domingo, 17 de julho de 2011

36.



Sobre o destino das ideologias e das doutrinas



Todas as ideologias e todas as doutrinas (principalmente as políticas e religiosas) têm apenas três caminhos, para o bem ou para o mal: a organização (institucionalização); a corrupção do seu princípio essencial, matricial, ou o aniquilamento. Nos dois últimos casos, é o fim; de certo modo. Quanto à primeira via, ela pode assegurar alguma permanência às ideias fundantes, mas ao preço da sua essência, da sua “alma”, que se dilui ao passar do tempo, no acontecer da Grande História. Foi assim com o budismo, com o taoismo, com o catolicismo (ou cristianismo); e é assim – ou será – com qualquer outra religião ou sistema político que prega a melhoria da condição do homem no Mundo, sua salvação – aqui ou depois –, ou o que quer que seja. As doutrinas (puras?) existem apenas nas cabeças e nos corações dos doutrinadores primeiros, ou dos seus construtores – quando há, por algum milagre, um consenso pacífico. Mas a ideia mesmo (ou a doctrina prima), como a experiência da fé (enquanto fidei donum), do insight clarificante, é intransferível – como a poesia ao poeta, ou o êxtase do músico, na música. Dois exemplos: “A música e o orgasmo são as duas coisas que mais aproximam a gente de Deus”; Erasmo Carlos teria dito. Você pode até não concordar com ele, mas é um modo, próprio, de falar de uma experiência – lugar psicosomático que eu ou você jamais teremos qualquer acesso, para dizer que sim (é boa) ou para dizer que não. No primeiro livro do profeta Samuel, na Bíblia, consta que Saul, atormentado por um espírito mau, da parte de Deus, acalmava-se ao som da harpa de Davi, quando tangida – que era como um Orfeu que atraía as bestas, amansando-as, ou fazendo o terrível Cerberus adormecer. Quantas escolas budistas existem hoje, no mundo? Quantos cristianismos (ou doutrinas autoproclamadas cristãs)? Em quantas ramificações se encontra, na atualidade, a sagrada doutrina islâmica? Morto o doutrinador, morre também a doctrina prima. O que se segue, depois, nunca é o que foi (o próprio verbo, ser, não sobrevive, aí, no infinitivo), o que se desejou. De tantas religiões mortas e de tantas teorias políticas pensadas, planejadas e/ou escritas – que alcançaram multidões de adeptos, por uma predileção consensual imposta pela força, pelo benefício ou pela propaganda –, restaram apenas os registros históricos, nos livros de História... quando restou. Pode-se acreditar que, uma vez, uma única vez, houve um Cristo neste mundo, encarnado; e, sendo-o, conforme os Evangelhos, somente ele teria sido, de fato, cristão – no sentido de crer no que ensinava e, mais importante, vivia. O que se seguiu depois, com os apóstolos – e são Paulo entre os principais –, foi a imitação daquilo que o Cristo ensinava, vivia; conforme o entendimento de cada um: sua interpretação, sua hermenêutica; e conforme a fé dos que creem (até o dia de hoje) nestes primeiros intérpretes. Imitação. O próprio nome de “cristão” advém daí: da chacota dos anticristãos de Antioquia (cerca de 44 d.C., de acordo com o relatado do capítulo onze nos Atos dos apóstolos), do chiste pejorativo, do escárnio combativo, da zombaria anunciada. A natureza das ideologias, como das religiões – realizadas ou não –, não é, via de regra, o aniquilamento, mas a transformação, a adequação ao irresistível giro da roda do tempo, da roda fortuna. Nós somos o produto de tudo o que veio antes, es as sementes do que ainda está para vir; seja lá o que isto seja.


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