62.
Do bebop jazz ao tropicalismo, ou: De quando
o autor é o tempo*
– “Nas partes...” Nas partes o
caralho!
– Surtou, foi? O que tem as
partes do caralho?
– Patativa só quer ser o
engraçadinho! – Jorge disse, fechando o livro que lia e me tomando a pequenina
peça de artesanato, que eu segurava. – Essa aqui já tem dono, Gafanhoto – era
assim que ele me chamava, por causa de uma longa história que não vem ao caso
nesta história. – Às vezes penso que os séculos de medo, de ideias dominadas
por doutrinas que condenavam o corpo dos escritores ao suplício, aqui na terra,
e suas almas, depois daqui, fizeram um estrago muito miserável na alma do
Ocidente, em relação à sua literatura.
– Quê que tá pegando, Jorge?
Jorge Hippie era um amigo querido,
lá de Crato, Ceará. Um hippie que não acreditava mais na ideologia hippie, e
que dava aulas de História na URCA. “Eu ensino para pagar as minhas contas,
Gafanhoto; e vendo meu artesanato para me divertir e conversar com as pessoas
reais, do mundo real. Diferentemente do Cazuza, eu vivo muito bem sem uma
‘ideologia’. ‘Mas isso é também uma ideologia’, você poderia dizer. Mas eu falo
é daquelas pelas quais se vive ou se mata, e pelas quais surgem os mártires, os
que querem mudar o mundo. Não sirvo para isso.”
Como eu não dissesse nada, ele, agora
trabalhando em um fio de cobre para alguma das suas peças, se explicou:
– Esse... “pudor” que foi
imposto pela moral cristã-ocidental, que ainda prende os autores em suas
expressões, em seus estilos, em suas maneiras de transmitir ideias é... Olha
isso: “Era esse o inconveniente de jogar no gol, embora também tivesse outros
tão insuportáveis quanto esse, como receber boladas no meio do peito ou nas
partes.” “Nas partes” o caralho! Duvido que se não fosse essa moral e esse medo
de falar das coisas como elas são, do modo como são vistas, sem todas essas
travas da linguagem, às vezes bem inconscientes, ele escrevesse assim. Escrevia
nada! Teria escrito era “nos ovos”; receber “boladas nos ovos”.
Jorge estava lendo, ou começando
a ler, As dançarinas mortas1, do espanhol Antonio Soler. Daí lembrei-me
do comecinho de A queda, de Camus,
quando o advogado (o “juiz-penitente”, como se autodenomina), num bar de
Amsterdã, entre os marinheiros, em seu exame de consciência, fala a um anônimo:
“Meu senhor, posso oferecer-lhe meus préstimos, sem correr o risco de ser
inoportuno?” Também tinha o comecinho de Pantaleón
e as Visitadoras, de Mario Vargas Llosa, quando ele fala de um sujeito que,
em Leticia, se crucificou para anunciar o fim do mundo. Recolhido ao hospício, foi retirado de lá pelas pessoas que o consideravam santo, etc. Enfim, não era a mesma coisa das “partes” de
Soler, da reclamação de Jorge, mas mostrava como, de certo modo, há mesmo essa coisa
do pudor, da polidez, dos níveis infra e supralunares da tensão hora santa hora
profana: o espectro do cristianismo com a sua moral, juíza e carrasco, como o index provava. O medo havia sobrevivido nas
entrelinhas, feito erva daninha ruim e resistente – e mesmo na literatura de
autores sádicos como... Sade. E ai de Sade, para a fama de Sade, se não fosse isto:
a sua contraparte moral. É como se não houvesse um meio de fugir àquilo que,
nas teses sobre a comunicação, possibilita a compreensão das coisas, e das
intenções – mesmo quando para contestá-las. Entre o sujeito A (o autor, o
escritor, etc.) e o sujeito B (o leitor, o ouvinte, etc.) há uma série de
abismos que, para que uma obra – a literária, em nosso caso – faça sentido,
precisam ser transpostos. Coisa que nunca é, nunca mesmo, cem por cento.
– E então, Gafanhoto? Será que é
preciso inventar uma nova linguagem para o mundo de hoje?, ou fazer frente aos
vícios da atual, que domina não somente os compêndios de teologia e de
filosofia, mas a chamada grande literatura?
– Ironia? – perguntei, com
sinceridade.
– Não, né?! – ele disse. – Falo de, quem sabe, uma coisa assim meio, meio
Arturo Gouveia. Algo como no “Tânatos também te contempla”, do Santíssimas trevas2;
ou como nalguns contos d’O mal absoluto3. Embora também o Arturo...
– Parece que eu preciso ler o
Arturo. Pensei nos beats – falei, sem
me aprofundar.
– Pois é... “os beats”; você
diz. Quando o “pai dos beats” se apresenta, no Lonesome traveler4, ele
próprio diz que não foi um deles. E também tem o problema dos gêneros
literários, das épocas, do público-alvo e dessas porras todas. Pra tu vê, Gafanhoto:
em 1940, a estética da espontaneidade estava, nos Estados Unidos, com os
artistas que criticavam o racionalismo, o dualismo e o individualismo ligado ao
liberalismo empresarial. E quem eram esses artistas? A maioria era filho de
imigrantes judeus, de poloneses, de italianos e de irlandeses. Uma galera meio
excluída dos grandes centros, meio fodida mesmo. A “expressão livre” que
buscavam, fora dos “cânones culturais anglo-americanos”, na dança, na pintura,
na música, na literatura e em outras artes, era um levante contra esse
“controle burocrático associado ao liberalismo empresarial”, como li em alguma
coisa do Daniel Belgrad.5
– Hummm... – eu não fazia a
menor ideia sobre quem era o tal Belgrad.
– É, cara! Falavam em uma
“intersubjetividade”. Palavrinha que grudou geral.
– Foi mesmo. Ainda hoje...
– E sabe em quem eles se
fundamentavam? Trabalhos de Dewey, Whitehead e Jung, além dos existencialistas,
e do surrealismo, e da psicologia gestalt
e do zen-budismo. Os caras encaravam a arrogância eurocêntrico-ocidental com um
pluriculturalismo que abraçava os índios, entende? A cultura nativa dos índios
dos Estados Unidos da América... tipo tomando as dores do Enterrem meu coração na curva do rio, saca?, mesmo tendo sido só
depois.6
– Caramba! Tu se liga mesmo
nessas coisas, né?
– Sim, meu broder! É preciso
ficar ligado. E o bebop...
– Isso mesmo! Me fala aí sobre o
bebop.
– Bebop jazz. O bebop jazz destacava a importância que era dada ao holismo corpo-mente, naquela
época; e também estava ligado à estética da espontaneidade.
– Como era isso?
– Construído no idioma
afro-americano, era uma conversação espontânea de vozes prosódicas...
– Vozes o quê? – foi uma
pergunta honesta.
– Prosódicas, Gafanhoto. Tu não
se liga? De “prosódia”, saca? Que tem a ver com o ritmo, a entonação, a
métrica, etc. Então, com base nisso, os caras entendiam que os sentidos de uma
elocução verbal estavam em sua produção corporal, e não na sua simbologia.
– Ok!, mas estávamos falando de
literatura, não? – eu tinha a impressão de que estávamos entrando num papo
meio... gramático-musical, e confesso que estava bem perdido naquilo tudo.
– Meu irmão!, se ligue! É dai
que nasce a famosa escrita espontânea de Kerouac, tá entendendo? O cara ligava
o consciente ao inconsciente e disparava, integrando coisas à coisa, e essas
coisas todas. Como é que tu acha que nasceu o On the road, hem? Foi assim, nessa vibe aí.
– Hummm... Me passei! – tive de
admitir. Jorge continuou, cheio de empolgação:
– Na década de 1950, essas
propostas de espontaneidade estavam voltadas contra a Guerra Fria, e era uma
crítica social muito viva e abrangente. A prosódia espontânea dos beats, do mesmo modo que foi no bebop jazz, via o liberalismo empresarial
como o grande vilão da cultura enlatada, plastificada em fórmulas e modelos estanques, prontos para vender
fácil, expandir o consumo e deixar tudo no status
quo de sempre, e a cabeça das pessoas, principalmente. Mas esses caras,
ah!, meu irmão!, Esses caras queriam arrebentar com isso tudo; queriam
incendiar a coisa toda. Tem uma frase, acho que é de Kerouac: “Só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu próprio
sangue. Eu só confio em autores que escrevem com o sangue7.” Pronto!, está aí, eram esses caras. Não foi
por acaso que, depois dos beats, e
pela influência que eles tiveram, surgiu a new
left. Essa, por sua vez, pariu a contracultura dos hippies loucos e coloridos, em 1960. Tu se liga que está tudo
encadeado?
– Tu fala desse jeito, com os teus alunos?
– Ihhh!, qualé o problema, véi?! Os caras são descolados e não se
ligam nessa coisa de “formalidade” não. Claro que tem os limites, né? Porque
senão...
– Jorge, desculpa perguntar – disse, confessando minha ignorância –: o
que tu quer dizer com new left é mais
do que “nova esquerda”, não é? Ou, melhor: o que era essa new left, aí?
– Tu pensa logo em política, né? E tem. Mas acho que eu não saberia
explicar isso direito; não agora.8
– Então – procurei retomar o tema –, você falava dessa progressão dos
movimentos e tal, e como isso afetava a produção literária, etc.
– Então, maluco?! No começo dos anos 60 os caras entraram numa de
dadaísmo, explorando e ironizando expressões artísticas anteriores,
substituídas pelo expressionismo abstrato e a pop art, como o crítico inglês Lawrence Alloway chamou a escola, parece
que iniciada a partir de uma colagem de Richard Hamilton, chamada: “O que exatamente
torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?”, de 1956. Doidera, né?
– Ôoo!...
– Daí só foi viagem e delírio:
um parque de diversões na cabeça. Aqui houve, antes, a semana de arte moderna; lá, o jazz
dava lugar ao rock-and-roll; e veio a LSD e as experiências transacionais,
e aquelas viagens loucas à Índia, e o louco do Timothy Leary, e o festival de Woodstock, e Os Mutantes, e O
Terço, o tropicalismo e o escambal. Um desbunde na
cultura indie-alternativa, para cima
e para baixo.
– Voltando aos beats –
chamei a palavra para mim. – Mesmo eles, como você falou, foram homens de seu
tempo. Na desambiguação desses portraits
instantâneos, como posso ver em poemas de Ferlinghetti ou na prosa espontânea de...
Burroughs, por exemplo, há o experimentalismo que, hoje, sabermos os efeitos...
e, talvez por isso, uma inibição quanto
ao repetir dos processo já... gasto. Sei lá! – eu não tinha, naquele tempo, o vocabulário
do Jorge, e nem a sua bagagem cultural, e menos ainda a sua desenvoltura em
falar as coisas que pensava, com ordem e clareza. – Acho que não sei dizer tudo
como quero – confessei, embaraçado. – Penso que a novidade dessa literatura dos
anos 50/60, ainda bem atual, foi soma de muito ácido mais o holismo que não
ignorou obras não ocidentais, como a poesia haiku,
o Kama Sutra, os koans, o I Ching, o Bhagavad-Gita e a ioga, dentre outras. Logo, um tipo de fórmula.
Mesmo assim, como você também sugeriu, estava lá o “tempo ocidental”, e os seus
signos, por toda a parte, nas entrelinhas. E como poderia ser diferente? A
pergunta é bem simples, mas a resposta, não. Que “nova literatura” poderia
estar livre disso?
– É! Mesmo assim, e se não é possível criar uma nova linguagem, é
preciso desafiar as estruturas da narrativa convencional, quando elas parecerem
engessar a criatividade, a ousadia que salta mais longe. Sem pólemos não há progresso; e a beleza
estagnada, como o pôr-do-sol em um postal ou um rio parado numa pintura, nunca
é mais linda que o real.
– Não é – concordei.
Jorge não disse nada por alguns
instantes, e nem eu sabia mais o que dizer. Parecia que havíamos andado, andado
e, então, voltado ao mesmo lugar de onde antes havíamos saído.
– E essa história toda não
implica em ideologia, pregação ideológica; e nem em uma mensagem ou verdade
cheia de “valores inegociáveis” e essas coisas todas.
– Tudo bem. Não pensei nisso –
deixei que ele acreditasse que eu acreditei, para que ele ficasse tranquilo. – É
difícil falar estando sempre do lado de fora, sem os recursos que estão presos
no lado dentro... Ah!, você sabe.
– Caralho! Deixa isso pra lá –
ele disse.
– É – respondi. – Deixa quieto.
* Trata-se de um brevíssimo diálogo sobre a transmissão de conteúdos, e conteúdos morais, na literatura engessada (inclusive na
“prosa espontânea” da literatura beat); e, embora malfadada, a proposta de uma literatura realmente livre, honesta e de vanguarda. Nele, no diálogo, sou mais espectador que ator, papel que cabe ao meu bom e querido amigo Jorge Hippie – de quem espero não haver corrompido as falas, e a honesta intenção.
1 Publicado no Brasil em 1998, com tradução de Sérgio Molina, para a Companhia das Letras.
2 Cf. GOUVEIA, Arturo. Santíssimas trevas. João Pessoa: Editora
Idéia, 2008.
3 Cf. GOUVEIA, Arturo. O mal absoluto. São Paulo: Iluminuras, 1996.
4
Jorge se referia, certamente, a esta confissão: “Na verdade, não sou um beat, mas sim um estanho e solitário
católico, louco e místico...” Não saberia dizer como ele teria tido acesso ao
livro (provavelmente em inglês, já que o citou pelo título original), uma vez
que a primeira edição, em português, somente apareceu em 2005, com tradução de
Eduardo Bueno, para a L&PM. Quanto à citação, ver: KEROUAC, Jack. Viajante solitário. Porto Alegre:
L&PM, 2005. p. 10. Penso, igualmente, que o sentido do “não ser beat”, aí, de Kerouack, tem a mesma
natureza do “não ser um autêntico vagabundo”, como ele diz de si mesmo, na
mesma obra – no último capítulo: “O vagabundo americano em extinção” –: “Eu
próprio fui um vagabundo, mas só até certo ponto, como se vê, porque sabia que
algum dia meus esforços seriam recompensados com a proteção social – não fui um
vagabundo autêntico, sem esperanças...” (p. 208); ou seja: um beat, um legítimo beat.
5 Depois soube que se tratava do livro: The culture of spontaneity:
improvisation and the arts in the post-war America (Chicago: The
University of Chicago Press, 1998). Estamos em agosto de 2009, e eu não sei se já há alguma tradução para
o português.
6 Lançado em 1970, Enterrem meu coração na curva do rio (Bury my heart at wounded knee), livro do americano Dee Brown
(1908-2002), relata a destruição sistemática e
progressiva dos índios da América do Norte. O livro reúne registros oficiais,
autobiografias, depoimentos e descrições de primeira mão, nas palavras dos
grandes chefes e guerreiros das tribos Dakota, Ute, Soiux, Cheyenne, dentre
outras. É um livro triste, honesto e incrivelmente belo. No Brasil, a primeira
edição é a do Círculo do Livro. Cf. BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. São Paulo: Círculo do Livro,
1974.
7 A frase, na verdade, é
de Nietzsche, na primeira parte de Assim
falou Zaratustra (Do ler e escrever). Completa: “De todo o escrito só me
agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e
aprenderás que o sangue é espírito. Eu só confio em autores que escrevem com o
sangue.” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 40). A citação de Kerouac:
“Eu só confio nas
pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas
para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem
uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam,
como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das
estrelas.” (KEROUAC, Jack. On the road. London: Penguin Books, 1976. p. 12). Jorge, naturalmente e
involuntariamente, deve ter trocado uma citação por outra.
8 Fundada em 1960, no Reino Unido, a New Left Review resulta
da fusão de dois outros periódicos, o New
Reasoner e o Left Review, ambos
de tendência marxista. O nome vem de um texto de 1960, do sociólogo americano
Charles W. Mills, Open letter to the new
left, em que ele acusava a “Old Left”, tanto a comunista como a reformista
(e também os liberais radicais) de haverem traído os ideais de liberdade e
justiça. Fundamentando-se na Teórica da Alienação, do Jovem Marx, Mills
provocou grande impacto entre os jovens intelectuais das décadas de 1960 e 70,
principalmente.