terça-feira, 15 de novembro de 2011

4.


Dos infortúnios 



“[...] a história não é o lugar da felicidade. Seus períodos de felicidade são suas páginas brancas”; são palavras de G. W. F. Hegel.
A Sra. Maia casou contra a vontade, para satisfazer os desejos dos pais, aos quais obedecia cegamente. Viveu com o Sr. Alfredo Maia longos e infelizes vinte e oito anos. Longos porque, nesse tempo todo, ainda morava em seu peito a imagem de Leonardo Gilthyer, a quem amava desde a mais tenra idade; tristes porque, de algum modo, sabia que não podia tê-lo, a não ser por meios ilícitos – contra a moral e tudo o que ia contra sua natureza e os votos feitos no altar, perante o Senhor e todas aquelas testemunhas. Mas, quem jamais compreenderia os desígnios de Deus?
Numa bela tarde, em pleno vigor de sua saúde, o Sr. Maia faleceu, abruptamente. A causa misteriosa, misteriosíssima, nunca seria descoberta. A Sra. Maia, não acreditando nos pensamentos que lhe vinham à mente, chegou a pensar se o Senhor, nos altos céus, em sua infinita misericórdia, não estaria lhe dando uma nova chance de ser feliz na Terra, ao lado do “seu” belo Leonardo – que ela sabia ter, por ela, os mesmos sentimentos, até então impossíveis.
Já durante o funeral, que se realizou em uma tarde chuvosa do dia seguinte, sem muitas pompas, a Sra. Maia diria a Leonardo, em um misto de tristeza, alegria, ansiedade e discrição: “Agora precisamos ter paciência. Se já suportamos tudo isso, até agora; poderemos, sim, aguardar por mais um pouco... até que o morto seja esquecido pelo populacho”. E Leonardo, como sempre, amável e paciente, assentiu à proposta.
Os sofrimentos da Sra. Maia, nos dias após o incidente, multiplicaram-se assombrosamente. Por um lado, sofria com o remorso de não ter sido uma tão boa esposa e, na morte repentina do seu pobre marido, não ter disposto do tempo necessário para lhe pedir perdão por algo que houvesse feito, contrariando-o; por outro, sofria com a expectativa de que o tempo passasse logo, para que ela, enfim, pudesse entregar-se ao amor do seu Leonardo. E assim, quando não era assombrada pelo fantasma do marido morto, tão vivo, reclamando um amor que nunca tivera, era assombrada pelo fantasma da solidão, do desejo de possuir e ser possuída pelo amor a que resistira por tantos e tantos anos.
Passaram-se duas primaveras antes que a Sra. Maia recebesse pela primeira vez em sua casa o respeitável e distinto Sr. Leonardo. Marcaram o casamento para o final de maio do ano seguinte. E, para manter o respeito e as aparências, restringiram esses encontros a dois por semana, e sempre na presença de convivas, para que não levantassem suspeitas quanto à idoneidade das pessoas dos enamorados e daquele novo relacionamento.
Fim de maio.
O dia tão esperado, por fim, chegara. A Sra. Maia quase não conseguia conter sua alegria e ansiedade. Oh, Deus! Por que as horas não passavam? O noivo, que morava não muito longe dali, viria em uma charrete especialmente alugada para a ocasião tão festiva.
Mas horas não passavam; pareciam eternas...
E Leonardo, por que não chegava logo?
O tempo não passava...
Não é o noivo que aguarda a noiva no altar?
Por que essa inversão? Por quê?
O tempo não passava...
O que estava acontecendo? Alguém teria de lhe explicar algumas coisas.
Quando o criado chegou, a Sra. Maia previu mil recados, mil justificativas, mil motivos para o atraso do seu amado; não previu, porém, aquele que aquela infeliz criatura trazia: o animal que puxava a carruagem assustou-se, não se sabe com o quê, e, descontrolado, fez o transporte tombar violentamente. Num lance de pura infelicidade, Leonardo, caindo de costas, bateu com a cabeça numa pedra à beira do caminho. Morreu em seguida.


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