segunda-feira, 30 de abril de 2012


62.






Do bebop jazz ao tropicalismo, ou: De quando o autor é o tempo*



– “Nas partes...” Nas partes o caralho!
– Surtou, foi? O que tem as partes do caralho?
– Patativa só quer ser o engraçadinho! – Jorge disse, fechando o livro que lia e me tomando a pequenina peça de artesanato, que eu segurava. – Essa aqui já tem dono, Gafanhoto – era assim que ele me chamava, por causa de uma longa história que não vem ao caso nesta história. – Às vezes penso que os séculos de medo, de ideias dominadas por doutrinas que condenavam o corpo dos escritores ao suplício, aqui na terra, e suas almas, depois daqui, fizeram um estrago muito miserável na alma do Ocidente, em relação à sua literatura.
– Quê que tá pegando, Jorge?
Jorge Hippie era um amigo querido, lá de Crato, Ceará. Um hippie que não acreditava mais na ideologia hippie, e que dava aulas de História na URCA. “Eu ensino para pagar as minhas contas, Gafanhoto; e vendo meu artesanato para me divertir e conversar com as pessoas reais, do mundo real. Diferentemente do Cazuza, eu vivo muito bem sem uma ‘ideologia’. ‘Mas isso é também uma ideologia’, você poderia dizer. Mas eu falo é daquelas pelas quais se vive ou se mata, e pelas quais surgem os mártires, os que querem mudar o mundo. Não sirvo para isso.”
Como eu não dissesse nada, ele, agora trabalhando em um fio de cobre para alguma das suas peças, se explicou:
– Esse... “pudor” que foi imposto pela moral cristã-ocidental, que ainda prende os autores em suas expressões, em seus estilos, em suas maneiras de transmitir ideias é... Olha isso: “Era esse o inconveniente de jogar no gol, embora também tivesse outros tão insuportáveis quanto esse, como receber boladas no meio do peito ou nas partes.” “Nas partes” o caralho! Duvido que se não fosse essa moral e esse medo de falar das coisas como elas são, do modo como são vistas, sem todas essas travas da linguagem, às vezes bem inconscientes, ele escrevesse assim. Escrevia nada! Teria escrito era “nos ovos”; receber “boladas nos ovos”.
Jorge estava lendo, ou começando a ler, As dançarinas mortas1, do espanhol Antonio Soler. Daí lembrei-me do comecinho de A queda, de Camus, quando o advogado (o “juiz-penitente”, como se autodenomina), num bar de Amsterdã, entre os marinheiros, em seu exame de consciência, fala a um anônimo: “Meu senhor, posso oferecer-lhe meus préstimos, sem correr o risco de ser inoportuno?” Também tinha o comecinho de Pantaleón e as Visitadoras, de Mario Vargas Llosa, quando ele fala de um sujeito que, em Leticia, se crucificou para anunciar o fim do mundo. Recolhido ao hospício, foi retirado de lá pelas pessoas que o consideravam santo, etc. Enfim, não era a mesma coisa das “partes” de Soler, da reclamação de Jorge, mas mostrava como, de certo modo, há mesmo essa coisa do pudor, da polidez, dos níveis infra e supralunares da tensão hora santa hora profana: o espectro do cristianismo com a sua moral, juíza e carrasco, como o index provava. O medo havia sobrevivido nas entrelinhas, feito erva daninha ruim e resistente – e mesmo na literatura de autores sádicos como... Sade. E ai de Sade, para a fama de Sade, se não fosse isto: a sua contraparte moral. É como se não houvesse um meio de fugir àquilo que, nas teses sobre a comunicação, possibilita a compreensão das coisas, e das intenções – mesmo quando para contestá-las. Entre o sujeito A (o autor, o escritor, etc.) e o sujeito B (o leitor, o ouvinte, etc.) há uma série de abismos que, para que uma obra – a literária, em nosso caso – faça sentido, precisam ser transpostos. Coisa que nunca é, nunca mesmo, cem por cento.


– E então, Gafanhoto? Será que é preciso inventar uma nova linguagem para o mundo de hoje?, ou fazer frente aos vícios da atual, que domina não somente os compêndios de teologia e de filosofia, mas a chamada grande literatura?
– Ironia? – perguntei, com sinceridade.
– Não, né?! – ele disse.  – Falo de, quem sabe, uma coisa assim meio, meio Arturo Gouveia. Algo como no “Tânatos também te contempla”, do Santíssimas trevas2; ou como nalguns contos d’O mal absoluto3. Embora também o Arturo...
– Parece que eu preciso ler o Arturo. Pensei nos beats – falei, sem me aprofundar.
– Pois é... “os beats”; você diz. Quando o “pai dos beats” se apresenta, no Lonesome traveler4, ele próprio diz que não foi um deles. E também tem o problema dos gêneros literários, das épocas, do público-alvo e dessas porras todas. Pra tu vê, Gafanhoto: em 1940, a estética da espontaneidade estava, nos Estados Unidos, com os artistas que criticavam o racionalismo, o dualismo e o individualismo ligado ao liberalismo empresarial. E quem eram esses artistas? A maioria era filho de imigrantes judeus, de poloneses, de italianos e de irlandeses. Uma galera meio excluída dos grandes centros, meio fodida mesmo. A “expressão livre” que buscavam, fora dos “cânones culturais anglo-americanos”, na dança, na pintura, na música, na literatura e em outras artes, era um levante contra esse “controle burocrático associado ao liberalismo empresarial”, como li em alguma coisa do Daniel Belgrad.5
– Hummm... – eu não fazia a menor ideia sobre quem era o tal Belgrad.
– É, cara! Falavam em uma “intersubjetividade”. Palavrinha que grudou geral.
– Foi mesmo. Ainda hoje...
– E sabe em quem eles se fundamentavam? Trabalhos de Dewey, Whitehead e Jung, além dos existencialistas, e do surrealismo, e da psicologia gestalt e do zen-budismo. Os caras encaravam a arrogância eurocêntrico-ocidental com um pluriculturalismo que abraçava os índios, entende? A cultura nativa dos índios dos Estados Unidos da América... tipo tomando as dores do Enterrem meu coração na curva do rio, saca?, mesmo tendo sido só depois.6  
– Caramba! Tu se liga mesmo nessas coisas, né?
– Sim, meu broder! É preciso ficar ligado. E o bebop...
– Isso mesmo! Me fala aí sobre o bebop.
Bebop jazz. O bebop jazz destacava a importância que era dada ao holismo corpo-mente, naquela época; e também estava ligado à estética da espontaneidade.
– Como era isso?
– Construído no idioma afro-americano, era uma conversação espontânea de vozes prosódicas...
– Vozes o quê? – foi uma pergunta honesta.
– Prosódicas, Gafanhoto. Tu não se liga? De “prosódia”, saca? Que tem a ver com o ritmo, a entonação, a métrica, etc. Então, com base nisso, os caras entendiam que os sentidos de uma elocução verbal estavam em sua produção corporal, e não na sua simbologia.
– Ok!, mas estávamos falando de literatura, não? – eu tinha a impressão de que estávamos entrando num papo meio... gramático-musical, e confesso que estava bem perdido naquilo tudo.
– Meu irmão!, se ligue! É dai que nasce a famosa escrita espontânea de Kerouac, tá entendendo? O cara ligava o consciente ao inconsciente e disparava, integrando coisas à coisa, e essas coisas todas. Como é que tu acha que nasceu o On the road, hem? Foi assim, nessa vibe aí.
– Hummm... Me passei! – tive de admitir. Jorge continuou, cheio de empolgação:
– Na década de 1950, essas propostas de espontaneidade estavam voltadas contra a Guerra Fria, e era uma crítica social muito viva e abrangente. A prosódia espontânea dos beats, do mesmo modo que foi no bebop jazz, via o liberalismo empresarial como o grande vilão da cultura enlatada, plastificada em fórmulas e modelos estanques, prontos para vender fácil, expandir o consumo e deixar tudo no status quo de sempre, e a cabeça das pessoas, principalmente. Mas esses caras, ah!, meu irmão!, Esses caras queriam arrebentar com isso tudo; queriam incendiar a coisa toda. Tem uma frase, acho que é de Kerouac: “Só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu próprio sangue. Eu só confio em autores que escrevem com o sangue7.”  Pronto!, está aí, eram esses caras. Não foi por acaso que, depois dos beats, e pela influência que eles tiveram, surgiu a new left. Essa, por sua vez, pariu a contracultura dos hippies loucos e coloridos, em 1960. Tu se liga que está tudo encadeado?  
– Tu fala desse jeito, com os teus alunos?
– Ihhh!, qualé o problema, véi?! Os caras são descolados e não se ligam nessa coisa de “formalidade” não. Claro que tem os limites, né? Porque senão... 
– Jorge, desculpa perguntar – disse, confessando minha ignorância –: o que tu quer dizer com new left é mais do que “nova esquerda”, não é? Ou, melhor: o que era essa new left, aí?
– Tu pensa logo em política, né? E tem. Mas acho que eu não saberia explicar isso direito; não agora.8
– Então – procurei retomar o tema –, você falava dessa progressão dos movimentos e tal, e como isso afetava a produção literária, etc.
– Então, maluco?! No começo dos anos 60 os caras entraram numa de dadaísmo, explorando e ironizando expressões artísticas anteriores, substituídas pelo expressionismo abstrato e a pop art, como o crítico inglês Lawrence Alloway chamou a escola, parece que iniciada a partir de uma colagem de Richard Hamilton, chamada: “O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?”, de 1956. Doidera, né?
– Ôoo!...
– Daí só foi viagem e delírio: um parque de diversões na cabeça. Aqui houve, antes, a semana de arte moderna; lá, o jazz dava lugar ao rock-and-roll; e veio a LSD e as experiências transacionais, e aquelas viagens loucas à Índia, e o louco do Timothy Leary, e o festival de Woodstock, e Os Mutantes, e O Terço, o tropicalismo e o escambal. Um desbunde na cultura indie-alternativa, para cima e para baixo.  
– Voltando aos beats – chamei a palavra para mim. – Mesmo eles, como você falou, foram homens de seu tempo. Na desambiguação desses portraits instantâneos, como posso ver em poemas de Ferlinghetti ou na prosa espontânea de... Burroughs, por exemplo, há o experimentalismo que, hoje, sabermos os efeitos...  e, talvez por isso, uma inibição quanto ao repetir dos processo já... gasto. Sei lá! – eu não tinha, naquele tempo, o vocabulário do Jorge, e nem a sua bagagem cultural, e menos ainda a sua desenvoltura em falar as coisas que pensava, com ordem e clareza. – Acho que não sei dizer tudo como quero – confessei, embaraçado. – Penso que a novidade dessa literatura dos anos 50/60, ainda bem atual, foi soma de muito ácido mais o holismo que não ignorou obras não ocidentais, como a poesia haiku, o Kama Sutra, os koans, o I Ching, o Bhagavad-Gita e a ioga, dentre outras. Logo, um tipo de fórmula. Mesmo assim, como você também sugeriu, estava lá o “tempo ocidental”, e os seus signos, por toda a parte, nas entrelinhas. E como poderia ser diferente? A pergunta é bem simples, mas a resposta, não. Que “nova literatura” poderia estar livre disso?
– É! Mesmo assim, e se não é possível criar uma nova linguagem, é preciso desafiar as estruturas da narrativa convencional, quando elas parecerem engessar a criatividade, a ousadia que salta mais longe. Sem pólemos não há progresso; e a beleza estagnada, como o pôr-do-sol em um postal ou um rio parado numa pintura, nunca é mais linda que o real.
– Não é – concordei.
Jorge não disse nada por alguns instantes, e nem eu sabia mais o que dizer. Parecia que havíamos andado, andado e, então, voltado ao mesmo lugar de onde antes havíamos saído.
– E essa história toda não implica em ideologia, pregação ideológica; e nem em uma mensagem ou verdade cheia de “valores inegociáveis” e essas coisas todas.
– Tudo bem. Não pensei nisso – deixei que ele acreditasse que eu acreditei, para que ele ficasse tranquilo. – É difícil falar estando sempre do lado de fora, sem os recursos que estão presos no lado dentro... Ah!, você sabe.
– Caralho! Deixa isso pra lá – ele disse.
– É – respondi. – Deixa quieto.




* Trata-se de um brevíssimo diálogo sobre a transmissão de conteúdos, e conteúdos morais, na literatura engessada (inclusive na  prosa espontânea da literatura beat); e, embora malfadada, a proposta de uma literatura realmente livre, honesta e de vanguarda. Nele, no diálogo, sou mais espectador que ator, papel que cabe ao meu bom e querido amigo Jorge Hippie – de quem espero não haver corrompido as falas, e a honesta intenção.  
1 Publicado no Brasil em 1998, com tradução de Sérgio Molina, para a Companhia das Letras.
2 Cf. GOUVEIA, Arturo. Santíssimas trevas. João Pessoa: Editora Idéia, 2008. 
3 Cf. GOUVEIA, Arturo. O mal absoluto. São Paulo: Iluminuras, 1996. 
4 Jorge se referia, certamente, a esta confissão: “Na verdade, não sou um beat, mas sim um estanho e solitário católico, louco e místico...” Não saberia dizer como ele teria tido acesso ao livro (provavelmente em inglês, já que o citou pelo título original), uma vez que a primeira edição, em português, somente apareceu em 2005, com tradução de Eduardo Bueno, para a L&PM. Quanto à citação, ver: KEROUAC, Jack. Viajante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 10. Penso, igualmente, que o sentido do “não ser beat”, aí, de Kerouack, tem a mesma natureza do “não ser um autêntico vagabundo”, como ele diz de si mesmo, na mesma obra – no último capítulo: “O vagabundo americano em extinção” –: “Eu próprio fui um vagabundo, mas só até certo ponto, como se vê, porque sabia que algum dia meus esforços seriam recompensados com a proteção social – não fui um vagabundo autêntico, sem esperanças...” (p. 208); ou seja: um beat, um legítimo beat.   
5 Depois soube que se tratava do livro: The culture of spontaneity: improvisation and the arts in the post-war America (Chicago: The University of Chicago Press, 1998). Estamos em agosto de 2009, e eu não sei se já há alguma tradução para o português.
6 Lançado em 1970, Enterrem meu coração na curva do rio (Bury my heart at wounded knee), livro do americano Dee Brown (1908-2002), relata a destruição sistemática e progressiva dos índios da América do Norte. O livro reúne registros oficiais, autobiografias, depoimentos e descrições de primeira mão, nas palavras dos grandes chefes e guerreiros das tribos Dakota, Ute, Soiux, Cheyenne, dentre outras. É um livro triste, honesto e incrivelmente belo. No Brasil, a primeira edição é a do Círculo do Livro. Cf. BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. São Paulo: Círculo do Livro, 1974. 
7 A frase, na verdade, é de Nietzsche, na primeira parte de Assim falou Zaratustra (Do ler e escrever). Completa: “De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito. Eu só confio em autores que escrevem com o sangue.” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 40). A citação de Kerouac: “Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas.” (KEROUAC, Jack. On the road. London: Penguin Books, 1976. p. 12). Jorge, naturalmente e involuntariamente, deve ter trocado uma citação por outra.
8 Fundada em 1960, no Reino Unido, a New Left Review resulta da fusão de dois outros periódicos, o New Reasoner e o Left Review, ambos de tendência marxista. O nome vem de um texto de 1960, do sociólogo americano Charles W. Mills, Open letter to the new left, em que ele acusava a “Old Left”, tanto a comunista como a reformista (e também os liberais radicais) de haverem traído os ideais de liberdade e justiça. Fundamentando-se na Teórica da Alienação, do Jovem Marx, Mills provocou grande impacto entre os jovens intelectuais das décadas de 1960 e 70, principalmente. 


quinta-feira, 26 de abril de 2012


61.





Do falar com as paredes




No poema “Do amor desesperado”, no Divã do Tamarit*, Lorca fala da relação de intimidade entre os amantes e a noite, em um triângulo que nem sempre é saudável. No referido poema, a noite é apresentada como obstáculo a um casal:

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei,
ainda que um sol de lacraias me coma a fronte.

[...]

“... ainda que um sol de lacraias me coma a fronte.” Ah!, a que loucuras se submetem aqueles que amam?! Quantas promessas!? Quem saberia dizê-lo?
“Aquela filha de uma puta disse que ligava entre 22 e 22 e 30”, Lucy pensa, enquanto bebe mais uma dose de Bombay Sapphire. “Deve estar fodendo com um viadinho qualquer, por aí! Vaca miserável!” Lucy também se pergunta por que, afinal das contas, e se essa “sua garota” é tão isso mesmo, “ainda me importo?” Certo é que o tempo vai passando e nada de o telefone tocar. “Maldito telefone! Maldito!... Talvez unzinho me deixe mais calma”, pensa. “Essa erva que o Pedro me passou é mesmo muito boa. Preciso lembrar de encomendar mais, assim... uns três quilos.” Quase consegue rir com o pensamento bobo. Mas, não. “Toca telefone miserável!, toca!” Nada. O aparelho está lá, jogado no sofá, morto, mudo e apagado. “Será que tá desligado?”, pensa. Não; não está. Aproveita e vê a hora.
22:47.
Lucy senta no sofá, largada. Relê mensagens antigas em sua Caixa de Mensagens. Acha melhor não ficar fazendo isso. Acha melhor apagar algumas. Acha melhor respirar um pouco de ar. Levanta do sofá e, ao fazê-lo, nota que está meio tonta: “Esse gin é foda!”, pensa. Vai assim, meio cambaleando, até a janela. Vê o movimento noturno: o prédio ao lado, com algumas luzes acesas; os carros passando lá na pista do outro lado, com seus faróis vagalumeantes... “As pessoas parecem felizes, ou dopadas”. Lucy volta para a sala, e fica dando voltas de nenhum lugar para lugar nenhum.
Agora são 23:58.
Lucy fala com as paredes, olhando detalhes em sua pintura, e tem o olhar vago e perdido. “Eu poderia cheirar um pouco. É, Lucy!” diz a si mesma, isso vai te animar e te deixar ligada para quando aquela idiota resolver ligar, como prometeu.” Dentro do vidrinho colorido com uma estampa de Nina Simone fumando, em preto e branco, e por trás dos livros de Alain de Botton, na estante da sala, a alegria... Depois, um cigarro, e um pensamento sobre a sua vida, sua maldita vida, e o que anda fazendo com ela. Outra dose de gin, para manter o efeito. E Lucy está no céu, sem diamantes. Começa a desconfiar de que essa sua roupa “de Kelly Key” “não me fica muito bem”. Vai ao roupeiro e, procurando algo menos cheguei, encontra o seu revólver – um Tracker, RT 970, calibre 22. “Você é lindo! Bem que eu poderia pôr um fim nessa merda de uma vez...” Não!, não!, seria fácil demais. Guarda o revólver lá no alto, por trás dos lençóis dobrados. “Parece que o show do Wander Wildner vai ficar pra outro dia. Merda! A essas horas já deve ter começado. Que horas são?” Lucy volta à sala. Agora está com o vestido baixado até a cintura, e sem o sutiã. “Quero que se foda!” Diz a si mesma, pensando que algum vizinho do prédio ao lado possa estar lhe ver assim. “Que horas são?” Pega o telefone e nota que já são 02:05, e “aquela puta dos infernos merece um soco bem no meio da cara, e um gelo antártico. Vadia miserável! Vou mostrar a ela.”
Lucy percebe que, “caralho!, meu coração está disparado!” Sente-se tonta e cai no sofá, com a mão no peito. Tenta inspirar-respirar, e o ar parece sufocado, e a respiração difícil. “Será que essas porras todas vão foder comigo hoje?” Está muito alterada. Ela sabe. “Um baseado poderia me deixaria numa boa, não era?, ou piorar... Ai, buceta!” Lucy sabe que precisa resolver logo isto: essa coisa de depender desesperadamente de uma pessoa, e de esperar tão loucamente por uma ligação salvadora. “Eu poderia ligar pra ela. Mas, agora!?... Puta merda! Não seria legal; e não no estado em que estou... Só iria piorar ainda mais essa merda toda! Eu poderia falar umas merdas e... Merda!”
03:23.
Lucy está acordada. Liga a TV. Toma um Lexotan. “Merda!, merda! A noite já era!” É justamente quando pensa assim que, para seu enorme susto e alegria, o telefone toca...
– Ai, meu Deus! Será?!...
Levanta de um salto. Suas mãos tremem, e sua voz também, quando atende à chamada que é... uma ligação errada.




* Os sonetos do Divã do Tamarit foram lançados no Brasil, com tradução de Afonso Félix de Souza, juntamente com Os sonetos do amor obscuro, duas pequeninas obras póstumas do espanhol Federico García Lorca (1898-1936), pela editora Bertrand Brasil, em 2002. Conforme os editores, a família de Lorca exige que somente se publique Os sonetos do amor obscuro em companhia com a coleção dos poemas do Divã do Tamarit. Contemporâneos (Sonetos del amor oscuro; Divan del Tamarit, 1935/1936, respectivamente), os dois pequeninos livros, além de póstumos, têm afinidade na atmosfera quase sempre onírica e erótica, além dos recorrentes temas noturnos. Recentemente, com tradução de William Agel de Melo, o Sonetos de amor e Divã do Tamarit foi relançado dentro da Coleção Folha: Literatura Ibero-Americana (São Paulo: MEDIAfashion, 2012. v. 2). 


segunda-feira, 23 de abril de 2012


60.






De quando a flor tem um nome




Dizem que ele andava apaixonado e, pelo campo, antes de chegar à casa da moça, colheu as flores que lhe daria.
Era um dia de sol claro e bom, e a terra parecia respirar sossegada das guerras, da fome e das tristezas que assolam os continentes. Tudo estava em seu lugar, como deveria sempre ser.
Ele nem chegou à varanda e ela, vendo-o, saiu correndo para encontrá-lo, apressada em obedecer aos impulsos do seu coração enamorado; rindo feliz à luz do dia azul e ao sopro leve de uma brisa primaveril muito perfumada.
Ele escondeu o ramalhete de flores atrás de si e esperou que ela lhe alcançasse, hipnotizado com a sua beleza, olhando-a deslizar sobre a relva respingada de belas-emílias. Ela notou seu gracejo apaixonado e parou no meio do caminho, para que ele também fosse ao seu encontro e, enfim, pudessem trocar abraços e beijos, e passear pelo campo.
Vencido pelo desejo, ele atendeu à sua solicitação silenciosa, e mais que depressa saiu ao encontro dela, que era a flor mais linda de todas aquelas paragens. Mas...
... nem ao menos deu sete passos e, infeliz, sentiu o chão ceder sob seus pés, despencando na ribanceira amolecida nas águas do rio que ficava entre o bosque e a casa dela. Agarrou-se como pode em uma raiz protuberante, mas a correnteza o arrastava. Não conseguia largar o ramalhete de flores que era dela, que correu para ajudá-lo, mas sem nada poder fazer. Aos prantos, gritou por socorro; mas os homens haviam saído ou para o campo ou para a cidade, e a sua velha mãe não poderia fazer nada, infelizmente. Ele pediu que ela agarrasse as flores que ele iria jogar. Assim, dizia, poderia ficar com a mão livre e, se Deus a ajudasse, sair a salvo dali. Quando tomou impulso para lançar as flores, coisa que conseguiu, a pequenina raiz em que ele agarra-se partiu. Com as flores nas mãos, e chorando, ela ouviu quando ele implorou:
Vergis mein nitcht...
... que, na língua do moço, em alemão, queria dizer: “não te esqueças de mim”.
Sem conseguir ouvir direito, pelo barulho das águas e pelo canto feliz dos passarinhos, ela pensou ter ouvido apenas “miosótis”, e julgou que ele dizia o nome das flores que lhe presenteara. Nunca mais veria o rosto alegre do seu amado..  
* * * * *
E é por isso que até hoje, e mesmo que a moça não tenha compreendido, o miosótis é conhecido como “não-te-esqueças-de-mim”, ou “não-me-esqueças”. Além de ser recomendado contra a depressão pós-parto, e àqueles que tenham perdido o gosto pela vida, ou um ente querido que se foi e que jamais voltará.




sexta-feira, 20 de abril de 2012

59.






Da paixão do socialismo e outros ismos que amam mais...



Devidamente acomodado em minha poltrona, saquei da mochila um exemplar d’A paixão do socialismo & outras histórias, de Jack London, publicado pela L&PM. A senhora gorda, no banco ao meu lado, no outro lado do corredor do avião, parecia capaz de dar o braço direito para ver o que eu estava lendo. “Mas é curiosa a criatura!”, pensei, disfarçando não ver a risível cena de contorcionismo. Como se não me desse por conta, deixei que ela visse de uma vez a capa do livrinho, enquanto eu fingia ler a contracapa:

Então, voltei à classe operária, na qual havia nascido e à qual pertencia. Não me preocupava mais em subir. O imponente edifício da sociedade não guarda delícias para mim acima da minha cabeça. São os alicerces do edifício que me interessam. Lá, eu estou contente de trabalhar, de ferramenta na mão, ombro a ombro com intelectuais, idealistas e operários com consciência de classe, reunindo uma força sólida agora para mais uma vez pôr o edifício inteiro a balançar. Algum dia, quando tivermos poucas mãos e alavancas a mais para trabalhar, vamos derrubá-lo, com toda sua vida em putrefação e sua morte insepulta, seu egoísmo monstruoso e seu materialismo estúpido. Então vamos limpar os porões e construir uma nova moradia para a espécie humana, onde não haverá andar de luxo, na qual todos os quartos serão claros e arejados, e onde o ar para respirar será limpo, nobre e vivo. 

Acabei relendo todo o texto, e lembrando que foi por causa dele que, em 1997, ano em que essa versão foi lançada, comprei a referida, que é de uma coisa assim meio... beat, meio “sei lá o quê”. “Negócio lindo da porra!”, eu pensava. Como me tornei socialista e A paixão do socialismo são dois ensaios, e o relato mais vívido e fiel que o autor de O chamado da floresta já produziu, e são uma delícia. Em De vagões e vagabundos, que é um conto, London ensina como você podia se infiltrar clandestinamente nos trens que atravessavam o país; é praticamente um manual de como fazê-lo. É ainda um relato muito vivo de como os vagabundos e os viajantes clandestinos eram tratados pelos guardas e fiscais das estações. Há uma cena de Na natureza selvagem (Into the wild, 2007), filme de Sean Penn, em que Chris McCandless (interpretado por Emile Hirsch) experimenta esse tratamento – ele que era leitor de Jack London. Eu não tinha dúvida: A paixão do socialismo & outras histórias era o melhor de todos os livros que eu já havia lido, de Jack London.
Sem se fazer de rogada, e exibindo a sua verve de leitora exemplar, a senhora gorda sacou de sua bolsa grande e dourada um exemplar de Tempo de esperas (Editora Planeta, 2011), do padre Fábio de Melo. Impressionou-me o fato de ela não largar o livro – coisa que fiz, depois de umas 6 ou 7 páginas – até que chegássemos ao Aeroporto Internacional de Brasília, onde nos separamos pela conexão. Na noite do mesmo dia vi uma citação de uma reflexão do mesmo padre, elogiada como coisa muito inspirada e muito profunda.

Só dê ouvidos a quem te ama. Outras opiniões, se não fundamentadas no amor, podem representar perigo. Tem gente que vive dando palpite na vida dos outros. O faz porque não é capaz de viver bem a sua própria vida. É especialista em receitas mágicas de felicidade, de realização, mas quando precisa fazer a receita dar certo na sua própria história, fracassa.
Tem gente que gosta de fazer da vida alheia a pauta principal de seus assuntos. Tem solução para todos os problemas da humanidade, menos para os seus. Dá conselhos, propõe soluções, articula, multiplica, subtrai, faz de tudo para que o outro faça o que ele quer.
Só dê ouvidos a quem te ama, repito.

São os três primeiros parágrafos de Só dê ouvidos a quem te ama1. O padre Fábio mantém uma coluna no site da Comunidade Canção Nova, da qual faz parte, encompridando a fila dos textos fúteis de autoajuda espiritual, cafonice piegas e senso comum barato. Nela, ele é apresentado como professor em curso de teologia, cantor, compositor, escritor e apresentador do programa “Direção espiritual”, na TV Canção Nova2. Lembrei na hora de algo que eu havia lido em Stendhal. Algo que, embora também imerso no romantismo idealista, era menos delirante, pelo menos: “No meio de operações tão enganosas para o desejo da felicidade, a cabeça se perde”, ele diz; e completa: “A partir do momento em que ama, o homem mais sábio já não vê nenhum objeto tal como é. Ele exagera para menos suas próprias vantagens e para mais ao menores favores do objeto amado3.” A ênfase, em itálico, é do próprio Stendhal. Ele, em uma nota de rodapé ao que aí afirma, e referindo-se ao sentimento romanesco (de wayward) na literatura francesa do século XVIII e anterior, se lança para o futuro, em um século.

Há uma causa física, um início de loucura, uma afluência do sangue ao cérebro, uma desordem nos nervos e no centro cerebral. Ver a coragem efêmera dos cervos e a cor dos pensamentos de um soprano. Em 1922 [o De l’amour foi escrito entre 1820/22], a fisiologia nos dará a descrição da parte física deste fenômeno.4

O autor antevê a explicação mecânica do amor-gosto – referindo-se ao romanesco, presente na obra de autores como Crébillon, Lauzum, Duclos, Marmontel, Chamfort, madame d’Épinay, etc. –, que desnuda a dependência confiante nos sentidos, na tirania da afecção, elucidada à força da razão, contra o sentimento confiante da/na primeira infância do amor-paixão. Sim, pois o amor romântico, diferentemente disso, é semelhante à fé, que não tem – e nem pode – argumentos. Para Esmé, com amor e sordidez, é conto de J. D. Salinger. Nele, um soldado americano de passagem pela Inglaterra, prestes a embarcar para o Dia-D, narra a sua conversa com a menina que dá nome ao conto:

Esmé lançou um olhar demorado, vagamente clínico.
- Você tem um senso de humor muito apurado, não é? - falou, suspirosa. - Papai dizia que eu não tinha nem um pouco de senso de humor. Que eu estava despreparada para enfrentar a vida porque não tinha senso de humor.
Encarando-a, acendi um cigarro e disse-lhe não acreditar que o senso de humor tivesse qualquer utilidade numa hora de aperto.
- Papai disse que tinha.
Tratava-se de uma afirmação de fé, não de um contra-argumento, por isso resolvi bater rapidamente em retirada.5


Como as afirmações da fé, as afirmações do amante ao seu objeto são comprometidas por uma nuvem sentimental. Essa, em seu pensamento, produz o mesmo resultado que a fé, ao seu coração: obnubila o real, em favor da fantasia, nas atribuições que estão fundamentadas unicamente no desejo (ou no delírio) de uma felicidade referida ao próprio objeto, ao qual se prende – e pensa-o externo a si. É um equívoco pensar assim. Não há liberdade no amor romântico, somente prisões.
Amar é achar-se preso ao objeto amado, e querer continuar preso a ele, por “vontade própria” – como diz Camões, imitando os versos de Petrarca, pedra fundamental da poesia lírica italiana. A sã consciência não desejaria, jamais, qualquer prisão. O que ama, porém, não tem sã consciência: nem sabe disso, nem deseja compreender e menos ainda pagar o preço de tão dura, fria e pura “liberdade”. Passarinho que cresce em gaiola, se solto, morre. Onde há amor, não há liberdade.
Noutra meditação – A diferença entre amar e estar apegado6 –, o padre Fábio é de opinião contrária a minha: “O amor nos dá aquele sentimento de liberdade, enquanto que o apego nos aprisiona e pensamos que as pessoas devem agir da forma que queremos. O amor é livre! Quando estou apegado a alguém ou a alguma realidade, eu faço do outro meu escravo”, ele afirma.
O “apego”, se levamos mesmo a razão a sério, é somente uma forma vaga de falar livremente sobre um aspecto raso do amour de soi, que é o que há, o que mais há, e o que nós, seres humanos – cheios de fé ou de ceticismos – podemos ter, conhecer. Os “outros amores” não são mais que idealismos romantizados, credulidade infantil, extravagâncias metafísicas. No “Código de amor no século XII”, transcrito no De l’amour, de Stendhal, a regra 9 é a afirmação de que: “Ninguém pode amar se não é levado pela persuasão de amor (pela esperança de ser amado)7.” É o mesmíssimo estado de graça que é encontrado na fé religiosa (cristã): estado de dependência, de prisão: “Nenhum homem pode amar a Deus sem que ele, antes, por sua graça, o ame primeiro e, pelo seu Espírito, persuada a que este, receptor da graça, também o ame.” Assim, do mesmo modo que alguém diz: “Deus me libertou”, poderia também dizer: “Deus me prendeu, tornando-me um servo seu”, ou ainda: “Estou preso à fé, à minha fé, que me foi dada por Deus, e pela qual creio que sou livre.” Equívocos de equívocos! Os juízos sobre tais questões são sempre melindrosos, principalmente porque não partem de uma mente sã, isto é: desapaixonada. “Toda ação do amante termina em pensar na pessoa amada.” É, novamente, o código8.
Foi o amour de soi (amor ao conforto de crer sem refletir com critérios, e com lógica; amor ao direito de voltar logo para casa, com uns trocados no bolso; amor às próprias opiniões, por preguiça de procurar a verdade, etc.) que levou os 360 jurados – de um grupo de 500 – do Tribunal de Heliéia a condenarem Sócrates (em 399 a.C.),  “o mais corajoso, o mais sábio e o mais íntegro de todos os homens”, nas palavras de Fédon9.
Foi o amour de soi (o amor à segurança que as tradições parecem oferecer; o amor à fé que não exige reflexão dura e criteriosa, com lógica; o amor à leveza do depois de depois da cólera; o amor às convicções de líderes que se afirmam portadores das verdades inegociáveis, etc.) que levou a multidão, diante de Pilatos, conforme o evangelista, preterir o Cristo, entregando-o à cruz, e fazendo o próprio Pilatos confessar: “Estou inocente do sague deste justo. Que a culpa da morte dele seja vossa.10
A multidão dos gregos, a multidão dos judeus, a multidão dos erros, nos erros...
Não é que as opiniões do senso comum estejam sempre erradas. São as minorias que comandam as maiorias, e as minorias podem estar equivocadas, ou com más intenções, ou compradas. O fato de o senso comum gozar de grande aceitação não lhe garante legitimidade, nem validez inquestionável; nem de longe. Aqueles que discordam das multidões, também, nem sempre têm razão. Nas coisas do amor, por exemplo, poucos são os que subscrevem as teses de Freud ou Schopenhauer, e quando às conhece: julgando-as ou lascivas, ou pessimistas, ou equivocadas ou “outras coisas”. Subscrever talvez não seja, aí, a melhor palavra – pois pode dar a entender uma aceitação sem critérios; o que não é o caso, realmente. Esses dois pensadores, no entanto, foram os que mais compreenderam o papel da Vontade (ou da Pulsão) na vida das criaturas. E a ação da Vontade (ou a Pulsão) que foi maquiada com os mais diversos nomes11, todos eles enraizados em algum floreio que terminava no Amor12, e esse sempre querendo ir muito mais além do que as asas de Cupido (pequenas demais para alçarem voo) poderiam oferecer. Preso ao chão, ligado à terra, o amor (qualquer que seja o nome que você dê a ele) é daí, vem daí e aí morre. É como eu já disse no miniconto aí atrás, o De l’amour (que tomei emprestado de Stendhal): ideias fazem amor, e pessoas fazem sexo.
Falando nisso, agora mesmo escuto os gemidos “de amor” da garota que faz sexo aqui no apartamento logo acima do meu. Deus!, como ela grita! Meu último pensamento: “Esses danados deveriam aprender a trepar mais baixo. Isso atrapalha a concentração de qualquer vivente.”






1 Disponível em: <http://pensador.uol.com.br/autor/padre_fabio_de_melo/> Acesso em: 19 de abr. 2012. 
3 STENDHAL. Do amor. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 29-30. (Col. L&PM Pocket).
4 STENDHAL, 2011. p. 30.
5 SALINGER, J. D. Para Esmé, com amor e sordidez. In: _____. Nove histórias. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, [s.d.], p. 86.
7 Amare nemo potest, nisi qui amoris suasione compellitur. (Cod., regra 9, fl. 103). STENDHAL, 2011. p. 257.
8 Quilibet amantis actus in coamantis cogitatione finitur. (Cod., regra 34, fl. 103). STENDHAL, 2011. p. 257.
9 PLATÃO. Fédon, 117e-118c. “Os jurados que ocupavam os bancos do Tribunal de Heliéia não eram especialistas. Entre eles havia um número insólito de velhos e feridos de guerra que recorriam àquele tipo de trabalho como um meio fácil de conseguir uma renda extra. O salário era de três óbolos por dia, quantia menor que a recebida por um trabalhador braçal, mas representava uma boa ajuda para aqueles que já contavam 63 anos de vida e estavam entediados. Os únicos requisitos eram cidadania, sanidade mental e ausência de dívidas – embora a sanidade mental não fosse avaliada segundo os critérios socráticos; bastava demonstrar ser capaz de andar em linha reta e saber dizer o próprio nome quando fosse requisitado. Os membros do júri cochilavam durante os julgamentos, raramente possuíam qualquer experiência em casos semelhantes ou leis que fossem relevantes e não recebiam qualquer orientação sobre como chegar a um veredito.” (DE BOTTON, Alain. As consolações da filosofia. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 44).
10 Mat., 27, 24.
11 Inclusive o de “moral”, candura, retidão, limpidez, etc.
12 Não mais o Eros, naturalmente. A “redenção” de Eros se deu – no idealismo moral cristão – através do ágape, que doma as paixões carnais, medindo-as e ajustando-as ao equilíbrio equânime (ou à medida) do Bem e do bom, conforme a ortodoxia da doctrina christiana, e segundo as Escrituras.  

terça-feira, 17 de abril de 2012


58.





Do encontro inusitado



Não dependendo da lógica ou da razão, o amor romântico pode surgir nas horas mais inesperadas, e dos modos mais inusitados. Foi assim com Thiago e Carlos Mateus.
Em um cruzamento na Epitácio, que dá para a Torre, o carro de Thiago foi de encontro ao de Carlos, provocando um pequenino acidente. Thiago ficou muito nervoso:
– A culpa é sua, cara! Tá sabendo, né? – Dizia assim ao sair do carro, falando alto e com o corpo trêmulo.
– Aiii, criatura! Calmaaa! Eu me entrego.
Ele achou estranho esse modo de responder, mas não disse nada além de:
– Meu pai vai me matar! Ai, caralho! Meu pai vai me matar!
– Se somente o amor constrói, porque ele haveria de destruir o objeto do seu amor? – Carlos lhe disse, numa calma que não tinha tamanho.
Thiago, apesar do nervosismo e de tudo o mais, não conseguiu disfarçar o pequenino sorriso, quando perguntou:
– Cara! Que negócio é esse que tu tá usando, hem? Quero também.
Riram risos tímidos. E as poucas pessoas que observavam a cena, curiosas, duvidavam do que viam. “Duas bichas loucas”, talvez pensassem.
O seguro, Carlos dizia, se encarregaria dos trâmites legais da coisa toda. Trocaram telefones para tratarem sobre o ocorrido, no que fosse preciso. Encontraram-se no dia seguinte. Descobriram que era boa a companhia um do outro, e para o outro. Marcaram coisas para depois do depois. Estavam felizes, estranhamente felizes. Trocaram o primeiro beijo durante uma sessão de cinema, no Manaíra Shopping, durante uma cena de Igual a tudo na vida, de Woody Allen. 
* * * * *  
Agora distam três anos do acidente. Estão juntos há dois anos e meio. Dividem um apartamento e uma cama no Bairro dos Estados, e esperam notícias boas para o próximo verão – o resultado negativo do screening do câncer de cólon que, infelizmente, parece que Carlos tem.  



  

segunda-feira, 16 de abril de 2012

57.





De l’amour



Na primeira vez que li Do amor (De l’amour, escrito em 1820 e publicado em 1822), de Stendhal, Fernanda, uma amiga querida, pensando que se tratava de um romance, perguntou:
– Como é a história?
– Não tem história, Fernandinha – respondi.
– Ué!?
– São textos e análises sobre o amor no Ocidente, de todas as maneiras que, parece, o autor conseguiu tratar.
– Humm. É tu gosta dele?, concorda com ele?
– Gostar, gosto. Concordar, não é bem algo que se concorde ou deixe de concordar, mas...
– Ué!?
– É que Stendhal quase consegue ser mais platônico que o próprio Platão. Suas teses, divagações, digressões, analogias, metáforas, anedotas, máximas, mínimas, fragmentos, os conceitos, as notas e todas as comparações entre as manifestações do amor aqui e acolá, sucumbem sob uma única e impiedosa constatação que faço a máxima das minhas máximas, contra tudo e contra todos que, iludidos pela farsa dos idealismos milenares, sublimam as afecções da alma, romantizando o espírito da corte: ideias fazem amor, pessoas fazem sexo.
– Humm.
E ficou nisso.  



domingo, 15 de abril de 2012

56.





Do “amor ao próximo”, e como exercê-lo



Estou na rodoviária de João Pessoa, em uma fila. Devo comprar uma passagem para o ônibus que sai às 18:30, para Campina Grande.
Assim que cheguei fui abordado por um homem de aspecto bastante cansado. “A vida não foi generosa com esse cidadão”, pensei. Ele, na fila, olha para mim e diz que faz transporte alternativo de João Pessoa à Campina, e que, se eu quiser ir com ele, é o mesmo preço do ônibus, e somente falta mais um passageiro para completar a lotação. Agradeço e digo que vou de ônibus mesmo. Lembro-me de que, em outras vezes que tive de ir assim, os motoristas ligavam o som do carro muito alto, tocando essas bandas que fazem “forró estilizado”, como dizem alguns que tentam fugir da alcunha pejorativa de “forró de plástico”. Fico feliz de ter passagens e a fila não estar muito grande. É uma fila única.
Uma mulher, segurando uma mochila em uma mão e uma marmita na outra, chega logo depois de mim. “Será que ainda tem para as seis, hem?” “Acho que não, senhora. Para as seis e trinta, deve ter”, respondo. O homem da lotação lhe faz a mesma proposta. Mas ela, também, diz que prefere ir de ônibus e, de todo modo, precisa aguardar o filho que logo deve chegar para ir com ela. O homem se afasta, procurando os dois passageiros que faltam.
– Não gosto de ir de alternativo. – Ela me diz. Concordo.
– E alguns são bem irresponsáveis, e mal educados. – Digo. Ela concorda com um sorriso amistoso.
Não demora nada e chega outra mulher. O cabelo dela é curto, estaqueado e precariamente pintado de louro, com a raiz visivelmente enegrecida. É a segunda na fila, depois de mim. Até aí havia dois vendedores nos guichês; agora, somente um. A primeira pessoa da fila, embora o atendimento esteja agora à sua direita, permanece imóvel, com sua cara de Gioconda espelhada no vidro do guichê fechado. A fila inteira se mantém assim, uma pessoa atrás da outra, e todas atrás dessa primeira. Em sinal de inconformismo, mudo de lugar, como se houvesse uma fila invisível entre o guichê e eu. Outros me seguem. Daí a pouco todos notam o movimento da fila e, agora, estão posicionados em frente ao guichê aberto.  
Alguém me cutuca as costas. Olho para trás. É a senhora que não gosta de andar de lotação.
– Licença, moço. O sr. pode levantar o pé? É que...
Olhei para o chão e vi que estava pisando sobre sua sandália, de couro, muito fina. Se ela não dissesse nada, juro que não teria notado. O meu sorriso se acompanhou de um “opa!, me desculpe; eu não percebi.” Ela riu também, como a dizer que “está tudo bem”. Foi aí que eu notei que a outra mulher, que estava atrás dessa, a de cabelos mal pintados, agora estava bem a minha frente. Tive vontade de perguntar bem alto a todos da fila: “Mais alguém que tomar o meu lugar?, quer furar a fila?” Não disse nada. Mas me irritou profundamente o fato de essa mesma criatura, na hora de comprar a passagem, dizer que “é para as oito horas, moço”, e ainda estar toda atrapalhada com o cartão de crédito, sem saber qual é a senha e tendo de fazer ligações não sei para quem para que este Não Sei Quem lhe dissesse qual era a sua senha. Finalmente ela conseguiu, e se afastou sem olhar para trás.
– Ela passou à nossa frente, não foi? – A mulher da sandália de couro me pergunta, para confirmar ao filho que realmente era isso que havia ocorrido.
– Pois é. – Respondo – E ainda mais para comprar uma passagem somente para às 20:00.
Passagem comprada, disponho ainda de algum tempo antes de partir. Vou a uma banca de revistas que há no piso superior, lá bem à esquerda. Compro um exemplar de Do amor (L&PM, 2011), livro de Stendhal, escrito em 1820, depois de sua frustrada paixão por Matilde Dembowski, uma milanesa que arrasou o seu coração – é só ler o referido livro que, mesmo a alma mais desatenciosa, nota-o. Publicado em 1822, o Do amor faz referência às cortes de amor: “Houve cortes de amor, na França, entre os anos 1150 e 1200. Eis o que se encontra provado. Provavelmente a existência de cortes de amor remonta a uma época bastante anterior.” E por esse período que, conforme nota Stendhal, surge o amor cortês, o cortejar a mulher amada, o romance na corte. “Quantos livros será que eu já tive e estou tendo de comprar novamente?”, me pergunto, lembrando-me de todos os livros que, meus, foram perdidos pelo meu irmão, em sua mudança de São Paulo para Vinhedo. Eu precisava readquirir este livro, se quisesse ser respeitado nos juízos que faço sobre o amor, como venho fazendo neste meu Grande livro do amor. Stendhal foi, desde cedo, e para ele, minha principal referência – se não nas ideias, na estética. Folheei o livro por alguns instantes, até a hora de embarcar.
Ainda no guichê, notei que quase não havia mais assentos à janela. Comprei a poltrona 47, uma das duas que restavam. Quando embarquei, vi que havia uma garota ocupando a referida poltrona, conversando alegremente com outra, sentada ao seu lado. Depois de guardar a mochila, olhei para ela, dizendo: “Com licença. Parece que essa cadeira é minha.” Ela me apontou com olhos as duas cadeiras mais atrás, na outra fila, uma delas ocupado por um senhor de bigodes grisalhos e rosto sereno.
– Tu se incomoda de sentar nessa daí? É que eu e ela...
– Me incomodo, sim. – Interrompi as suas explicações.
– Ok! – Ela levantou e foi para o seu lugar, como tinha de ser. Não me disse mais nada e, parece, também não tinha nada de importante a conversar com outra. Trocaram duas ou três palavras e, ela mesma, ao meu lado, ficou ouvindo música, com fones enfiados em seus ouvidos. Sentei em meu canto e tentei inclinar o banco o tanto que pudesse. “Tomara que eu consiga dormir logo”, pensei. E não preciso dizer que, por toda a viagem, ninguém mais me incomodou.
O melhor do amor ao próximo se resume nisto: não incomodá-lo.



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