido por Deus; o fim do mundo; o lugar onde o Judas perdeu as botas; onde o vento faz a curva.” “Em Zé Gomes”, dizia à mulher, aliviado, e sem se importar se ela concordava ou não, “nunca seremos encontrados; ficaremos sãos e salvos, por toda a vida.”
“Por toda a vida...” Lígia não conseguia dormir. Era muito tempo. E se tentasse uma nova sorte? Não, não era uma boa ideia. Ela agora tinha as crianças, e uma barriga de mais outra que não demoraria em vir; também não era mais tão nova, e nem bonita. Achou-se feia e cansada. “Quem haveria de querer esse estrupício que me tornei?” Pensava, resignada, aguentando a sua sorte bem merecida.
E a vida seguia.


segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

26.


Da dialética psicológico-sentimental


Sérgio, coitado, era louco por Ana Ligia. Já nem sonhava com a moça; delirava. Tudo o que via ou fazia, evocava, de um modo embriagante e misterioso, o rosto doce e angelical da moça. Sem que notasse, dizia o seu nome enquanto dirigia: “Ana Liiigia...” Enquanto ouvia uma música qualquer ou lia algum livro: “Ana Liiigia...” Ana Ligia era, como uma deusa, onipresente. Mas ela o ignorava. Uma vez, fazendo doce, disse ao seu irmão, César, dando a entender que nada sentia em relação aos sentimentos de Sérgio: “Acho que o Sérgio está dando encima de mim! Quero nada com ele não”. Era um truque. E, de tais artimanhas, nenhuma outra criatura neste mundo foi tão bem dotada quanto as mulheres. Na medida em os homens são fortes por seus músculos, as mulheres por seus truques. Veja Dalila, veja Sansão.  
César, que era amigo de Sérgio, contou-lhe tudo, tal como a irmã lhe havia dito; mas não como confidência: palavras jogadas, sem aparente interesse. O “quero nada com ele não”, na boca de César, pareceu-lhe vir diretamente da boca de Ana Ligia. Ao mesmo tempo em que sentia uma estranha raiva dela, desejava dar uns murros no César, por ter sido mensageiro de palavras tão medonhas.
“Ah!, infeliz mensageiro da minha desgraça!”, pensou, contrariado. – “Porque tinhas de castrar assim minhas esperanças, e com uma faca tão fria e afiada? Por que aquilo que faz a felicidade do homem tem que se tornar também a fonte de sua desventura?” – perguntava-se, como um Werther apaixonado.
Tempos depois, desiludido, começou a sair com Lidiane – por quem sentia mais atração que amor, como ele mesmo me disse, ainda nas primeiras semanas.
Ana Ligia, por sua vez, sem receber as atenções de Sérgio e vendo-se ignorada por Assis, de quem dizia gostar, começou a sentir ciúmes de Sérgio, e mais ainda ao vê-lo rindo, feliz, de braços dados com “a outra. Ele, que nunca havia lhe esquecido, percebeu o quase disfarçado ciúme. E foi o suficiente para que, dias depois, começasse a observá-la como antigamente. O problema, agora, era Lidiane. Como fazer para pôr fim àquilo? Como chegar para ela e, sem um motivo aparente, dizer que nossa história termina aqui? Sören Kierkegaard, no Diário de um sedutor, afirma que é muito mais fácil começar uma relação amorosa do que desvencilhar-se dela, em havendo-a começado. E nada lhe garantia que Ana Ligia se tornaria, de fato, sua. Mas, e mesmo sabendo da tirania dos sentidos e do impulsivo e cego sentimento de conquista que habita em todos os homens, era preciso tentar; era preciso saber; nem que fosse para dizer a si mesmo: eu consegui!, ou: eu fiz o que pude.
Em relação à Lidiane, mais que um problema sentimental, Sérgio via, aí, um problema moral, um problema ético. Enquanto seu coração dizia: “abandone tudo, agarre o amor da sua vida”, sua consciência redarguia: “e Lúcia? Como é que ela vai ficar nisso tudo? E as pessoas, o que dirão?”
Nas coisas do amor romântico, porém, como todo mundo sabe, os apelos da razão e da consciência quase nunca são ouvidos. Contrario a isso, os chamados da Vontade (o desejo erótico-libidinoso) são como cantos de sereias. E aí de nós se não somos um Ulisses acorrentado. Mais que depressa o Sérgio encontrou um motivo para dizer adeus à Lidiane; e mais uma vez estava à mercê de Ana Ligia. Não começaram nada, porém, e por vários motivos; dentre eles, dois foram os principais: o pouco tempo decorrido no término de sua última relação e, requintada ironia, o fato de Assis haver começado a ligar para Ana Ligia, sugerindo um encontro em algum lugar, para um café, um cinema, uma conversa ou o “que você quiser”. Sérgio sabe sobre os telefonemas. Ela lhe contou. Talvez para enciumá-lo, visando alguma finalidade própria; talvez para valorizar-se enquanto caça, ou caçadora. Conversaram muito sobre muitas coisas, e sobre os tais telefonemas. Ambos concordam que Assis, com ela, somente sexo é o que deseja: sexo sem compromissos, bem casual, sem nada mais que... sexo.
À noite, porém, quando está sozinha, e antes de dormir, Ana Ligia inquieta-se, pensando: “Quem garante que ele não vai gostar de mim algum dia? Quem garante que não posso mudá-lo, tornando-o... menos galinha?” Sérgio, por sua vez, nem dorme. Sabe que as mulheres são bobas e, como mostram os tantos casos, têm queda por tipos assim, patifes e cafajestes. Basta uma conversa mole e longa, cheia de promessas e floreios que elas... Ah! O Sérgio, coitado, é louco por Ana Ligia.  
Aos personagens, nada é tão certo quanto a incerteza desta dialética sentimental, em que o amor aparece sempre adiante de nós: tão logo pensamos havê-lo alcançado, ele se mostra ainda mais adiante – como quem escondido no final de algum horizonte feliz.


domingo, 8 de janeiro de 2012

25.



Dos poemas de amor, e do que eles não dizem



Na palestra que ministrava, relacionando a poética de Fernando Pessoa (enquanto Alberto Caeiro) à metafísica de Martin Heidegger, meu amigo Elihad Siff, dentre outras, dizia:
“Um poema é uma coisa misteriosa: somente existe àquele que é poeta, àquele que foi seu autor. Um poema, por exemplo, não pode ser dado a alguém; pois pertence única e exclusivamente ao seu poeta, que é onde mora, encarnado. Diria mais: é o poeta que é possuído pelo poema, e não o contrário – em um modo diverso daquele da Musa que o inspira, no sentido etimológico mesmo de “soprando em seus ouvidos”. Como é o coração do poeta, também o “seu” poema – mas sem a, já explicada, possibilidade de um transplante. Não se pode fazer do poema um banquete eucarístico: ‘isto é o corpo: comei dele todos’. Mesmo os poemas escritos não vêm à luz, realmente; não são paridos dos poetas para os não poetas, ou para os tais. Poemas dados ao exterior são arremedos dos outros, interiores, essencialmente orgânicos; são simulacros, sombras imperfeitas, cópias que somente reproduzem o que é o poema, mas não ele, realmente. O modo como o poema é lido, mesmo por seu poeta, não é idêntico, jamais, àquele que há somente dentro dele – de sentimento único, intransferível; sentimento que procura captar uma intenção hsitórico-psicológico-social individual, e por isso mesmo, e para outros que não o poeta, incompreensível. Sim; todos os indivíduos, do mesmo modo que leem a Bíblia, o Corão, o Bhagavad Gītā, o Tao Te Ching e outros livros considerados sagrados – e mesmo os profanos –, leem um poema partindo sempre de seus próprios sentimentos, fé, finalidades e intenções. Não podem ler, realmente, um poema sem interpretá-lo com todas essas lentes próprias – do modo que julgam entender, segundo o momento real-já-imediato: bagagem cultural, nível intelectual, disposição de espírito, etc. Mesmo quando lidos por poetas, e em especial os poemas ‘dos outros’, os poetas também se perdem – como um que tenta segurar o vento com as mãos em forma de concha, ou encontrar o fim do arco-íris – em todas essas condições muito próprias, irreversivelmente ligadas às nossas hermenêuticas. E quando um poema é lido por um não-poeta, ele simplesmente não tem sentido. Não é de se admirar que, em se tratando de literatura, os livros de poesias sejam tão pouco procurados – apesar das recorrentes ondas que, vez ou outra, apadrinhadas pela mídia ou pelo sentimentalismo escatológico do Zeitgeist, fazem com que este ou aquele autor ganhe algum destaque entre os ‘mais lidos’, os mais ‘vendidos’, etc.”
Não obstante as considerações, Siff compôs um poema, que enviou à Marília, aquela “não sai do meu pensamento” – confidenciou-me com um sorriso alegre e triste: alegre pelo mero fato de pronunciar o nome da moça; triste porque desconfiava que as esperanças de havê-la eram pífias, senão nulas, completamente. Na íntegra, o poema é como segue:

Eu espero pelo dia, Marília
& pelo sol que nasce dos teus olhos.
Vejo o mar que me traz canções...
assoviando breves versos iâmbicos.
É do teu azul que ele se serve – vejo-o bem,
com os meu olhos de bem-querer.  

Mas você some no horizonte,
além dos limites de que disponho:
o meu olhar que se perde longe, longe...
Ai!, quem me dera ir contigo:
de onda em onda,
de mar em mar...
me desfazendo sobre os coqueiros,
sobre a brisa que te acaricia,
que nos arrasta por sobre o cais.

Ah!, Marília, menina!
Ah!, Marília, meu bem!
Aonde quer que eu vá,
você está lá também.

Depois de enviá-lo, como correspondência, e depois que releu o que havia escrito, julgou antiquado, piegas, cafona e apelativo. “Ah!, quem me dera poder resgatá-la antes que ela o receba!”, desejou. Afinal, quem suportaria o “grude” de um verso assim: “Ah!, Marília, meu bem! / Aonde quer que eu vá, / você está lá também.”
 A resposta de Marília, convincente, foi o silêncio. Siff lhe enviou novo poema, mais uma enorme e galanteadora carta. Novo silêncio. Silêncios que pareciam ficar cada vez maiores. Certo dia, em uma conversa que tivemos, cheia de filosofices, disse-lhe: “Há, na tristeza, um enigma de beleza. Como a do sol quando se põe, dourando o céu acima do horizonte distante. É uma metáfora do adeus. Mas o outro dia sempre vem; não é? Ah, meu amigo” – concluí, sentencioso –: “nunca mostre o seu poema a um não-poeta; ele rirá de você”. Mas, se a paixão não é cega, cega. A de Siff era bem assim. Depois lhe enviei este poema do Caeiro, que ele conhecia, naturalmente:

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão –
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que não o são.
Sentir é estar distraído.

Na ocasião, perguntei sobre os progressos das suas análises Pessoa-Caeiro-Heidegger, mas Siff ainda não me deu resposta. Se “sentir é estar distraído”, o pensamento é a festa dos sentidos.  


quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

24.



Do amor fati, e das dores do Mundo


– O novo homem há de cultivar, acima de todas as palavras, filastía. Sim, acima de tudo, o amour de soi, reconhecendo-o não mais como uma falha moral, mas como condição para a vida, e a favor dela, em seu sentido objetivo e maior.   
Dizia Zaratustra, enquanto os homens trocavam olhares de desconfiança.
– Mas, que espécie de amor é esse? Não te parece contrapor aos sentidos mais comuns destinados ao termo, desde os sábios, santos e autores mais antigos?
– Certamente! E assim é porque os homens gostam de superfícies, de vales, e não de funduras, e covas escuras. Filastía ou amour de soir são, acima de tudo, meios e condições para o amor fati.
– E o que viria a ser isto?
– Ah, meus amigos! É a grande grandeza do homem, do ultra-homem: aquele que nada quer além do que lhe é dado, que é o que é: sem futuro, nem passado e nem eternidades; o necessário posto e dado às vistas, presente aí, para ser amado sem desvios ou derivações. Sim! Nada acima das estrelas, nada debaixo dos oceanos; nada à compaixão desregrada, nada à desmesura vacilante.          
Aqueles homens, acostumados às superfícies, ou não compreenderam ou não gostaram do que compreenderam, pois redarguiram, com superior desconfiança:
– Ora! Que sabes tu sobre o amor? E que certa certeza tens, além da tua, que queres nossa?
– Sei que o Eros, quando superficial, é confundido com o ágape delirante: uma hora dado a Dionísio, outra, a Apolo. Duas máscaras, porém; como aquelas do teatro. Também sei que o seu fundamental ardil consiste em confundir os que amam, ou que dizem amar, fazendo-os crerem-se felizes e invencíveis, sem notarem o quanto estão doentes e fracos. Tal amor de superfície, servil e romântico, faz o trabalho que compete à Vontade, em função da vida. Pois a vida, viva, quer viver, continuar vivendo.
Zaratustra podia ver a reprovação estampada nos olhos de todos, e até sabia o que eles deveriam estar pensando: “como este louco pode dizer tantas loucuras?” E mesmo que eles não ousassem contrapor o que ouviam, estupefatos, era sobre a vida das grandes árvores e dos musgos e dos grandes homens e mulheres, e dos vermes minúsculos, que eles pensavam; e sobre a espontaneidade de tudo o que aparece, por puro milagre, e em que lugar cabiam todas aquelas palavras. Não cabiam.  
Disso sabendo, Zaratustra lhes falou mais uma vez:
– A diferença entre o homem e a fera é que o homem pode pensar-se fera, e então ser maior que a fera. Nisso está o seu céu, e o seu inferno. E no alto de tudo e no ato de tudo, filastía. O amor que é presente, na memória e no desejo do futuro: semente que, não mais que semente, deseja-se árvore, e flor, e fruto. É o grande esforço da Vontade, que também é Desejo. Mas, ah!, o desejo realizado é o desejo morto. Ele, como o próprio homem, é uma corda estendida entre dois abismos: nascimento e morte. Mas, até o fim, vive-se o sofrimento pela vida, e a luta por ela. Não há exceção. A pura natureza, idílica para alguns, não mascara a dor, nem o sofrimento. Contra ela, e contra a dor e o sofrimento, a fantasia, e as máscaras da civilidade, e as promessas das tantas doutrinas religiosas e políticas. Nenhum pássaro canta porque é feliz, nem sequer pensa-se feliz ou sabe o que isso seja. Ele responde à sua pura natureza, e geme em seu impulso instintivo pela existência que não conhece, e grita de dor, porque a sente, embora não questione qualquer ventura ou desventura. É porque não sabem sobre si mesmos, e nem deliram, que os pássaros não têm igrejas, e nem partidos políticos, e nem doutrinas escatológicas. Nada mais autêntico que o pássaro, e os bichos que não têm razão; porque eles não maquiam a dor, não enfrentam o trágico com alguma arte, como fizeram os gregos, e como vós, hoje, fazeis. Mas eis – disse Zaratustra, abrindo os braços como a abraçar os campos – um céu inteiro a ser voado. Não seremos nós maiores do que os pássaros?
Mas não havia quem o respondesse. Todos já haviam partido.


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