domingo, 24 de outubro de 2010

9.

Mais que os adultos, para quem a moral – a cristã-ocidental, em especial, ou outra qualquer, patriarcal impôs as normas constitutivas da sagrada família, que é sempre vista como instituição divina e essência geradora (ou constitutivo-mantenedora) da ordem social, os adolescentes experimentam – ainda que coagidos por certos rudimentos da lei da coletividade, sempre restritivaalgo do amor primevo, ou seja, mais puro (ou animal); logo, para os adultos, mais irresponsável. É que os adolescentes são todo-hormônios, testosterona... tudo neles está em ebulição, em formação. E o amor que sentem é amour de soi, competição – é assim que o processo seletivo se firma. O namorado de Letícia é, para ela, uma arma contra suas “amigas”, contra a sua potencial extinção: “Vejam o meu namorado; como ele é gato!”, diz, e, com isso, quer dizer às outras: eu posso mais que vocês; eu fui escolhida [selecionada] por ele; eu estou no topo da pirâmide que garante que eu sou boa para gerar bons filhos. Sim, é verdade: Letícia, com um tal namorico, não pensa ainda em ter filhos. Mas ela não sabe que não sabe disso... e quem diz isso é a reação química do seu corpo, ou as suas mais ingênuas manifestações maternais – como a de uma criança que brinca com sua boneca: seja a do bebezinho que faz xixi e chora, ou a da Barbie, que é o tipo (ou modelo) padrão de simetria, de estética, que diz ao inconsciente coletivo que tal padrão é o modelo ideal que pode gerar outros exemplares perfeitos, perfeitamente padronizados segundo as preferências estéticas, culturais – sim, porque há culturas em que o padrão de beleza não obedece àquele da Barbie, por exemplo. O amor adolescente, ou dos adolescentes, é o amor da auto-afirmação: usa-se o Outro, o mais belo possível, para, a si mesmo, afirmar-se como belo, comobom reprodutor” (ou “boa reprodutora”) para futuros “bons reprodutores”. No final de tudo, mascarada nas disputas pelo ideal, está a Vontade de vida, o desejo de preservação... a seleção natural.

10.

O que a cauda do pavão representa para o pavão, para o cortejo da sua fêmea, também a música para os músicos, a pintura para os pintores, as esculturas para os escultores, a poesia para os poetas, e assim por diante, nas artes e nos ofícios, e mesmo na vagabundagem. Tudo no mundo, no final das contas, se resume no violento jogo da Vontade de vida que, para manter-se, lança indivíduos contra indivíduos, unindo-os ou separando-os na permanente guerra em busca dos melhores padrões genéticos, estéticos. Exemplares de boa qualidade geram exemplares ainda melhores - não “perfeitos”, mas aperfeiçoando-se, para que o mais apto sobreviva -, é a regra mais comum dessa biologia amorosa. Afinal, disso tudo, desses “jogos de amor”, ou dessa seleção natural, naturalíssima, dependem as próximas gerações. O “amor” é um artifício da Vontade, e não lhe cabe mais nada a não ser a obediência cega, mesmo que você não admita um mecanismo tão fechado, ou se perceba amando. O amor romântico, como uma sombra deste outro, é a sua sublimação idealística, uma invenção cultural e, pior caso, o desejo humano de transcendência, de encontrar um sentido para os tantos sem-sentidos do mundo, no mundo... o trágico32.

11.

Há duas seções de Aurora (escrito entre 1880 e 81) em que Nietzsche, já dando claros sinais de seu desapego por Schopenhauer e Wagner – que tanto o influenciaram no passado –, enfatiza uma força motriz que, no humano e em comparação à Vontade, impulsiona-o para o progresso, mesmo quando este ou esta “força” o torna mais infeliz, sacrificando-o. Trata-se da “paixão do conhecimento”, como pode ser visto nas seções 45 e 429 da referida obra. Tal força, conforme ele, é também uma vontade, uma “vontade de verdade”, conforme já havia sido tratado em Além do bem e do mal (§1). “Essa nova paixão”, diz Paulo César de Souza, tradutor da edição portuguesa que usamos aqui, “é entendida, num plano universal, como o impulso em que a humanidade mesma se sacrifica em prol do conhecimento”33. De fato, o célebre início da Metafísica de Aristóteles já é indício claro desse impulso para o saber, que o Estagirita também chama de amor: “Todos os homens, por natureza”, diz ele, “tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independente da sua utilidade e amam, acima de tudo, a sensação da visão”34. Através dos olhos, que no Evangelho são chamados de “janelas da alma”, nos chega, principalmente, o mundo, e com ele as imagens que ficam gravadas em nossa memória sentimental, nosso entendimento razoável. “Por que tememos e odiamos um possível retorno à barbárie? Porque ela tornaria os homens mais infelizes do que são?”, Nietzsche pergunta de modo retórico, respondendo logo em seguida: “Ah, não! Em todos os tempos os bárbaros tiveram mais felicidade, não nos enganemos! – Mas nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão; apenas imaginar esses estados é doloroso pra nós! A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós como o amor infeliz para aquele que ama: o qual ele não trocaria jamais pelo estado de indiferença; – sim, talvez nós também sejamos amantes infelizes!35” Quando nos acreditamos no amor romântico, é que nos achamos embriagados por uma emoção que nos toma de assalto, prendendo a razão nalgum calabouço medonho... e sofremos antes pelo que sofreremos depois. Mesmo assim, qual viciado que sabe que morre, recorrendo àquela substância que lhe prende e mata, voltamos a sonhar quando, numa manhã como esta, nos chega uma correspondência de longe, e com ela um livro de poemas que fala de “um desejo que havia, desde o início, de encontrar uma coisa que faltava...36” Do mesmo modo, analogamente, acreditamos no conhecimento, amando-o com igual teor etílico; mesmo quando este só traz a dor, mas ainda assim alguma verdade com ela. Nietzsche, embora tenha esboçado tal teoria do Desejo de conhecimento como outra fonte motora da Vontade, não consegue escapar da sombra de seu antigo mestre: Schopenhauer.

Continua e conclui a seguir...



32 Sobre o “trágico” e o “pessimismo” na obra de Schopenhauer, ver: PHILONENKO, Alexis. Schopenhauer: una filosofia de la tragedia. Trad. do original francês, para o castellano, feita por Gemma Muñoz-Alonso. Barcelona, 1989. 333p.

33 SOUZA, Paulo César de. Posfácio. In: NIETZSCHE, Fridrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 311.

34 Met., Livro A, 1, 980. ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Trad. de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. v. 2.

35 Aurora, §429. NIETZSCHE, Fridrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 225.

36 Trata-se do livrinho Heitor e Amália (Ed. do Autor, 2009), de Déa Acioly, que nos foi presenteado em 09 de dezembro do mesmo ano do lançamento.

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