quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

12.


Sobre o egoísmo inevitável e o motor das teologias


Nos versos 42 e 43 do Capítulo II, no Bhagavad-Gîtâ (A Sublime Canção), Krishna – o Homem-Deus, nosso Ego (nosso Eu Superior) – diz a Arjuna (o homem em seu estado evolutivo): “Muitos há que, saciando-se com as letras (ou com o sentido exterior, superficial) das Sagradas Escrituras e doutrinas, e não podendo perceber o seu verdadeiro sentido interior, acham grande deleite em controvérsias técnicas a respeito do texto, em definições monstruosas e abstrusas interpretações. / Os corações desses homens estão cheios de desejos e esperanças pessoais; o seu mais alto ideal é um céu, onde acham todos os objetos de seus prazeres, a satisfação do seu sensualismo, e não se elevam à altura de onde se percebe a união de todos os seres. Usam palavras floreadas, inventam várias cerimônias e falam muito dos prêmios que esperam aqueles que as observam, e dos castigos em que caem os que são de outras opiniões.” E essa é, certamente, a melhor das palavras para a conclusão: opinião – doxa, que, em grego, é um oposto de alethéia, verdade.

Há, aí, e sem que consideremos a veia religiosa que o texto pode ter em seu grande contexto – o Bhagavad-Gîtâ é só um episódio na/da grande epopéia hindu, o Mahâbhârata, que tem 250.00 versos –, uma descrição muito honesta (embora inconsciente) do coração do Cristianismo, do Islamismo e de outras religiões de salvação – aquelas as que crêem numa vida bem-aventurada post mortem. Sim: no coração de todas as religiões de salvação está entronizado aquele que é o maior de todos os sentimentos humanos, o motor que engendra o progresso e possibilita a vida como um todo: o egoísmo, o amour de soi... a Vontade.

O fiel cristão, domando seus instintos mais primitivos e suas paixões, serve à Igreja por dois medos essenciais, e uma esperança. Olhar o passado, neste sentido, ajuda a elucidar o presente. Na Idade Média e bem depois dela, antes da laicização dos Estados, por exemplo, o cristão tinha um medo terrível da excomunhão – que equivalia a um cartão vermelho no jogo social: sua participação no grupo, sua aceitação nele, e o seu sentimento de pertença. Ser excomungado era ser “expulso da comunhão” social, era tornar-se um pária, um Zé Ninguém neste mundo cão, um outsider – como nas teses sociológicas de Norbert Elias. E a excomunhão tinha poder de, ainda, crença vulgar, manter o indivíduo, depois da morte, fora dos portões do céu, nos quintos dos infernos.

O excomungado era um entregue ao Diabo. Que amarras poderosas tinha a Igreja de manter o seu fiel! Máxima antiga, válida desde os primeiros séculos da era crista: extra ecclesiam nulla salus. O contrário era a esperança: tanto mais o fiel se subordinasse à Igreja e aos seus líderes espirituais, tanto mais estaria garantido de, após a morte, entrar a salvo no paraíso, com Deus. E quando tal submissão é um “ato amoroso”, em que a experiência do (com o) Sagrado pode dar a entender que o Eu some, se perde no Outro, ainda assim, como na experiência romântico-amorosa, é o Eu que mais aparece. É o que Freud diz na primeira parte de O mal-estar na civilização (1930): “No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos. Um homem que se ache enamorado declara que ‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um fato.” E não é? Não. O sentimento romântico-amoroso, aliás, é o pior dos exemplos para ilustrar um possível esvaziamento do Eu, que é a pretensão doutrinária de quase todas as religiões. Aí, mais do que nunca, o Outro é objeto do meu querer, da minha Vontade. Se morro por tal objeto, como nos exemplos clássicos de Romeu e Julieta, ou de Werther, ou de Tristão, não é exatamente “pelo objeto que morro”, mas por mim: eu que não sei viver sem ele. No fim de tudo, fatalmente, é o Eu que vive, que quer viver. A beleza feminina que me conquista, ou a beleza masculina que conquista a garota, nada mais é que, novamente, a Vontade (ou o instinto de preservação) me jogando contra essa ou esse que, biologicamente – e a beleza é uma propaganda da saúde –, pode me dar um descendente saudável, apto a viver e gerar outro indivíduo também saudável, garantindo a sobrevivência da espécie – como tem sido desde muito. Inconscientemente, e sobre tudo, está o Eu; e sobre o Eu, a Vontade.

Rubem Alves já disse em muitos dos seus textos que, se retiramos a doutrina do Inferno da teologia cristã, ela desmorona. Num deles (“A beleza dos pássaros em vôo...”, em Se eu pudesse viver minha vida novamente... [2004]), pergunta: “Será o medo o início da religião? Medo da morte. Medo de abandonar este mundo luminoso! [...] Pois o fato é que o inferno é a base sobre a qual a teologia cristã se construiu – exceção feita aos místicos. A teologia cristã tradicional é um pião enorme que gira sobre essa aguda ponta de ferro chamada inferno. Mesmo quando se faz silêncio sobre ele, é ele que mantém o pião rodando: quem está em cima do pião que roda não pode ver a ponta de ferro que torna possível o seu giro. Sem essa ponta, o pião pára de girar e cai...” Acontece que, também, se retiramos o céu, ocorre o mesmo. É a promessa de uma vida bem-aventurada ou o medo da danação post mortem que fundamentam a moral religiosa, que alimentam a fé, que geram as diferentes teologias e que, grosso modo, sustentam todas as religiões.

O islamita radical que se dispõe a morrer “por amor à sua fé”, crê que, conforme uma leitura do Corão, um mundo melhor se descortinará tão logo ele exploda; e quanto maior a explosão, tanto maior a beatitude além-dela. O monge budista Ngo Quang Duc que, em 11 de junho de 1961, ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra a política religiosa do Vietnã do Sul, também cria numa melhoria espiritual, após a morte, uma recompensa pela nobre ação: estaria em situação melhor no ciclo de encarnações rumo à extinção (sansara) do Eu no Nirvana, o mundo espiritual superior – e, logo, tal Aniquilamento não é um mergulho no Nada. O monge cristão que leva uma vida de penitências, jejuns, orações, esmolas e serviços aos seus semelhantes, não o faz por amor a tais exercícios e nem ao Outro, mas pelo resultado que, com tais exercícios “espirituais”, espera granjear, na eternidade. E os exemplos poderiam se avolumar.

Na Valhalla, conforme a mitologia-teologia nórdica, escandinava (na Era Viking, século VIII ao XI), somente os corajosos guerreiros mortos tinham acesso ao castelo de Odin, onde passariam os dias em treinos de combate e, as noites, em grandes banquetes e orgias, e assim até o apocalíptico dia do Ragnarok – tais guerreiros formavam o Exército de Almas Vivas... vivos depois de mortos: um tipo de salvação, sem dúvida. Foi o cristianismo que, de certo modo, abriu o céu às mulheres. Todos e todas, conforme aparece em sua doutrina, devem se julgar “bem-aventurados quando injuriados e perseguidos por amarem o Evangelho”, pois, dos tais, “é o reino dos céus”. Sim, quanto mais se sofre neste vale de lágrimas, tanto mais, no céu, é a mansão celeste edificada em ruas de ouro, na Nova Jerusalém: o paraíso – palavra que o cristianismo herda do avéstico (língua iraniano-oriental) pairi-daeza, “uma área ao redor”, “um jardim murado”, protegido pela eternidade.

O próprio Cristo, na sua mensagem, dizia que “onde está o nosso tesouro, aí é que está também o nosso coração”. E dizia isso em relação ao amor dúbio, que condenava: deve-se amar ou as riquezas incorruptíveis do céu ou às da terra, corruptíveis. “Ninguém pode servir a dois senhores. Ou há de aborrecer a um e amar ao outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”, está lá no versículo 13 do capítulo 16 do Evangelho de Lucas. E nos versículos 19 a 20, no capítulo 6, também no Evangelho de Lucas: “Não ajunteis tesouros na terra, onda a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajunteis tesouros no céu, onde nem a traça e nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam.” No final das contas, e de um jeito ou de outro, o Cristo fala de um “amor a uma só riqueza”, uma riqueza, no entanto, e uma escolha. O cristão, sendo sábio, deverá escolher a superior, incorruptível. Que mensagem tão boa para quem governa os cristãos – Constantino sabia-a muito bem. Que mensagem tão bem vinda para quem, já na terra, tem riquezas corruptíveis e habita em casas, senão de ouro, bastante enfeitadas com ele – bem sabia-o o Czar Nicolau I, citado por Marx e Engels no começo do Manifesto do Partido Comunista (1848).

Além do medo e da esperança, o cristianismo reafirma uma moral milenar, anterior a ele mesmo, uma moral baseada no desejo de receber o que se dá, na exata proporção. É assim que, repetindo preceito antigo, o Cristo diz, de modo positivo: “Aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei vós a eles”, e diz que, aí, “estão sumariados toda a Lei e os Profetas”.

A fórmula da medida quantitativa Eu/Outro, no entanto, já é conhecida de muito, como no capítulo IV do Livro das explicações e das respostas em vinte capítulos, de Confúcio (c. 551–479 a.C.), onde lemos: “O Mestre disse: ‘Minha Via é costurada com um só fio.’ Tseng tzeu [discípulo de Confúcio] respondeu: ‘Com certeza.’ Quando o Mestre se retirou, seus discípulos perguntaram o que ele quisera dizer. Tseng tzeu res-pondeu: ‘A Via do nosso Mestre consiste na lealdade e no amor pelo outro como por si mesmo’.” (Livro das explicações, IV, 15). A regra é bem anterior ao advento do cristianismo, estando presente, de modo negativo, por exemplo, em Isócrates (c. 436–338 a.C. [Nícoles, 61]): “Não faças aos outros aquilo que te enfurece quando feito por putos”. Também aparece no Velho Testamento, em Tobias 4, 15. De Shammai e Hilel, dois grandes líderes religiosos da/na literatura rabínica – na Mishnah (primeira discussão feita a partir da Torah que vai para o Talmud) – há uma história que, além de apontar para a famosa “discordância” entre o pensamento de um e outro, reproduz a fórmula da medida quantitativa (Shammai, como também Hilel, eram judeus nascidos no século I a.C.): Shammai, diferentemente de Hilel, era um homem rígido e sem muita paciência. Certo dia, um jovem veio procurá-lo pedindo para ser convertido, com uma condição: “Converter-me-ei na condição de que você me ensina toda a Torah, enquanto eu estiver apoiado em um só pé.” Shammai expulsa-o para fora armado com uma régua. Nisso, o jovem vai dar aos pés de Hilel, que lhe diz: “O que não desejas para ti não o faças aos outros. Esta é a Torah. O resto é comentário. Vai e aprende.” Na literatura latina, encontramos a mesma sentença em Hélio Lamprídio (Vida de Alexandre Severo, 51, 15); e também na Didaqué (1, 2) e, não por fim, em Irineu (Adversus aereses, 3, 12,14). Não faça isto e não receberás aquilo; ou: faça isto e receberás o mesmo, na mesma medida. Troca. Desejo. Eu.

Como é que essa troca (“eu faço assim porque quero receber na mesma medida”, “não faço assim para não receber na mesma proporção”), um acordo puro da moral, ou da razão, pode ser associada ao amor ágape? Simples: não pode. Aí, novamente, está o amour de soi, o amor próprio, o egoísmo tão marcante da/na natureza humana. E como pode ser diferente? Simples: não pode. “O que as religiões desejam é transformar Deus em uma ferramenta a mais. A mais poderosa de todas. A ferramenta que realiza os desejos. [...] Pois não é isso que é o milagre: a realização de um desejo por meio da manipulação do sagrado? Só é canonizada santa uma pessoa que realizou milagres: o milagre é o atestado do seu poder para manipular o divino. E é assim que as religiões se multiplicam, porque os desejos dos homens não têm fim”, diz o Rubem, em “Sobre deuses, pássaros e gaiolas”, uma das crônicas que compõem O mundo num grão de areia: o ser humano e seu universo (2002).

A humanidade, quer você queira ou não, é isso; e sem isto não pode ser. Do contrário, seria uma entropia psico-biológica que, numa letargia antinatural, poria fim ao gênero humano. Sem amor, sem sexo, sem esperanças, sem guerras, sem qualquer vontade de qualquer coisa: fim. No final das contas, as mensagens das religiões, de um ou outro modo, não podem fugir à utilização disso que é mais comum a todos os homens e mulheres – mais que a própria razão e o bom senso –: o egoísmo. É comovente e compreensível a fala de Rubem Alves – ele que tão bem entende essas nuanças da Vontade e das estruturas dos nossos desejos mais secretos – no primeiro parágrafo do texto “Sobre deuses, pássaros e gaiolas”: “Não tenho religião porque não concordo com as coisas que elas dizem de Deus. Deus é um Grande Mistério. Está além das palavras. Diante do Grande Mistério a gente emudece. Fica em silêncio.” A melhor de todas as religiões, hoje, parece que é o respeito, a tolerância ao que não tem fé nenhuma, ou ao que tem fé demais. Sim, pois que a melhor das teologias não pode ser mais que... teopoesia. E, no mais, é o silêncio.


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