quarta-feira, 16 de novembro de 2011

5.


Da fortuna


Quando meu avô virou adubo, foi uma festa. Casa cheia, gente na sala, na cozinha, gente por todos os cantos. Os meninos brincando no quintal, e eu entre eles. É que as crianças não entendem o mistério da Morte, e nem o sofrimento que traz uma desencarnação aos encarnados. Mas entendem o espetáculo: o mundo é bom ou mau, sem quaisquer divagações contemplativas sobre a magnum mysterium. A apreciação estética, financiada pelo sensualismo, é a nossa primeira e mais verdadeira experiência com o Mundo, no Mundo. Sem a ratio, conhecemos – sem saber que conhecemos – a experientia pura, ou a experientia docet, como Levinas diria.
“Parem já com isso!” Dizia um.
“Vão brincar mais longe!” Dizia outro.
O mundo das crianças não é o mundo dos adultos. Definitivamente. E Dasdores, que Deus a tenha em bom e espaçoso lugar, que o diga. Nunca aprendeu a “ser adulta”, sempre criança. As pessoas diziam que ela era retardada em oito anos. Aos dezoito, tinha uma mente de dez. E o retardo, depois daí, parecia só aumentar. Nisso, aos trinta, parecia ter somente oito ou nove, ou menos.
“A bichinha!” Todos se apiedavam da mulher-criança. “Veio a este mundo somente para sofrer!”
Diziam as más línguas – ou não tão más assim – que o pai, aproveitando-se da ingenuidade da criança e do corpo da mulher, servia-se dos dotes sexuais de Dasdores. Mas isso ninguém nunca pôde provar.
“O povo fala demais, e de tudo”, ele dizia. “Tem gente que, quando morre, precisa de dois esquifes: um p'ro corpo e outro p'ra língua”.
O certo é que Dasdores, que não conhecia homem nenhum, pelo menos era o que todo mundo pensava, apareceu, assim, do nada, grávida. Aquilo, com certeza, não era obra ou graça do Espírito Santo. Que fosse uma obra não havia quem o negasse, mas não tinha graça nenhuma.
“Meu Deus! Que escândalo!” A família em pânico. Quem teria embuchado a retardada; pobrezinha...
E ela não dizia nada, nem mesmo sob as ameaças da mãe doente e da irmã mais nova que, com o tempo, assumira uma postura vigilante-ditatorial em benefício da segurança da irmã doida, e da honra familiar. Tempos depois, quando não era mais possível esconder a barriga da infeliz, ela foi enviada à casa de umas tias velhas que moravam no fim do mundo.
“Assim ela pode dar à luz ao vivente em paz e escapar do falatório desse povo maldito. Tem gente que tem prazer na desgraça dos outros.” Foi o que os pais disseram às tias, procurando convencê-las a cuidarem da retardada.
Meses depois a notícia: o menino nascera morto. Nem chegara a ver a luz deste mundo desgraçado de luz nenhuma. Dasdores, após o período de descanso, foi enviada a um convento para ser guardada pelo Senhor e pelos muros enormes que protegiam o santo lugar.
“Aqui ela ficará bem”, a Madre superiora, despedindo-se da família.
“Eu sei, Madre, por isso que a trouxemos para cá”. Respondeu o pai, numa tristeza que não disfarçava sua alegre alegria.
“Nos dias determinados, os senhores poderão visitá-la, conforme o tratado”.
E assim foi.
E assim passaram-se os dias que viraram meses, e os meses que viraram anos. Estranho foi quando, infortúnio!, Dasdores apareceu grávida novamente. Outro escândalo; desta vez não somente para a família, mas também para o convento.
“Deus, amado!” Diziam as irmãzinhas em polvorosa, “quem teria engravidado a irmã Dasdores?”
Cogitou-se a possibilidade de ter sido o padre Zé Vicente que, meses atrás, havia sido enviado a pastorear uma pequenina paróquia em Pinheiros, para escapar aos comentários de pedofilia que estavam sendo ventilados pela cidade. Pensou-se também se, numa infelicidade extrema, num descuido fatal, Dasdores não estaria grávida do jardineiro. Este, como ela, miserável, tinha uma mente de criança. Crianças que podiam gerar crianças. Mundo cão! Mas o infeliz, mudo qual uma porta, não fazia a menor ideia do que lhe diziam, ao fato relacionado. Logo foi descartada a possibilidade. Mas, infeliz realidade, quem teria sido o seu artífice? E agora? Fazer o quê? Entreolhavam-se os familiares de Dasdores e as irmãzinhas, coradas de vergonha. A solução que pareceu mais viável a todos e todas foi enviar Dasdores, novamente, à casa das tias distantes. Elas, tementes que eram, a Deus e à Igreja, não rejeitariam um pedido assinado pela santa Madre. Quisera Deus que, como da última vez, tudo se arranjasse, sem maiores complicações. E assim foi.
E assim passaram-se os dias que viraram semanas, e as semanas que viraram meses. Ninguém pareceu se importar muito quando a notícia chegou: Dasdores, dadas as complicações de um parto agonizante, não resistiu, morreu ao dar à luz a uma meninazinha miúda, esquálida, pálida... viva, porém. A meninazinha, tempos depois, na Paróquia de Santa Helena, seria batizada com o nome de Maria Dasdores, em homenagem à mãe e à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de quem a mãe era devota, mesmo que não soubesse o que fosse isso.
Dizem as más línguas que a menina, por esta data, decorrido apenas dois anos do seu nascimento, já demonstra claros sinais de retardo mental. Mas o povo fala demais, e de tudo. E tem gente que, quando morre, precisa de dois esquifes: um p’ro corpo e outro p’ra língua.


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