quarta-feira, 16 de maio de 2012


67.






Da morte e do morrer



22 de agosto de 2005, auditório do Instituto Goethe, Porto Alegre. Estou em uma palestra do maior filósofo alemão ainda vivo, depois de Habermas: Ernst Tugendhat. Tugendhat fala sobre os problemas de uma moral autônoma, e sobre a morte:
– Nosso medo da morte: talvez eu tenha dito demais, ao falar de nosso medo da morte – ele diz, introduzindo o seu tema. – Eu queria ao menos indicar que eu também tenho medo da morte. Há pessoas que dizem que não têm medo da morte. Será que isso significa que elas não conhecem esse medo ou será que querem dizer que se desviam desse medo ou o superaram? Abordarei, no final desta palestra, a questão de como se pode superar esse medo; mas, para poder superá-lo, tem-se, primeiramente, de tê-lo. A maior parte da palestra ocupar-se-á com a questão de como deve ser descrito o medo da morte.
A questão me interessa, e seu registo; sou todo ouvidos. Lá pelo meio da palestra, ele diz:
– A vida não pode ser tirada de um sujeito qualquer, pois que senão o tal sujeito deixaria de existir. Não existindo, ele não tem nada a ser tirado, ou que lhe foi tirado - pois algo somente pode ser tirado de alguém que vive. Posso perder um amor, um amigo, mas não posso perder a minha vida. Eu somente poderia perdê-la se continuasse, sem ela, vivendo... Mas isso é um contrassenso, um paradoxo gritante.
O medo dá morte é reflexo do nosso amor à vida, à vida feliz”, penso na mesma hora. Sim, é um pensamento bem simples, e muito evidente. Daí me vem à lembrança um trecho da Carta de Epicuro a Meneceu. Na referida, Epicuro diz ao seu discípulo mais querido:

Acostuma-te à ideia de que a morte para nós é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida. O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal.1

Tinha isso assim, muito claro, por causa de um artigo que eu havia publicado no ano anterior, e que tratava justamente sobre o tema da vida feliz na carta de Epicuro, a Meneceu2. Na referida, a questão sobre a morte, e como enfrentá-la, é um dos quatro remédios (Tetrafarmacon) que devem ser “tomados” para a aquisição da eudaimonía, da vida feliz.
Das anotações que fiz na agenda, sobre a palestra de Tugendhat, não há mais nada. Quanto ao meu artigo, citado, termina assim:

Para ser feliz o homem precisa, resumidamente, de acordo com Epicuro: 1) ter amigos3 – não foi por acaso que Epicuro fez de sua casa sua escola, o seu “Jardim” –; precisa 2) ter uma vida analisada, ou seja, uma vida filosoficamente pensada; e precisa, finalmente, 3) ter autossuficiência, ou seja, ser livre, ser capaz de pensar por si mesmo e ter o mínimo necessário para assim viver. A felicidade, portanto, é adquirida mediante essa consciência individual, que é libertadora. A felicidade é uma atitude filosófica diante do mundo.4

Autores contemporâneos como André Comte-Sponville, Luc Ferry, Marcel Conche e Alain de Botton, dentre outros, têm dado destaque a esse lado prático da filosofia, que reclama o pensamento livre das ações que visam recompensas futuras – como a beatitude da/na religião, a cristã-ocidental, especialmente –, centrado na realidade da vida, no cotidiano do homem comum, em que o pensamento, como ensinava Sócrates, deve ser uma preparação para a morte5. Aprender a viver não é tarefa fácil; morrer, idem. Em tudo isso e para tudo isso, a felicidade é, ainda, uma palavra muito comprida.


               


1 EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 27-9.
2 SALES, Antonio Patativa de. O tema da ΕΥΔΑΙΜΟΝΙΑ na carta de Epicuro a Meneceu. In: Ágora Filosófica: pensamento Antigo-Tardio e Medieval. Recife, ano 4, n. 2, p. 21-32, 2004.
3 A conclusão que Chris McCandless chega (“A felicidade só é real quando compartilhada”), tarde demais, pois prestes a morrer – como se vê em Na natureza selvagem (Into the Wild, 2007), filme de Sean Penn, baseado no livro homônimo, do jornalista Jon Krakauer – é, já, ensinada por Epicuro de Samos (341-270 a.C.).  
4 SALES, 2004, p. 29.
5 PLATÃO. Fédon, 67 d-68b. 


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