segunda-feira, 7 de maio de 2012


64.







Da semelhança entre a chama de uma vela e o mudar de casa




Era uma varanda em Lisieux, na França, uma casa de campo. Estava eu, Bernard-Henri Lévy, Françoise Giroud, Alain de Botton e José N. Heck. Heck falava sobre um artigo que havia publicado em Finitude e transcendência: festschrift em homenagem a Ernildo J. Stein1, organizado por Luís Alberto De Boni que, na época, era meu orientador no doutorado em Filosofia Medieval, na PUC-RS. No sonho, Heck falava algo que, isso eu somente veria depois, era parte do seu artigo:
– O espanto e a fascinação dos poetas por aquilo que atua inapelavelmente nos primórdios levou Aristóteles a confirmar o amor como páthos inescusável do conhecimento. Somente na familiaridade com o Eros mítico fora ainda possível detectar o desamor deste a qualquer teoria, o que Empédocles registra, ao observar que o mundo é regido pelo amor e pelo ódio...
Bernard-Henri Lévy parecia estar em outra dimensão e, certamente, não foi em continuidade ao pensamento de Heck que atacou, categórico:
– Eu não sou romântico! – todos os olhos se voltaram para ele, pelo súbito afirmado, pela irrupção da voz ligeira e cortante. Ele não nos encarou, mas acendeu um cigarro e, olhando para além da janela aberta, continuou: – Enfim: tento não sê-lo. E conheci, próximo de mim, muitos vínculos que se desfizeram por serem muito, muito prudentes. Porém, não digo, com efeito, que eles “se desgastaram”. Nem, de resto, que as paixões “se extinguem”. Não somente por essas palavras serem feias (ainda que isso conte, não é, a feiura de uma palavra?). Mas é a própria ideia que eu recuso. Pois nos dois casos a ideia é a mesma. Ora se diz que a paixão “se extingue” – e é concebida como uma espécie de chama, ou de vela, de combustão forçosamente limitada. Ora se diz que ela “se desgasta” – e é concebida como uma velha corda que seria usada até o ponto de se romper. O ponto comum é que veem essa paixão como um tipo de massa, ou de estoque, com tudo o que essas palavras podem ter de redutor. Há uma reserva de amor. Tira-se dele. Tira-se mais ainda. Uma bela manhã, nada mais há dele. Esgota-se a paixão, como se esvazia uma conta no banco. Bem, não creio nisso... Não creio, de maneira nenhuma, que seja assim que as coisas se passem...
– Não imagino a paixão como um “estoque” que iria se esgotando, ou como uma chama que iria diminuindo. Extinguir, apagar: a palavra é ruim, você tem razão, se bem que seja a de Proust – agora era Françoise quem interrompia Lévy. – Não encontro outra melhor para dizer que um dia há uma quebra e aí... pronto... se dissipa, desaparece, sei lá. Estava lá, agora não está mais...2
– Do que estamos falando, afinal? – perguntei.  – Que relação há entre o que Hack afirmou e tudo isso? Ou, melhor: o que estamos procurando?
– “O que estamos buscando?” – Alain de Botton repetiu a pergunta, tomando para si a fala. – Pode ser mais acurado resumir o que estamos buscando em uma palavra raramente utilizada na... “teoria política”, por exemplo: amor. Com a garantia de alimento e abrigo, o impulso que subjaz a nosso desejo de sucesso na hierarquia social pode não estar tanto nos bens que possamos adquirir ou no poder que possamos exercer, mas na qualidade de amor que recebemos como consequência de nosso status elevado. Dinheiro, fama e influência podem ser avaliados mais como provas de amor – e um meio de se chegar a ele – do que como fins em si mesmos. Como uma palavra, em geral usada apenas em relação ao que queremos de nossos pais ou de um parceiro romântico, pode ser aplicada a algo que podemos querer e obter no mundo?
– O desejo de status, portanto, é um desejo de amor, do olhar complacente do Outro, nosso objeto, da sua aprovação – disse, olhando para Botton, que mantinha um sorriso sereno e um olhar firme e curioso.3
– Creio que é isso mesmo, e até escrevi um livro para defender essa tese.
– No entanto – eu disse –, parece que tudo isso, desde antes de Aristóteles e depois de Nietzsche, está fincando, de um jeito ou de outro, em uma só palavra: perspectiva; que também pode ser sinônimo para... esperança. Esperança de um encontro feliz, ou aquela esperança desesperada do desastre da conquista, frustrada. Que a desesperança tem em si, como o outro lado de uma moeda, a esperança vencida. E o grande equívoco dos que escrevem sobre as relações amorosas é manter essa perspectiva romântico-idealista, cinematográfico-hollywoodiana, “ou sei lá o quê”... para usar a expressão de Giroud. Toda beleza – e ninguém aqui há de negar que o que mais aproxima um homem de uma mulher, ou o contrário disso, ou outro caso específico de gênero, é essa coisa que chamamos “beleza”, “empatia”, et cetera – tende a morrer cedo ou tarde, diante do tédio cotidiano, dos olhos que se acostumaram com o novo, envelhecendo-o.
Parei para pôr as ideias em ordem, enquanto Françoise Giroud mudava a posição das pernas, que estavam cruzadas. – Continue – ela disse. Continuei.
– A ideia de que “somos carentes de absolutos” – desenhei aspas no ar – parece entreguismo, ou vício conceitual. As falas sobre o amor romântico e os nossos mecanismos de conquistas, como as falas da religião e os ritos, e isso já é notado pelos sociólogos mais antigos, são tentativas de ver mais além isso que há em nós, e que é natural e nada misterioso, nada secreto. Se há algum mistério, ou algum segredo, nós é que o inventamos, para enfeitar o desejo que, em si mesmo, nada tem de beleza ou divindade. Mas sempre estamos procuramos essa “coisa absoluta” muito além do seu horizonte: é o que alguns, como Levinas, chamam de transcendência, e que outros querem fazer esbarrar em alguma divindade supralunar, metafísica, extraterrena et cetera. “O amor é chama...”, Vinicius dizia. Sim, é. E quando essa chama se apaga – nem ligo se a palavra é feia –, logo tratamos de procurar uma chama de brilho maior; porque, se o corpo é ainda viçoso, a Vontade não morreu, apenas se acostumou à novidade, que agora não é mais. Não é que a Vontade (ou o amor, como vocês insistem) se acabe; apenas mudou de casa, mirando outros alvos. O amor romântico só se prende, ou se permite prender, pelas amarras morais, e isso no plano físico – pois, naquele outro, nos enormes campos que abrigamos, voa por muitos ninhos, muitos jardins, como uma borboleta que procura, sem ter noção dos porquês da procura, a melhor flor, a mais colorida, o melhor néctar. Amar é mudar de casa, pela perspectiva de uma novidade que continue sendo... novidade. É uma ingenuidade que nos assalta, sem que notemos. Continuar amando o mesmo objeto, para além do tédio que o tempo fermenta, vencida a paixão que nos entorpeceu os sentidos, é o único milagre. Mas, ah!, descobrimos sempre muito tarde: milagres não existem.  
Nesse momento o despertador tocou e eu tinha um dia inteiro pela frente.
– Merda! – Disse, saudando as primeiras cores do dia, que eram de uma tristeza cinza esverdeada e rósea. – Bem que eu podia estar mesmo na França, em uma casa cheia de sol e calor e gente com cérebro.
Abri a janela que dava para a Redenção, e o vento me socou o rosto. “Ah!, vida real, como é que eu mudo de canal?”, cantarolei, com o resto de ânimo que eu não tinha.




1  “Do amor e do ceticismo” (Vozes / EDIPUCRS, 1996, p. 333).
2 As falas de Bernard-Henri Lévy e Françoise Giroud, respectivamente, fazem parte do capítulo 6 (“Do erotismo como ingrediente do casamento”) do livro Les hommes et les femmes (Oliver Orban, 1993), que é o registro de um diálogo entre os dois.
3 A fala de Alain de Botton, com as minúsculas alterações que faço (e sem modificar o seu sentido original) estão em seu livro Desejo de status (Rocco, 2005, p. 15).


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