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Sobre a Morte e sobre o medo da morte
Via de regra, e pelo grande desconhecido que sua certeza traz, a Morte mete medo e, escape psicológico, as pessoas evitam mencioná-la em suas conversas alegres. O nome de Hades (governante do Mundo Inferior, dos mortos), por isso e por exemplo, era reverente e silenciosamente evitado pelos gregos mais antigos, anteriores aos primeiros filósofos. Era o deus mais odiado pelos mortais, segundo Homero (Ilíada 9, 158-159); e Platão nos diz que era comum o uso de eufemismos referentes a ele (Crátilo, 403a), como Plutão, ou Serápis.
........Já mais recentemente, Qohélet (Salomão, filho de David?) afirma ser sábio aquele ou aquela que, vivo/a, aplica seu coração a uma séria reflexão sobre o fim: “Mais vale visitar uma casa em luto do que ir à casa do banquete; lá está o fim de todo ser humano: que os vivos apliquem a isso o coração. Mais vale a dor que o riso, pois sob um rosto triste pode pulsar um coração feliz. O coração dos sábios está na casa do luto, o coração dos insensatos, na casa da alegria.” (Eclesiastes, 7, 2-4).
........Epicuro de Samos, por esse mesmo tempo (cerca de 310/260 a.C.), diz àquele que é, muito provavelmente, seu mais próximo e querido discípulo, Meneceu – em uma carta que lhe envia: “O mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos.” Meneceu é instruído a não temer a morte. O que não equivale, de modo nenhum, à imprudência de se viver de modo irrefletido, atirando-se aos precipícios. O que se propõe, contrariamente, é que seja evitado o sofrimento da perspectiva, que é certo, na morte; e que ela não seja, já, em vida – e isso em função da eudaimonía, da vida feliz. Sábio, portanto, é aquele que cultiva uma alma serena, imperturbada (ataraxía): “O sábio”, ele diz, “nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é uma mal.” O problema, o grande problema, como se vê, é o pensamento que se tem acerca da vida (ou de como vivê-la), até que ela não seja mais. A morte, mesmo, para nós, nunca é – somente enquanto “coisa pensada”, tola e “sofrida expectativa”. Contra o medo, o não pensar? Não!, porque aí seria o não-pensamento pensado, pensando-se... ou algum tipo de anomia lobotomizada. Melhor, então, é o pensamento correto acerca da situação, e a decisão ante as ações que, daí, da/na vida e/ou sobre a morte, devem advir, tendo em vista o não-sofrimento – que também equivale ao prazer (hedoné), o sofrimento evitado: “É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz.” Sofrer, no presente, por um medo infantil de um sofrimento porvir, não parece mesmo uma ação fincada na sabedoria – seja na aristotélico-estoica, na budista ou em qualquer outra, pensada, refletida. Para tudo e em tudo, vale o equilíbrio e a imperturbabilidade.
........Na visão que tem do novo céu e da nova terra, o apóstolo João diz que, aí, “não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, pois já s primeiras coisas são passadas” (Apocalipse, 21, 4b), ao que Minelvino Francisco Silva (poeta popular que ficou conhecido como “o trovador apóstolo”) faz coro – na última estrofe do cordel: A marreta da morte é tão pesada que a pedreira da vida não agüenta (Hedra, 2000, p. 147):
........Diz João, conhecido Evangelista
........Que a morte no fim irá morrer
........Em um lago de fogo derreter
........Para todo cristão levar de vista,
........A marreta se queima e sai da lista,
........O Satã nunca mais aqui atenta
........Que um anjo o amarra pela venta
........E a morte será desbaratada,
........Acabou-se a marreta tão pesada
........Que a pedreira da vida não agüenta
........A propaganda cristã – de uma beatitude eterna que vence a morte, temporal – tem atrás de si o peso dos séculos (Ulisses, Orfeu, Mitra, et cetera) e, à frente, o apelo do ágape que é qual moeda; “moeda do reino” (como dito por Agostinho de Hipona, De civitate Dei, XV, 6). Perfeita e de valor incalculável, com ela se compra, se vende, ao peso da graça... que não tem preço. Seja como for, o terrível Hades, pelos avanços da medicina ou pelo declínio das religiões majoritárias com os seus infernos e condenações (que também são armas), é cada vez menos temido, quando não enfrentado com danças e celebrações ao novo Dionísio metamorfoseado em cada um de nós: homens e mulheres do culto ao livre pensamento – a única liberdade sagrada e, pela qual, realmente compensam todos os sacrifícios e todos os martírios.