sábado, 18 de dezembro de 2010

16.


A normalidade dos fatos


Perfeitamente possíveis e inevitáveis, a dor, a morte e o trágico governam o Mundo, são a normalidade dos fatos. Prazer (mera ausência da dor, embora ela também possa ser fonte de alguns prazeres), vida e beatitude, ao contrário, são delírios – como é também aquele desejado, mas impossível, salto ontológico: fincado na “metafísica”, fundamental à “teologia”. Teologia ou metafísica que, reais, caso fossem, dariam conta de tratar sobre o fundamento para o belo, para o bom, para o bem. Porque Sócrates era o rei da ironia? Porque não afirmava a normalíssima normalidade dos fatos e, ao mesmo tempo, aceitava e defendia uma “realidade suprema” fundante, fundamental, ideal, pura, melhor que esta que se dá aos nossos sentidos. Assim, à pergunta “que horas são?”, substituída por “o que é o tempo?”, coloca-se a questão da coisa e do seu fundamento, mesmo que uma e outra sejam impossíveis à certeza. Que é perguntar pelo Real senão afirmá-lo (e aí está a ironia)? E afirmamo-lo com artigos masculinos, femininos e neutros – o melhor disfarce sem nome da “Coisa-em-si”. Ora, dizem: da Coisa-em-si, ou do Real, é “de onde vem e se nomeiam/reconhecem as coisas do/no mundo”, que são meros simulacros. É Sócrates/Platão falando. Mas essa inversão, mais que conceitual, é equívoca. Em suas obras, quando Sócrates é o personagem principal ou sequer aparece, Platão não faz filosofia, faz diálogos, filosofa. Quem faz filosofia mesmo é Aristóteles, quando problematiza metodicamente os pontos mais caros ao seu mestre, ou ao mestre do seu mestre. E fazia bem. E era justo. Não é o que Nietzsche diz com: “Retribui-se mal um mestre, quando se permanece sempre e somente discípulo. E por que não quereis arrancar folhas da minha coroa?” Ninguém melhor do que Aristóteles soube fazer isso, retirando-as da coroa de PLatão. O idealismo platônico foi tão natural à teologia porque, ambos, deram-se as mãos e seguiram pelo caminho anuviado montanha acima, crendo que o sol brilhava no alto, por sobre suas cabeças pesadas, graves. E foi assim que essa noite se estendeu por tantos séculos. O visionário Blake, muito além do seu tempo, em 1794, perguntaria: “A firme convicção de que uma coisa é, assim pode torná-la?” (Primeira parte de “Uma visão memorável”, em: O casamento do céu e do inferno & outros escritos). A resposta, de tão óbvia, é dispensada. Antes dessa clarividência genial do pintor e poeta inglês, porém, foi preciso muito ócio para que surgissem os primeiros raios de sol; que emergiu quando chegaram os primeiros realistas e nominalistas, do século XII em diante. A fenomenologia de Husserl – que destroçou a ilusória ponte “entre os abismos” acerca do que é (que aparece) e o que se pensa (os absolutos puros), ou entre o fenômeno e a palavra/imagem que o nomeia com pretensa universalidade – mostrou-se inevitável. Como o Cristo em relação à Maria: se não fosse ela, seria outra. E depois vieram as consequências. Sim, e mesmo aqui, e hoje, é preciso duvidar de tudo.



quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

15.


O ciclo natural e a felicidade estóica


“Os seres saem do mínimo e voltam para o mínimo. A regra é que aquilo que vive tenha um fim. Desejar perpetuar a própria vida, impedir o próprio fim, é um erro.” São palavras de Liezi, no Tratado do vazio perfeito – um dos livros fundamentais do taoísmo. É que não se pode impedir o ciclo; e morrer, afinal, faz parte também da vida. No Eclesiastes, capítulo 7, o sábio diz: “Melhor é ir a casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, pois ali se vê o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração.” Saber ver a morte é, por esse viés, saber melhor viver a vida. Também nos ensinos de Epicuro de Samos, conforme resumidos em sua Carta a Meneceu, o medo da morte é um erro. “É tolo portanto quem diz ter medo da morte. [Tolo] não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado”, ele diz. E diz mais, como que numa brevíssima definição do que seja o hedonismo: “Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos.” A casa de Epicuro, em Atenas, onde funcionava sua escola (o “Jardim de Epicuro”), não era, como alguns maledicentes costumam interpretar, um antro de libidinosidade.

Em O epicurismo, Jean Brun assinala as diferenças entre, por exemplo, o idealismo socrático/platônico e a escola de Epicuro, dando-nos um retrato bastante confiável do que esta realmente era: “Um filósofo como Sócrates nunca pregou o fechamento sobre si e nunca convidou os discípulos a viverem escondidos, como fará Epicuro; Sócrates filosofava na ágora enquanto passeava, conversando com os comerciantes, com os artesãos; era a propósito dos atos de cada um no decurso da vida quotidiana que convidava os concidadãos a refletir sobre o sentido dos seus atos e de sua vida. Sócrates não se considerava nem mestre nem orador, por isso a conversa, o diálogo, eram os únicos procedimentos que usava para os incitar a tornarem-se melhores. [...] Sócrates sempre cumprira o seu dever de Ateniense [...]. Não encontramos nada disso em Epicuro. Em primeiro lugar, como dissemos no princípio, a escola do Jardim é mais uma comunidade de amigos do que uma verdadeira escola, como as do liceu ou do Pórtico; depois, o sábio é de preferência aquele que sabe viver fora da multidão insensata, encontrando no espetáculo das paixões a que se subtrai a certeza de que a sua regra de vida é boa: ‘Não existe naturalmente qualquer sociedade entre os homens; os deuses não se intrometem de modo algum nas coisas humanas e o único bem que existe é o prazer. Eis o que nos ensina Epicuro.’ O sábio não deve, pois, ocupar-se de política, porque sabe que o homem não é sociável por natureza, nem possuidor de doces costumes; por isso é que Plutarco nos diz que os Epicuristas só falavam dos homens políticos para deles se rirem e denunciando-lhes a falsa glória. Enfim, não somente o sábio procura viver escondido, não só ri do destino e de toda a escatologia, mas vive no instante e não se preocupa com o amanhã, porque uma vida feita em função do futuro é uma vida inquieta.”

Na Carta a Meneceu, as últimas palavras de Epicuro foram: “Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentiras perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens”. Para ser feliz o homem precisa, resumidamente: 1) ter amigos (não por acaso Epicuro fez de sua casa a sua escola, o seu “Jardim”); 2) ter uma vida analisada, ou seja: uma vida filosoficamente pensada, refletida; 3) ter auto-suficiência; isto é: ser livre, ser capaz de pensar por si mesmo e ter o mínimo necessário para assim viver. A felicidade é adquirida mediante uma conscientização individual, que libertadora, e que aparece no que convencionou-se chamar de tetraphármakon, os quatro remédios: 1) a não temeridade à divindade, que é alheia à sorte dos homens; 2) a não temeridade à morte, que nada é; 3) a compreensão de que o prazer (ou a felicidade) é fácil de ser adquirido, ao passo em que 3) a dor é sempre breve e suportável. Sim: o mais verdadeiro do que se possa chamar de felicidade só pode ser alcançado mediante uma correta atitude filosófica diante do mundo.


quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

14.


A via mística


Agaton disse a Sócrates que, a quem tem juízo, “poucos sensatos são mais temíveis que uma multidão insensata.” Também o polonês Angelus Silesius, místico, filósofo, poeta e jurista do século XVII, dizia: “Sei que sem mim Deus não pode viver um instante sequer. Se eu for aniquilado, também seu espírito tem de necessariamente extinguir-se”. É preciso de toda a sensatez do mundo para se perguntar: o que é Deus sem mim? E é preciso mais sensatez ainda para se responder: sem mim, de fato, nada realmente precisa ser. Eu sou tudo para mim mesmo, o Outro, ou Deus, é objeto para meu deleite – mesmo que eu e você nem saibamos disso. “Sem mim...” Eis aí a resposta à toda metafísica, e principalmente àquelas distorcidas pelas doutrinas em seus sistemas. “É evidente...” E aí se encerram todas as digressões mais comuns dos teólogos, ortodoxo-fundamentalistas ou moderno-liberais. É evidente que Silesius não tinha essa mesma leitura, e não falava com o sentido que, aqui, damos ao seu texto. Mas, para o nosso propósito, ele se adéqua como nenhum outro. Sim: no começo e no final de tudo, Eu.



segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

13.


O lugar da metafísica, e da teologia


Kant perguntava o porquê de a metafísica não apresentar o mesmo grau de certeza da lógica, ou da matemática, ou da física. Acontece que, alcançando tais graus de objetividade, a metafísica não seria mais metafísica, seria mais uma ciência natural. Impossível! O próprio Kant, seguindo David Hume, procura mostrar que a idéia de Deus, embora esteja bem instalada em nossas mentes, não pode servir de ponte para a realidade objetiva. Deus é assunto da fé, não da objetividade. É evidente que, assim, a metafísica (ou a teologia) nunca poderia progredir, e o discurso sobre Deus, sobre a imortalidade da alma, sobre a liberdade do homem (uma moral fundante-fundamental) ou sobre o extramundano, nunca teria um termo, um lastro concorde entre os próprios metafísicos, ou teólogos. Todo o progresso metafísico-teológico está em descobrir e utilizar os novos mecanismos hermenêuticos – adequando-os às necessidades de cada época, regrando tudo pela Escritura, ou pela sua interpretação –; mas, tais mecanismos, sempre servem para justificar o que já se crê – algo que fica bem longe do que se possa chamar programa (ou método) objetivo-científico. Não há uma ciência, e menos ainda argumentos – como o ontológico, conforme encontrado em Anselmo de Aosta e Descartes, as Cinco Vias, de Tomás de Aquino, ou o argumento do desígnio, de William Paley, por exemplos – que sirvam para provar ou negar que Deus exista. A “existência” material não pode ser, de modo algum, parte do que se possa querer definir por “idéia de...”. Se Deus existe mesmo, como querem os que têm fé, ele seria totalmente outro que esse das teologias, ou totalmente outro desse que digo “ser, ele”, embora não o diga, de fato. É que Deus, caso seja, está tão longe de ser pensado que o melhor discurso sobre ele só poderá ser mesmo aquele das teologias negativas, apofáticas, como no “discurso não-discursivo” do taoísmo, ou sobre o Tao... Sim: o que o imperfeito saberia sobre perfeição? A pergunta, como se vê, é um paradoxo; um paradoxo antigo e inevitável. Acontece que o fato de o pensamento saber (ou notar) da imperfeição do/no mundo, não garante em nada que saiba do que venha a ser sua contraparte... o “perfeito”, o perfeito extramundano. É também uma “conclusão” antiga, mas válida ainda. Muito válida! Não há uma única teologia que, de fato, faça jus ao nome: “discurso sobre Deus, acerca de Deus”. A não ser que se saia dos limites da experiência, o que seria ilícito em relação à razão, não é justo adequar qualquer finalidade conclusiva em referência a um ser superior. A metafísica, no entanto, ultrapassa todas essas limitações inerentes ao conhecimento – é o que Kant mostra na “Estética” e na “Analítica transcendentais” –, afirmando saberes completamente fora de qualquer legitimidade: seja quando aplica categorias a priori do entendimento além dos limites da intuição sensível (os juízos sintéticos com os quais ela se arma são falsos, pois não são mais que sínteses no vazio), seja quando pretende conhecer a coisa-em-si, o objeto puro (o que é uma contradição: conhecer, em si, é transformar a própria coisa-em-si em fenômeno, aparência). De fato: a melhor teologia ou o melhor discurso sobre Deus é o não-discurso, a não-teologia... o silêncio. No mais, e para todas as pretensões metafísico-teológico-discursivas: teopoesia.


quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

12.


Sobre o egoísmo inevitável e o motor das teologias


Nos versos 42 e 43 do Capítulo II, no Bhagavad-Gîtâ (A Sublime Canção), Krishna – o Homem-Deus, nosso Ego (nosso Eu Superior) – diz a Arjuna (o homem em seu estado evolutivo): “Muitos há que, saciando-se com as letras (ou com o sentido exterior, superficial) das Sagradas Escrituras e doutrinas, e não podendo perceber o seu verdadeiro sentido interior, acham grande deleite em controvérsias técnicas a respeito do texto, em definições monstruosas e abstrusas interpretações. / Os corações desses homens estão cheios de desejos e esperanças pessoais; o seu mais alto ideal é um céu, onde acham todos os objetos de seus prazeres, a satisfação do seu sensualismo, e não se elevam à altura de onde se percebe a união de todos os seres. Usam palavras floreadas, inventam várias cerimônias e falam muito dos prêmios que esperam aqueles que as observam, e dos castigos em que caem os que são de outras opiniões.” E essa é, certamente, a melhor das palavras para a conclusão: opinião – doxa, que, em grego, é um oposto de alethéia, verdade.

Há, aí, e sem que consideremos a veia religiosa que o texto pode ter em seu grande contexto – o Bhagavad-Gîtâ é só um episódio na/da grande epopéia hindu, o Mahâbhârata, que tem 250.00 versos –, uma descrição muito honesta (embora inconsciente) do coração do Cristianismo, do Islamismo e de outras religiões de salvação – aquelas as que crêem numa vida bem-aventurada post mortem. Sim: no coração de todas as religiões de salvação está entronizado aquele que é o maior de todos os sentimentos humanos, o motor que engendra o progresso e possibilita a vida como um todo: o egoísmo, o amour de soi... a Vontade.

O fiel cristão, domando seus instintos mais primitivos e suas paixões, serve à Igreja por dois medos essenciais, e uma esperança. Olhar o passado, neste sentido, ajuda a elucidar o presente. Na Idade Média e bem depois dela, antes da laicização dos Estados, por exemplo, o cristão tinha um medo terrível da excomunhão – que equivalia a um cartão vermelho no jogo social: sua participação no grupo, sua aceitação nele, e o seu sentimento de pertença. Ser excomungado era ser “expulso da comunhão” social, era tornar-se um pária, um Zé Ninguém neste mundo cão, um outsider – como nas teses sociológicas de Norbert Elias. E a excomunhão tinha poder de, ainda, crença vulgar, manter o indivíduo, depois da morte, fora dos portões do céu, nos quintos dos infernos.

O excomungado era um entregue ao Diabo. Que amarras poderosas tinha a Igreja de manter o seu fiel! Máxima antiga, válida desde os primeiros séculos da era crista: extra ecclesiam nulla salus. O contrário era a esperança: tanto mais o fiel se subordinasse à Igreja e aos seus líderes espirituais, tanto mais estaria garantido de, após a morte, entrar a salvo no paraíso, com Deus. E quando tal submissão é um “ato amoroso”, em que a experiência do (com o) Sagrado pode dar a entender que o Eu some, se perde no Outro, ainda assim, como na experiência romântico-amorosa, é o Eu que mais aparece. É o que Freud diz na primeira parte de O mal-estar na civilização (1930): “No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos. Um homem que se ache enamorado declara que ‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um fato.” E não é? Não. O sentimento romântico-amoroso, aliás, é o pior dos exemplos para ilustrar um possível esvaziamento do Eu, que é a pretensão doutrinária de quase todas as religiões. Aí, mais do que nunca, o Outro é objeto do meu querer, da minha Vontade. Se morro por tal objeto, como nos exemplos clássicos de Romeu e Julieta, ou de Werther, ou de Tristão, não é exatamente “pelo objeto que morro”, mas por mim: eu que não sei viver sem ele. No fim de tudo, fatalmente, é o Eu que vive, que quer viver. A beleza feminina que me conquista, ou a beleza masculina que conquista a garota, nada mais é que, novamente, a Vontade (ou o instinto de preservação) me jogando contra essa ou esse que, biologicamente – e a beleza é uma propaganda da saúde –, pode me dar um descendente saudável, apto a viver e gerar outro indivíduo também saudável, garantindo a sobrevivência da espécie – como tem sido desde muito. Inconscientemente, e sobre tudo, está o Eu; e sobre o Eu, a Vontade.

Rubem Alves já disse em muitos dos seus textos que, se retiramos a doutrina do Inferno da teologia cristã, ela desmorona. Num deles (“A beleza dos pássaros em vôo...”, em Se eu pudesse viver minha vida novamente... [2004]), pergunta: “Será o medo o início da religião? Medo da morte. Medo de abandonar este mundo luminoso! [...] Pois o fato é que o inferno é a base sobre a qual a teologia cristã se construiu – exceção feita aos místicos. A teologia cristã tradicional é um pião enorme que gira sobre essa aguda ponta de ferro chamada inferno. Mesmo quando se faz silêncio sobre ele, é ele que mantém o pião rodando: quem está em cima do pião que roda não pode ver a ponta de ferro que torna possível o seu giro. Sem essa ponta, o pião pára de girar e cai...” Acontece que, também, se retiramos o céu, ocorre o mesmo. É a promessa de uma vida bem-aventurada ou o medo da danação post mortem que fundamentam a moral religiosa, que alimentam a fé, que geram as diferentes teologias e que, grosso modo, sustentam todas as religiões.

O islamita radical que se dispõe a morrer “por amor à sua fé”, crê que, conforme uma leitura do Corão, um mundo melhor se descortinará tão logo ele exploda; e quanto maior a explosão, tanto maior a beatitude além-dela. O monge budista Ngo Quang Duc que, em 11 de junho de 1961, ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra a política religiosa do Vietnã do Sul, também cria numa melhoria espiritual, após a morte, uma recompensa pela nobre ação: estaria em situação melhor no ciclo de encarnações rumo à extinção (sansara) do Eu no Nirvana, o mundo espiritual superior – e, logo, tal Aniquilamento não é um mergulho no Nada. O monge cristão que leva uma vida de penitências, jejuns, orações, esmolas e serviços aos seus semelhantes, não o faz por amor a tais exercícios e nem ao Outro, mas pelo resultado que, com tais exercícios “espirituais”, espera granjear, na eternidade. E os exemplos poderiam se avolumar.

Na Valhalla, conforme a mitologia-teologia nórdica, escandinava (na Era Viking, século VIII ao XI), somente os corajosos guerreiros mortos tinham acesso ao castelo de Odin, onde passariam os dias em treinos de combate e, as noites, em grandes banquetes e orgias, e assim até o apocalíptico dia do Ragnarok – tais guerreiros formavam o Exército de Almas Vivas... vivos depois de mortos: um tipo de salvação, sem dúvida. Foi o cristianismo que, de certo modo, abriu o céu às mulheres. Todos e todas, conforme aparece em sua doutrina, devem se julgar “bem-aventurados quando injuriados e perseguidos por amarem o Evangelho”, pois, dos tais, “é o reino dos céus”. Sim, quanto mais se sofre neste vale de lágrimas, tanto mais, no céu, é a mansão celeste edificada em ruas de ouro, na Nova Jerusalém: o paraíso – palavra que o cristianismo herda do avéstico (língua iraniano-oriental) pairi-daeza, “uma área ao redor”, “um jardim murado”, protegido pela eternidade.

O próprio Cristo, na sua mensagem, dizia que “onde está o nosso tesouro, aí é que está também o nosso coração”. E dizia isso em relação ao amor dúbio, que condenava: deve-se amar ou as riquezas incorruptíveis do céu ou às da terra, corruptíveis. “Ninguém pode servir a dois senhores. Ou há de aborrecer a um e amar ao outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”, está lá no versículo 13 do capítulo 16 do Evangelho de Lucas. E nos versículos 19 a 20, no capítulo 6, também no Evangelho de Lucas: “Não ajunteis tesouros na terra, onda a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajunteis tesouros no céu, onde nem a traça e nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam.” No final das contas, e de um jeito ou de outro, o Cristo fala de um “amor a uma só riqueza”, uma riqueza, no entanto, e uma escolha. O cristão, sendo sábio, deverá escolher a superior, incorruptível. Que mensagem tão boa para quem governa os cristãos – Constantino sabia-a muito bem. Que mensagem tão bem vinda para quem, já na terra, tem riquezas corruptíveis e habita em casas, senão de ouro, bastante enfeitadas com ele – bem sabia-o o Czar Nicolau I, citado por Marx e Engels no começo do Manifesto do Partido Comunista (1848).

Além do medo e da esperança, o cristianismo reafirma uma moral milenar, anterior a ele mesmo, uma moral baseada no desejo de receber o que se dá, na exata proporção. É assim que, repetindo preceito antigo, o Cristo diz, de modo positivo: “Aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei vós a eles”, e diz que, aí, “estão sumariados toda a Lei e os Profetas”.

A fórmula da medida quantitativa Eu/Outro, no entanto, já é conhecida de muito, como no capítulo IV do Livro das explicações e das respostas em vinte capítulos, de Confúcio (c. 551–479 a.C.), onde lemos: “O Mestre disse: ‘Minha Via é costurada com um só fio.’ Tseng tzeu [discípulo de Confúcio] respondeu: ‘Com certeza.’ Quando o Mestre se retirou, seus discípulos perguntaram o que ele quisera dizer. Tseng tzeu res-pondeu: ‘A Via do nosso Mestre consiste na lealdade e no amor pelo outro como por si mesmo’.” (Livro das explicações, IV, 15). A regra é bem anterior ao advento do cristianismo, estando presente, de modo negativo, por exemplo, em Isócrates (c. 436–338 a.C. [Nícoles, 61]): “Não faças aos outros aquilo que te enfurece quando feito por putos”. Também aparece no Velho Testamento, em Tobias 4, 15. De Shammai e Hilel, dois grandes líderes religiosos da/na literatura rabínica – na Mishnah (primeira discussão feita a partir da Torah que vai para o Talmud) – há uma história que, além de apontar para a famosa “discordância” entre o pensamento de um e outro, reproduz a fórmula da medida quantitativa (Shammai, como também Hilel, eram judeus nascidos no século I a.C.): Shammai, diferentemente de Hilel, era um homem rígido e sem muita paciência. Certo dia, um jovem veio procurá-lo pedindo para ser convertido, com uma condição: “Converter-me-ei na condição de que você me ensina toda a Torah, enquanto eu estiver apoiado em um só pé.” Shammai expulsa-o para fora armado com uma régua. Nisso, o jovem vai dar aos pés de Hilel, que lhe diz: “O que não desejas para ti não o faças aos outros. Esta é a Torah. O resto é comentário. Vai e aprende.” Na literatura latina, encontramos a mesma sentença em Hélio Lamprídio (Vida de Alexandre Severo, 51, 15); e também na Didaqué (1, 2) e, não por fim, em Irineu (Adversus aereses, 3, 12,14). Não faça isto e não receberás aquilo; ou: faça isto e receberás o mesmo, na mesma medida. Troca. Desejo. Eu.

Como é que essa troca (“eu faço assim porque quero receber na mesma medida”, “não faço assim para não receber na mesma proporção”), um acordo puro da moral, ou da razão, pode ser associada ao amor ágape? Simples: não pode. Aí, novamente, está o amour de soi, o amor próprio, o egoísmo tão marcante da/na natureza humana. E como pode ser diferente? Simples: não pode. “O que as religiões desejam é transformar Deus em uma ferramenta a mais. A mais poderosa de todas. A ferramenta que realiza os desejos. [...] Pois não é isso que é o milagre: a realização de um desejo por meio da manipulação do sagrado? Só é canonizada santa uma pessoa que realizou milagres: o milagre é o atestado do seu poder para manipular o divino. E é assim que as religiões se multiplicam, porque os desejos dos homens não têm fim”, diz o Rubem, em “Sobre deuses, pássaros e gaiolas”, uma das crônicas que compõem O mundo num grão de areia: o ser humano e seu universo (2002).

A humanidade, quer você queira ou não, é isso; e sem isto não pode ser. Do contrário, seria uma entropia psico-biológica que, numa letargia antinatural, poria fim ao gênero humano. Sem amor, sem sexo, sem esperanças, sem guerras, sem qualquer vontade de qualquer coisa: fim. No final das contas, as mensagens das religiões, de um ou outro modo, não podem fugir à utilização disso que é mais comum a todos os homens e mulheres – mais que a própria razão e o bom senso –: o egoísmo. É comovente e compreensível a fala de Rubem Alves – ele que tão bem entende essas nuanças da Vontade e das estruturas dos nossos desejos mais secretos – no primeiro parágrafo do texto “Sobre deuses, pássaros e gaiolas”: “Não tenho religião porque não concordo com as coisas que elas dizem de Deus. Deus é um Grande Mistério. Está além das palavras. Diante do Grande Mistério a gente emudece. Fica em silêncio.” A melhor de todas as religiões, hoje, parece que é o respeito, a tolerância ao que não tem fé nenhuma, ou ao que tem fé demais. Sim, pois que a melhor das teologias não pode ser mais que... teopoesia. E, no mais, é o silêncio.


terça-feira, 30 de novembro de 2010

11.


Do Vazio e do discurso do Vazio


“O discurso perfeito é inexprimível, a ação perfeita é inação, o saber do sábio é superficial”, dito por um corcunda a Confúcio, conforme narrado por Liezi no Tratado do vazio perfeito. O taoísmo em sua origem é fascinante! Quem faz dele uma religião ou lhe dá propriedades mágico-metafísicas é que lhe estraga, expondo-o, “traduzindo-o” ou, melhor, traindo-o – como também outros fazem ao budismo, ao cristianismo, et cetera. Tradição → tradução → traição. As religiões têm esse poder: destruir a beleza do poético com o discurso das ações – afinal, o que é o discurso que prega a inação (como no caso acima) senão uma ação? – ou de uma suposta objetividade hermenêutica. O Tao, o perfeito Tao, não pode jamais ser dito – uma das primeiras lições do/no Tao Te Ching (ou “O Livro do Caminho e da sua Virtude”), no capítulo 1: “O Tao de que se pode falar não é o verdadeiro e eterno Tao. / O nome que pode ser dito não é o verdadeiro nome. / O que não tem nome é a origem do Céu e da Terra / E o nomear é a mãe de todas as coisas”. Princípio que também, em seu modelo mais cristão, aparece na teologia apofática (ou “negativa”) de Dionísio, Pseudo-Areopagita, no século V. O silêncio (ou o vazio), para ser silêncio (ou o vazio, para ser vazio), não pode nem ao menos ser silêncio, ser vazio, embora só sabido se anunciado, e mesmo como não-ser... E daí também a poesia, e o seu necessário paradoxo: falar do Sagrado é sempre teoposesia. Em suma: religião e pensamento são incompatíveis, paradoxais. Não por acaso Kierkegaard dizia que “a fé começa onde o pensamento termina”. E precisava dizer mais?




quinta-feira, 25 de novembro de 2010

10.


Contra Descartes


Viver é tomar partido; deixar de viver, também. Melhor ficar no meio termo, com Aristóteles, Buda ou o Cristo... Mas o equilíbrio, assim como o bom senso, é a coisa menos partilhada entre os homens.



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

9.


Dos nomes divinos


Deus, com suas centenas de nomes em centenas de religiões, é tão importante como Sentido-Mor para o indivíduo solitário que fita o céu estrelado, ou vê o horizonte distante e sente o que é ante o grandioso do/no Mundo, da/na natureza – da qual também faz parte –, que, se não existisse, teria que ser inventado. E o que, senão a fé, garante que não é assim? O desejo de Deus, da relação com o divino, Transcendenz, pode ser, ou nada mais ser, que a Vontade que ele seja. É preciso ter muita fé para não ter fé alguma, e aceitar a não-fé como fé-em-si-mesma, construto conceitual que nomeio o grande Vazio inominável. Seja como for, a fé é, sem qualquer dúvida, muito útil para aquele ou aquela que precisa de quem tem fé.



quinta-feira, 18 de novembro de 2010

8.


Fidelidade à terra


Aristóteles se opôs ao seu mestre, Platão, colocando a natureza em oposição às Idéias; a terra em oposição ao céu. E o fez muito bem. Afinal, que conhecemos do céu, ou das Idéias ditas... “puras”? Nós, os amantes da opinião. Ícaro alça voo. Édipo continua perdido em seu reflexo.



quarta-feira, 17 de novembro de 2010

7.


Lição de anatomia


No Livro I da Física, Aristóteles diz que as crianças chamam todos os homens de pais, e todas as mulheres de mães; só depois é que elas os distinguem. E eu digo, aqui, que as crianças deveriam permanecer nas barrigas das suas mães.



segunda-feira, 8 de novembro de 2010

6.


Da utilidade da História


A História (ou a memória histórica) só tem utilidade quando alimenta mais do que a luxuosa curiosidade, e quando fomenta mais do que o ócio criativo. Não é que a inutilidade seja inútil, mas esse status já pertence à Filosofia. A História, porém, merece o status de necessária quando serve ao presente e quando, acima de tudo, desvela os alicerces do que já é agora, mas que, ao futuro, no futuro, não tem que permanecer como um palácio murado, como as doutrinas das Igrejas, das ortodoxias seculares. A História só é útil quando não é história, mas visão fundamentada, não sagrada, “fim da história” – devir devindo, intempestivo. Não por acaso, no prefácio de Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben, de 1874, Nietzsche utilize-se de uma sentença de Goethe que reza: “De resto, detesto tudo o que só serve para me instruir sem aumentar minha atividade ou animá-la diretamente”. O que vem depois, dito por ele mesmo, e como ele mesmo o diz, é um Ceterum censeo (“considero o resto”, “estimo o resto”) à História. É o exemplo do passado retomado no presente e a projetar-se para o futuro: ação histórica, construção revolucionária. E embora a História não seja “fato jornalístico”, serve também como denúncia do tempo, presságio do (ou para o) futuro. Como ocorre na celebrada visão de Walter Benjamin (1892-1940), em suas Teses sobre a Filosofia da História (1940), quando ele descreve um quadro do suíço/alemão Paul Klee (1879-1940), o Angelus Novus. O próprio Benjamin, no ano seguinte à sua descrição apocalíptica – viviam-se os abalos da assinatura do pacto germânico-soviético –, estaria fazendo parte dos montes de ruínas e pilhas de cadáveres que com tanta lucidez profetizara. Marx dizia “que a história não se repete senão como farsa, ao que caberia acrescentar que a arte não retoma sua aura senão como fuga. O que antes era moderno agora se tornou pastiche, simulação, impostura: um gesto repetitivo” (Nicolau Sevcenko, 1995). E isso não é uma justificação do termo “pós-moderno”, na História. Aliás, e para não irmos tão longe, ainda é preferível ver a História como possibilidade crítica e construtiva do mundo, pelo viés indireto da narrativa direto-indireta, e não obstante os pré-conceitos dos historiadores. E é por isso que eu ainda prefiro crer, como Maurice Sachot, que “uma mesma história, vista de outro modo, torna-se uma outra história”. Eu creio contra a esperança.


sábado, 6 de novembro de 2010

5.


Das diferenças entre Ciência e Filosofia


Entre a ciência e a filosofia existem diferenças que devem ser consideradas: a ciência vive no presente, com o rosto engessado para o nascente; o passado em nada, ou quase nada, lhe interessa; a filosofia, ao contrário, alimenta-se do passado como um continuum... e olha para o poente, e para o nascente... à luz de velas, amarrando-se entre um e outro ponto. Qual a utilidade em, para um físico ou o astrônomo de hoje, reler Newton, Galileu? Que filósofo não leria Platão, ou Aristóteles?


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

4.

Contra Ésquilo

O tempo não passa, nunca; nós é que passamos. O tempo é como uma vitrine que nos contempla e nos segue, tão logo vemos, aí, nossa imagem refletida. Numa ordem aleatória ao nosso querer e aos nossos sentidos, quando nos movemos, ignoramos que a vitrina também se move, e pensamos que ela fica ali... Pode-se perguntar à mulher amada, como já vi nalgum lugar: “Quanto de olhos, de pele e de ossos já se me desprenderam desde a última vez que te vi?” Ela não terá respostas; ninguém terá. O tempo em si-mesmo, é atemporal, mas não é eterno. Somente nós, temporais, o sentimos e, tolos, pensamos em... eternidades. Como podemos pensar que algo como o amor ou a felicidade podem ser perfeitos se não forem eternos? Como o amor ou a felicidade, o tempo não tem lugar na eternidade e, com ela, não pode se confundir (co-fundir)... e isso é assim porque, não havendo quem o perceba, ou quem fale em horas, dias, meses, séculos, o que ele é? O tempo só há para quem lho percebe. O tempo é minha percepção consciente, e também a sua. Ésquilo, no Prometeu acorrentado, na epígrafe para Da vontade da natureza, em toda a sua sabedoria não compreendia isso muito bem, pois dizia: “Mas o tempo que corre fará com que tudo apareça em plena luz”. A linguagem comum, como o senso, é cheia de trincheiras, de aclives e declives, de enganos consensuais. Ora, como a luz, nós é que corremos e, para o tempo, nos perdemos para adiante e para trás; e só assim podemos nos perceber neste pré-sente. E nunca temos o passado, ou futuro, porque isso não há. Todo mundo sabe: ou este não existe mais, ou aquele ainda não veio. Mas, nós, sim, sempre estamos devindo. Ser é perceber-se in, in-der-Welt-sein, e o resto não existe.



Você ainda vai ter um ou “Eu vejo um museu de grandes novidades...” Anúncio da Volkswagen para o Passat Surf, de 1978. Versão destinada ao público jovem, com poucos equipamentos e aparência esportiva. Seguia a tendência criada pelos Dodge 1800 SE e Dart SE. Entre os equipamentos oferecidos a mais (em relação a versão básica) possuía apenas bancos altos e vidros verdes. O revestimento dos bancos e laterais era feito em cores vivas. Externamente, contava com pára-choques, frisos, maçanetas e retrovisores em preto, além de rodas pintadas de cinza grafite. O motor era o 1.5.





quarta-feira, 3 de novembro de 2010

3.

Dos antagonismos reinantes

O progresso da humanidade anda de mãos dadas com a sua ruína; e o contrário dá no mesmo. Em suma: não há muita escolha; Moira manda.




terça-feira, 2 de novembro de 2010

2.

O sentido das coisas

Passamos a vida toda em busca do sentido das coisas; mas, quem disse que as “coisas” têm algum sentido, ou têm que ter? Outras vezes pensamos que são as coisas que dão, ou que podem dar, algum sentido à vida. De um e de outro modo, nos equivocamos. Se formos sinceros com nós mesmos – e com a nossa consciência –, descobriremos que não há e nem nunca houve sentido algum, e nem precisa haver. Se eu não existo, nada, para mim, existe – e nem mesmo Deus. “Sei que sem mim Deus não pode viver um instante sequer. Se eu for aniquilado, também seu espírito tem de necessariamente extinguir-se”, dizia o místico Angelos Silesius, cheio de razão. A não ser que consideremos o não-sentido como já sendo algum, ou a própria vida enquanto unidade reflexivo-individual, moral (nisso, Kierkegaard e Wittgenstein concordam)... O sentido, nesse caso, seria procurar um sentido. Todavia: pensar a vida como um valor moral autônomo (Kant e os antimetafísicos) e ainda assim com uma finalidade (os teólogos cristãos) é, sem rodeios, um paradoxo gritante – e o contrário dá no mesmo. É verdade: o mundo todo é feito desses paradoxos. O sentido só existe, mesmo, naquilo que nós atribuímos funções, predicamos valores... como os metais preciosos, as obras de arte, o dever moral, as ideologias políticas, as doutrinas religiosas, o “amor romântico”, etc. O vazio, o nada, isso será, por fim, sua casa, a sua única e última morada.

domingo, 31 de outubro de 2010

Capítulo 3


A mínima fala: escousses provocativos a todo discurso filosófico-teológico que deseja-se levado à sério


Mote: “Tristeza, tristeza dos intelectuais! Tristeza, por exemplo, dos universitários! Sobre livros que ninguém lê, eles escrevem livros que ninguém lerá... É respeitável, comovente, se fazem isso por fidelidade ao passado e à sua função. [...] Erro ao dizer que ninguém os lê: a Universidade é um meio pequeno, mas necessário, que se reproduz assim, de professor a aluno, de tese em tese, de colóquio em colóquio... É só quando eles se levam a sério, ou seus livros, ou à sua carreira, que se torna acabrunhante de tédio e de ridículo” (André Comte-Sponville, O amor a solidão).



Escousses filosófico-teológicos

1.

Desejo e Vontade

A vida é essencialmente luta e, dela, é dependente. Sem o sofrimento não haveria o progresso – embora haja quem pense em um reino de paz perpétua, onde o sofrimento e a guerra inexistem. Neste mundo, que é le meilleur des mondes possibles (Leibniz), porém, tudo é dor, e guerra, e desejo, e sofrimento. O homem nasce só, vive só, morre só (Buda). Busca-se, pela ausência da dor, o prazer; mas o prazer, depois de alcançado – a não-dor, embora haja quem associe um ao outro –, é a dor de não mais desejar o que se desejava, e depois o desejo de outro “objeto” e, depois, mais outro ainda... Como a sede que não se mata, não pode ser saciada. Afinal, quem é que pode, realmente, “matar a sede”? Todos os nossos desejos são como afluentes de um único e mesmo rio que caminha para a dor... e se confundem (co-fundem) nos sinônimos que são lidos, às vezes, como se fossem antônimos. Eros e Tanatos são como Yin e Yang, noite e dia, guerra e paz... Wille und Leiden. E não há dualismo nenhum em tudo isso porque, no meio de tudo, esta o hiato que somos nós, as res cogitans.


segunda-feira, 25 de outubro de 2010

12.

Claude Lévi-Strauss, o antropólogo e filósofo francês que morreu em Paris no dia 30 de outubro de 2009, dedicou parte da sua vida (1935 a 1939) a estudar certos aspectos da cultura indígena brasileira, país que dizia amar; país da Rita Lee, que vestia tanto as calças Lee (criadas pelo americano Henry David Lee, em 1889) quanto o “Blue Jeans” criado em 1872, pelo teuto-americano Levi Strauss, que nada tem a ver com o primeiro Strauss, e menos ainda com o compositor alemão, Richard Strauss – criador do poema sinfônico Also sprach Zarathustra, Op. 30, baseado na obra, homônima, de Nietzsche, e que ficou conhecidíssimo depois de aparecer como tema de abertura no filme 2001: a space odyssey, de Kubrick.

Do segundo Strauss, que nunca fez um poema que se respeite, e nem pensou sobre os primeiros habitantes deste país de papagaios, bananas e macacos, era a marca Levi’s. Na década de 1950, a Levi’s usava uma publicidade que propunha, com suas calças, “Dá ao homem algo da mulher, e à mulher, algo do homem”. Uma proposta que, andrógena, parece propor uma equiparidade genérica, unindo os sexos numa peça só, unissex.


13.

Essa feminilidade do masculino e masculinidade do feminino foi o primeiro tema/capítulo da sessão “Sexo explícito”, no livro Contra natura: ensaio de psicanálise e antropologia surreal, de 1999, de Oscar Cesarotto. Aí, e à pergunta: “Qual é o papel da feminilidade dentro da sexualidade feminina?”, Cesarotto responde: “Que uma mulher seja feminina não é redundância, porque poderia assim não ser. Como se sabe, algumas mulheres são femininas em maior ou menor grau que outras. As outras são os reflexos nos quais cada uma delas pode medir seu narcisismo. Alienadas naquelas distintas delas, todas as mulheres rivalizam com sua semelhantes, invejando a performance alheia, sempre melhor. Ao mesmo tempo, todas e cada uma são capazes de se acreditar inteiras e sem mácula nenhuma. Estes transitivismos têm a sua origem numa identificação primitiva, maternal e arcaica (Alma Meter), cuja alteridade deve ser, necessariamente, outra coisa que elas procuram para além do espelho, porque uma comparação exclusiva entre mulheres não dá lugar a certeza alguma.37” É, não dá não!

É por isso que, aos homens, mas não com exclusividade, cabe a tarefa do cortejo, que fazem-no com olhares, com flores, com chocolates, et cetera. Se, por um lado, o travestismo feminino consignado pelas calças Levi’s promoveu aquela tal equiparidade, por outro, o cortejo masculino ainda confirma a fêmea cortejada – o contrário daria no mesmo –, elegendo-a dentre tantas, aceitando-a como uma diferente que, igual ao cortejador sobre outros aspectos (o da moda ou dos gostos, por exemplo), complementa-o. A teoria parece boa, e nítida; mas a prática não é tão nítida assim.

14.

Há, hoje mais que antes, uma crise de gêneros; fala-se, inclusive, numa “crise do macho”; mas há, também, embora pareça um discurso machista, uma “crise da fêmea” com o fito de ganhar espaços, algumas mulheres têm se masculinizado, perdido o norte do que seria uma “relação familiar”... que também está em crise por causa dessas crises anteriores. Cada dia é mais fácil perceber que a propaganda que prometia “dar ao homem algo da mulher, e à mulher, algo do homem”, como não é costume às propagandas, não era enganosa. Isso é fácil de notar, por exemplo, na mudança geográfica que houve na colocação do zíper nas peças da Levi’s e, por seu sucesso, em tudo o que era jeans. Se, antes, nas peças femininas, o zíper vinha fixado na lateral, com o progresso do feminismo (ou o declínio do machismo) ele seria deslocado para a entreperna, anulando aquela diferença do sexo mirado, feito alvo.

Tais mudanças da/na moda, no vestuário feminino, denunciam, além das mudanças sexistas, a adequação do corpo à cultura, como mecanismo de encobrimento e propaganda. Não é à toa que o Marquês de Sade, um dos pioneiros da revolução sexual e um dos primeiros a ter uma visão moderna da homossexualidade, na sua La philosophie dans le boudoir, de 1795, faz a seguinte notação: “Sem dúvida, o costume de vestir-se teve dois únicos motivos: a inclemência do ar e a coqueteria das mulheres; estas acharam que perderiam rapidamente todos os efeitos do desejo se não os previniam antes de deixá-los nascer. Perceberam que a natureza não as tinha criado sem defeitos, e se asseguram de ter todos os meios de agradar, ocultando estes defeitos com adornos; o pudor não foi, portanto, uma virtude, senão uma das primeiras consequências da corrupção, um dos primeiros recursos da esperteza das mulheres.”

15.

De fato: o erotismo reclama a beleza como condição, pré-condição; a beleza, para o erótico – para o desejo, portanto -, precisa de certo encobrimento; que senão vem o “acostumar-se com ela” e, aí, seu suplício, seu cadafalso. O órgão reprodutor, em si, não é coisa bonita. E embora ele seja buscado com afinco, antes, o que se vê, não é ele mesmo, mas o rosto do seu dono ou da sua dona, seus adereços e, às vezes, seu dote: propaganda. Leonardo da Vinci, no seu Diário - que poderíamos chamar de uma biografia psicanaliticamente orientada -, faz a mesma constatação: “O ato da cópula e os membros de que se serve são de uma fealdade tão grande que se não houver a delicadeza dos rostos, os enfeites dos participantes e o ímpeto desenfreado, Natura perderia a espécie humana.” Assim, e para não irmos tão longe, concluímos: o desejo sexual e os seus mecanismos (a moda, o engodo, o disfarce, et cetera) são como os enfeites do véu de Maya; o pudor é a demonização da Natura (Tabu), para que se pense no “antinatural” como coisa sublimada, real, e, assim, ele seja inconscientemente mantido como aquele buraco da fechadura, e a frase acima, provocativa: Não olhe!

Do amor romântico, do amor ao conhecimento, da cultura e da moral cristã-ocidental e da Verdade de/em tudo isso, para a moderna Modernidade, o Die Welt als Wille und Vorstellung, escrito em 1818, ainda é resposta e fundamento. De fato: tudo o que Nietzsche, Lou-Salomé e Freud dirão sobre o amor, depois de Schopenhauer, é mera repetição e acréscimo. Schopenhauer: essencial.


Fim do Artigo 2. A seguir (em fragmentos) o Artigo 3, final.


37 CESAROTTO, Oscar. Contra natura: ensaio de psicanálise e antropologia surreal. São Paulo: Iluminuras,1999. p. 15-6. (Col. Leituras Psicanalíticas).

domingo, 24 de outubro de 2010

9.

Mais que os adultos, para quem a moral – a cristã-ocidental, em especial, ou outra qualquer, patriarcal impôs as normas constitutivas da sagrada família, que é sempre vista como instituição divina e essência geradora (ou constitutivo-mantenedora) da ordem social, os adolescentes experimentam – ainda que coagidos por certos rudimentos da lei da coletividade, sempre restritivaalgo do amor primevo, ou seja, mais puro (ou animal); logo, para os adultos, mais irresponsável. É que os adolescentes são todo-hormônios, testosterona... tudo neles está em ebulição, em formação. E o amor que sentem é amour de soi, competição – é assim que o processo seletivo se firma. O namorado de Letícia é, para ela, uma arma contra suas “amigas”, contra a sua potencial extinção: “Vejam o meu namorado; como ele é gato!”, diz, e, com isso, quer dizer às outras: eu posso mais que vocês; eu fui escolhida [selecionada] por ele; eu estou no topo da pirâmide que garante que eu sou boa para gerar bons filhos. Sim, é verdade: Letícia, com um tal namorico, não pensa ainda em ter filhos. Mas ela não sabe que não sabe disso... e quem diz isso é a reação química do seu corpo, ou as suas mais ingênuas manifestações maternais – como a de uma criança que brinca com sua boneca: seja a do bebezinho que faz xixi e chora, ou a da Barbie, que é o tipo (ou modelo) padrão de simetria, de estética, que diz ao inconsciente coletivo que tal padrão é o modelo ideal que pode gerar outros exemplares perfeitos, perfeitamente padronizados segundo as preferências estéticas, culturais – sim, porque há culturas em que o padrão de beleza não obedece àquele da Barbie, por exemplo. O amor adolescente, ou dos adolescentes, é o amor da auto-afirmação: usa-se o Outro, o mais belo possível, para, a si mesmo, afirmar-se como belo, comobom reprodutor” (ou “boa reprodutora”) para futuros “bons reprodutores”. No final de tudo, mascarada nas disputas pelo ideal, está a Vontade de vida, o desejo de preservação... a seleção natural.

10.

O que a cauda do pavão representa para o pavão, para o cortejo da sua fêmea, também a música para os músicos, a pintura para os pintores, as esculturas para os escultores, a poesia para os poetas, e assim por diante, nas artes e nos ofícios, e mesmo na vagabundagem. Tudo no mundo, no final das contas, se resume no violento jogo da Vontade de vida que, para manter-se, lança indivíduos contra indivíduos, unindo-os ou separando-os na permanente guerra em busca dos melhores padrões genéticos, estéticos. Exemplares de boa qualidade geram exemplares ainda melhores - não “perfeitos”, mas aperfeiçoando-se, para que o mais apto sobreviva -, é a regra mais comum dessa biologia amorosa. Afinal, disso tudo, desses “jogos de amor”, ou dessa seleção natural, naturalíssima, dependem as próximas gerações. O “amor” é um artifício da Vontade, e não lhe cabe mais nada a não ser a obediência cega, mesmo que você não admita um mecanismo tão fechado, ou se perceba amando. O amor romântico, como uma sombra deste outro, é a sua sublimação idealística, uma invenção cultural e, pior caso, o desejo humano de transcendência, de encontrar um sentido para os tantos sem-sentidos do mundo, no mundo... o trágico32.

11.

Há duas seções de Aurora (escrito entre 1880 e 81) em que Nietzsche, já dando claros sinais de seu desapego por Schopenhauer e Wagner – que tanto o influenciaram no passado –, enfatiza uma força motriz que, no humano e em comparação à Vontade, impulsiona-o para o progresso, mesmo quando este ou esta “força” o torna mais infeliz, sacrificando-o. Trata-se da “paixão do conhecimento”, como pode ser visto nas seções 45 e 429 da referida obra. Tal força, conforme ele, é também uma vontade, uma “vontade de verdade”, conforme já havia sido tratado em Além do bem e do mal (§1). “Essa nova paixão”, diz Paulo César de Souza, tradutor da edição portuguesa que usamos aqui, “é entendida, num plano universal, como o impulso em que a humanidade mesma se sacrifica em prol do conhecimento”33. De fato, o célebre início da Metafísica de Aristóteles já é indício claro desse impulso para o saber, que o Estagirita também chama de amor: “Todos os homens, por natureza”, diz ele, “tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independente da sua utilidade e amam, acima de tudo, a sensação da visão”34. Através dos olhos, que no Evangelho são chamados de “janelas da alma”, nos chega, principalmente, o mundo, e com ele as imagens que ficam gravadas em nossa memória sentimental, nosso entendimento razoável. “Por que tememos e odiamos um possível retorno à barbárie? Porque ela tornaria os homens mais infelizes do que são?”, Nietzsche pergunta de modo retórico, respondendo logo em seguida: “Ah, não! Em todos os tempos os bárbaros tiveram mais felicidade, não nos enganemos! – Mas nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão; apenas imaginar esses estados é doloroso pra nós! A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós como o amor infeliz para aquele que ama: o qual ele não trocaria jamais pelo estado de indiferença; – sim, talvez nós também sejamos amantes infelizes!35” Quando nos acreditamos no amor romântico, é que nos achamos embriagados por uma emoção que nos toma de assalto, prendendo a razão nalgum calabouço medonho... e sofremos antes pelo que sofreremos depois. Mesmo assim, qual viciado que sabe que morre, recorrendo àquela substância que lhe prende e mata, voltamos a sonhar quando, numa manhã como esta, nos chega uma correspondência de longe, e com ela um livro de poemas que fala de “um desejo que havia, desde o início, de encontrar uma coisa que faltava...36” Do mesmo modo, analogamente, acreditamos no conhecimento, amando-o com igual teor etílico; mesmo quando este só traz a dor, mas ainda assim alguma verdade com ela. Nietzsche, embora tenha esboçado tal teoria do Desejo de conhecimento como outra fonte motora da Vontade, não consegue escapar da sombra de seu antigo mestre: Schopenhauer.

Continua e conclui a seguir...



32 Sobre o “trágico” e o “pessimismo” na obra de Schopenhauer, ver: PHILONENKO, Alexis. Schopenhauer: una filosofia de la tragedia. Trad. do original francês, para o castellano, feita por Gemma Muñoz-Alonso. Barcelona, 1989. 333p.

33 SOUZA, Paulo César de. Posfácio. In: NIETZSCHE, Fridrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 311.

34 Met., Livro A, 1, 980. ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Trad. de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. v. 2.

35 Aurora, §429. NIETZSCHE, Fridrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 225.

36 Trata-se do livrinho Heitor e Amália (Ed. do Autor, 2009), de Déa Acioly, que nos foi presenteado em 09 de dezembro do mesmo ano do lançamento.

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