terça-feira, 5 de julho de 2011

29.


É preciso duvidar de tudo, ainda


Somente o que pode ser dito, existe. Mesmo a teologia apofática de Dionísio, Pseudo-Areopagita (séc. V), foi um “dizer não dizendo” – outro recurso para além daquele da analogia fidei, ou da analogia entis. Do Absoluto, porém, nada do que é dito é, de fato, o que é dito – máxima do Taoísmo (em referência ao Tao)  e de outras religiões chamadas “filosóficas”, e da fenomenologia. Aí estão, entrechocando-se, as concepções físicas e metafísicas do Ocidente e do Oriente. De modo abrangente, a fé confiante se submete ao estabelecido, sem questioná-lo; a “fé pensada”, por outro caminho, procura, sempre, fundamentar os seus fundamentos. Mas, como? Procurar por um saber é confessar não sabê-lo bem (seja por sua grandeza ou mistério, ou, pior, pela ignorância daquele que procura conhecer o/a...), e o crer-se poder sabê-lo; e, logo, um não confiar no que já se sabe, ou acredita saber – como saber acabado. Que dilema! A fé confiante não pode ir tão longe e, se vai, torna-se cega. “Pensar é estar doente dos olhos”, diz Alberto Caeiro (Fernando Pessoa). E, se Deus é um mysterium tremendum, o aproximar-se dele mediante o pensamento é, ironicamente, um distanciar-se. “O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério. / Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o sol...”, ainda Caeiro.
............Não é à toa que, ao falar sobre a disciplina para a meditação, dos orientais, Rubem Alves nota: “Para os ocidentais meditar é pensar. Para os orientais é parar de pensar: produzir o vazio, a ausência de saberes, para fazer lugar para o saber do corpo. Os místicos, orientais e ocidentais, procuravam o vazio para ter a experiência da iluminação. Isso é incompreensível aos ocidentais.”
............Também não é à toa que “a teologia [cristã], cheia de ademanes”, como tão bem nota Kierkegaard, “assoma à janela e, mendigando os favores da filosofia, oferece-lhe os seus encantos”. Trata-se de um cortejo ilícito que, à cata de um sistema (uma teologia sistemático-hegeliana, por exemplo), de um fundamento não-paradoxal, fundamentado, crido realizado, perde-se no caminho, não percebendo, aí, o Real que se revela. Assistemático, Kierkegaard é homem de fé confiante, não de fé que procura saber – como a de Agostinho, Anselmo e outros. Contra toda a tradição aristotélico-medieval-tomista (e até mesmo platônico-agostiniana, como se nota acima), ele, em questões de fé religiosa, reafirma o credo quia absurdum est de Tertuliano: “A filosofia e o cristianismo não se poderão jamais unir... A filosofia, na sua mais alta completitude implicaria a sua total ruína, isto é, a evidência de que não pode corresponder à sua determinação.” Preso à existência, porém, o pensador dinamarquês, diferentemente de Tertuliano, resiste ao movimento último da fé confiante, o da entrega total que salta sem pensar, totalmente confiante: “Não posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no absurdo; tal coisa é impossível, mas não me vanglorio por isso.” Hoje, por herança desse existencialismo (cristão) tão bem assentado nele – que é apontado como seu pai –, os leitores da Bíblia, por exemplo, não fazem isto para, exatamente, saber o que Deus quer (ou exige, como no caso emblemático e paradoxal de Abraão), mas qual o benefício – e daí para sempre – que isso lhes trará (cui bono?): “Eu sinto que o texto salta sobre mim, e é isso que eu preciso: que ele me fale agora, para hoje.” Alguém pode dizer assim, de uma perspectiva tão existencialista que nem desconfia. É como eu já disse em outra parte (1, §8): O desejo de Deus, ou do divino, desejo transcendentalizado, pode ser, ou nada mais ser, que a Vontade que ele seja. É preciso ter muita fé para não ter fé, e aceitar a não-fé como fé-em-si-mesma. Seja como for, a fé é, sem qualquer dúvida, muito útil àquele (ou àquela) que precisa de quem tem fé. É preciso duvidar de tudo, ainda. 


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