domingo, 27 de maio de 2012


Livro 2


Em que o autor oferece grande somatória de exemplos – históricos, filosóficos e literários, principalmente literários – que (de)mostram como o amor romântico foi engendrado sob o peso moral do idealismo platônico, assumido pela cultura da cristandade ocidental, principalmente – e que teria, psicologicamente, maquiado o mecanismo biológico-natural (feio e cru), que é a Vontade de vida, a Pulsão, o sexo puro.




1.





Da condição humana, ou: Da sua eterna contradição



“[o Diabo] voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: – Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? é a eterna contradição humana.”
É um trecho de “A igreja do Diabo”, de Machado de Assis1.
Dentre outras, no conto, há a ideia de que, para que os homens sobrevivam, é preciso que algo os desafie constantemente – para que desejem encontrar algum sentido nos tantos sem-sentidos do mundo. Em outras palavras: é preciso que estejamos insatisfeitos, eternamente insatisfeitos. Se entre os homens houvesse apenas o mal, o mal absoluto, então eles haveriam de inventar o bem, para fazer frente ao mal e, assim, darem sentido à própria existência do mal, à sua condição. Mas isso de haver algum bem onde somente há o mal, é um grande contrassenso. É que o mal, absoluto, não toleraria a concorrência, nem dependeria dela. Havendo o bem, porém, a coisa poderia diferente – se ele não fosse, também, elevado à categoria de “absoluto”. O problema, como se vê, são os absolutos.  
Por quê?
Porque o bemjustamente por ser o bem, poderia muito bem suportar a existência do mal, e aí, apesar de tudo, ver algum bem, alguma “boa finalidade” – desde que não esteja, como já dito, elevado à categoria de “absoluto”. Se assim não fosse, como falar da fé em Deus, por exemplo?, ou do amor? Impossível. A postulação da ideia da existência de um bem absoluto é, nesses termos, auto-aniquilacionista, autocontraditória.
O mal, sem os objetos aos quais possa administrar as suas maléficas maldades, seria o mesmo que o bem. E o mal somente pode atingir aquilo em que ainda não está o mal, administrado. Pois, se o mal castigasse o mal, então ele estaria fazendo o trabalho do bem; logo, agindo como se fosse o próprio – uma contradição à sua condição. O mal exige o bem, carece dele – para poder existir como contraparte. O bem, porém, como careceria do mal sem que, nisso, também portasse a uma parcela de maldade? A ideia do bem em seu sentido absoluto escapa a qualquer juízo a posteriori, está para além de qualquer análise fundamentada na razão. Isso vale, certamente, para os objetos de fé. “A expressão começa onde o pensamento acaba”, Albert Camus dizia n’O mito de Sísifo2. Posso substituir o substantivo feminino “expressão” por “fé”, sem prejuízos, e com equivalente lucidez.
Do mesmo modo, por outro viés, são as coisas do amor romântico (ideal). Quem, em sua teimosia, acredita na possibilidade de um amor perfeito, acredita que é possível transpor, em abissais saltos ontológicos, as barreiras das análises a posteriori (i.e. do real), repousando no Amor, fundamento último. Esse ou essa, mesmo que não saibam, crentes nas coisas do amor ou da fé – em suas aporias e paradoxos mais profundos –, agarram-se ao apriorístico discurso da própria fé. A fé é um escandaloso absurdo (Camus), um grande paradoxo (Kierkegaard)3.
Sentimento, aqui, de nada vale – para o fundamento discursivo-demonstrativo requerido.
Mas, veja só: é pelo sentimento que se morre; ou, antes, pela ideia de amor àquilo que se acredita verdadeiro. Ah!... Ninguém, no fundo, morre pela verdade. Os martírios, todos eles, não têm outro fundamento senão o sentimento (sobre a verdade ou o erro) ou a dúvida (sobre a verdade ou o erro); e é sempre o meu sentimento, a minha dúvida. Quando alguém “morre por outro”, e por si mesmo que morre; e quando não chega a morrer, mas padeça no sofrimento (também por outrem), é por si mesmo que sofre. Tudo é sentimento – nada é certeza... a não ser a certeza da incerteza – e insatisfação. Essa é, queiram ou não, meus senhores e minhas senhoras, a eterna condição humana, a sua eterna contradição.





1 ASSIS, Machado de. A igreja do Diabo. In: _____. Contos. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 106. (Col. Leitura).
2 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 101.
3 O paradoxo da fé é, em Kierkegaard, apresentado na figura de Abraão: “E houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – mas Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio a si próprio.” (KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. p. 31). “O cristianismo”, Camus afirma, “é o escândalo, e o que Kierkegaard pede com simplicidade é o terceiro sacrifício exigido por Inácio de Loyola, aquele com o qual Deus mais se delicia: 'o sacrifício do Intelecto.' Esse efeito do 'salto' é bizarro, mas não deve nos surpreender mais. ele faz do absurdo o critério do outro mundo, enquanto não passa de um resíduo da experiência deste mundo. 'Em seu fracasso', diz Kierkegaard, 'o crente encontra [como em Abraão] o seu triunfo'.” (CAMUS, 2010, p. 47).

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