quarta-feira, 20 de julho de 2011

37.



Fé, niilismo e uma dose de aguardente



É preciso a real solidão para que se perceba o Real, e para que os espelhos do tempo apareçam... Tat tvam asi (como quem, diante de um espelho, vê a sua grandeza e a sua miséria, e a si mesmo se diz: “Tu és isto”). “O Eu”, dizia Emily Dickinson, “por trás de nós oculto, / É muito mais assustador, / E um assassino escondido em nosso quarto, / Dentre os horrores, é o menor”. É na experiência lacônica do/no Mundo, no breve encontro do Eu consigo mesmo, e daí com o Outro – este que “não sei”, inferno horrível, quando bom ou quando ruim –, que me re-conheço: ente medonho e inevitável, que chega de assalto, em sua mais completa nudez. Aí estou, e não saberia dizer aonde, exatamente, e por quê. E ai daquele que não tem as muletas da filosofia, da religião, da fé na fé. “Sim”, dizia Christian Dietrich Grabbe, no seu Hannibal (1835), “não pularemos para fora deste mundo. Estamos nele de uma vez por todas” (Ja, aus der Welt werden wir nicht fallen. Wir sind einmal darin). A única maneira de fazê-lo seria através da morte provocada: o suicídio – já que não há, para tal, uma proibição (ou lei) eficaz que, realmente, impeça a sua viabilidade. Do contrário, e para onde quer que o Eu vá, ali estará o mundo inteiro, o seu mundo: sufocando-o, enfermando-o, fazendo-o reconhecer-se um-com-ele e, daí e mesmo daí –, de tudo e de todos, desprendido, irremediavelmente só. Mas, ainda (e como não seria?): o Mundo, o Outro, o Eu consciente (autoconsciente) e, naturalmente, o inferno. Não por acaso, no Die Fromme Helene, de 1872, encontramos Wilhelm Busch afirmando: “Aquele que tem preocupações, tem também aguardente” (Wer Sorgen hat, hat auch Likör); e Freud, para tal realidade imposta, entende que “a vida [...] é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la”, dizia, “não podemos dispensar as medidas paliativas” – está lá no Das Unbehagen in der Kultur (“O mal-estar na civilização”), de 1929. Mais recentemente, em Aprender a viver: filosofia para os novos tempos (2006), Luc Ferry propõe que a filosofia sirva de bastião coerente à razoabilidade dos que não têm mais como crer na antiga fé ocidental: do progresso idílico da moral ascética, da beatitude porvir, celeste, depositada nalgum reino de maravilhas post mortem. Mas, não é porque não exista mais este céu que, já, agora, tudo tenha que ser este inferno do Eu, consciente de si, do Outro, do/no Mundo. A filosofia ou, antes, o filosofar, pode tornar-se um exercício (como foi o teatro trágico, para os gregos; a poesia, para Fernando Pessoa; a música, para Schopenhauer, et cetera) para a transcendência do Eu: equivalente contrário ao transe místico, ou a entrega da/na fé confiante, opium; mas, melhor porque não uma ilusão, um entorpecer dos sentidos. “Não se filosofa por divertimento”, Luc Ferry me dá razão, “nem mesmo apenas para compreender o mundo e conhecer melhor a si mesmo, mas, às vezes, para ‘salvar a pele’. Há na filosofia elementos para vencermos os medos que paralisam a vida, e é um erro acreditar que a psicologia poderia, nos dias de hoje, substituí-la.” Aquele que não tem religião, pois, abrigue-se na filosofia. O único pecado é calar. A liberdade é de quem voa mais alto.


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